A tradução abaixo traz importantes dilemas em comum com as atuais lutas no Brasil, em que contradições entre a luta anti-imperialista e nacionalismo, organização reivindicatória dos trabalhadores e burocracias sindicais, antirracismo e burguesia negra são grandes desafios colocados. As contradições do processo de superação do Aparthaid na Africa do Sul também ecoam em muito as contradições da redemocratização e dos chamados governos democráticos e populares no Brasil, onde organizações dos trabalhadores ou antes opositoras ao regime militar, tornaram se gestores do Capital e novos comandantes da repressão estatal. Esperamos que esse artigo seja útil aqueles que lidam com essas questões na prática e ajude nos a encontrar novos caminhos. A tradução foi feito por Gabriel Junqueira, Gabriel Silva e Raissa Sato.
Texto original em: https://www.angryworkers.org/2021/06/17/the-national-liberation-struggle-some-personal-experiences-from-southern-africa/

O Angry Workers publicou recentemente um editorial sobre o conflito em Gaza . Houve críticas generalizadas a este artigo online. Aceitamos algumas das críticas a imprecisões factuais, mas certamente não aceitamos o ponto central de muitas das críticas: a saber, que ao criticar o Hamas e a OLP estávamos minando a luta na Palestina. Esta há muito tem sido uma posição de setores dos movimentos radicais da Europa e dos Estados Unidos – que deve-se apoiar incondicionalmente os ‘movimentos de libertação nacional’.
Apoiamos a luta da classe trabalhadora contra qualquer forma de opressão estatal e não desejamos defender o Estado israelense ou o sionismo. Ao mesmo tempo, pensamos que um apoio ‘incondicional’ e totalmente acrítico à ‘libertação nacional’ é ingênuo na melhor das hipóteses e intencionalmente perigoso na pior. Tomamos os muitos precedentes históricos das lutas populares, que foram empurradas para o mesmo tipo de estrutura nacionalista e que resultaram em derrotas da classe trabalhadora, como nossa justificativa aqui. Compreendemos que temos o dever de interrogar as várias forças de classe em ação em relação às lutas atuais, a fim de melhor apoiar nossas irmãs e irmãos da classe trabalhadora contra a opressão e a injustiça. Acreditamos que o texto abaixo, escrito por um camarada do AngryWorkers, contando suas experiências na África do Sul durante a luta contra o apartheid, evidencia alguns dos paralelos e nos ajuda a melhor explicar o nosso posicionamento quanto a este ponto.
Muitos na esquerda gostam de pensar nas pessoas como ‘coletivos de vítimas’. Eles falam do ‘povo palestino’, como se a experiência e a trajetória de uma mulher proletária em Gaza não fossem fundamentalmente diferentes das de um oficial de Estado da Autoridade Nacional Palestina ou de um chefe palestino. Essa mesma lógica ocorreu durante os tempos de luta anti-apartheid na África do Sul, que reduziu complexas relações sociais e políticas a uma imaginária ‘comunidade negra’. Isso não é apenas politicamente desastroso, é bastante romantizante e paternalista. O texto também exemplifica por que pensamos que o processo de “duas etapas” para o socialismo é um beco sem saída.
As recentes lutas da classe trabalhadora na região , do Iraque, Irã, Líbano à Argélia são provavelmente as principais forças capazes de romper o isolamento da disputa na Palestina – e seu principal obstáculo são os autoproclamados líderes políticos, sectários e religiosos que afirmam falar ‘pelo povo’. Algumas pessoas destacam o excepcionalismo do conflito na Palestina. Nós ainda achamos que podemos aprender algumas lições históricas. Nós esperamos que as questões levantadas neste emocionante relato de primeira mão sobre o apartheid na África do Sul jogarão mais luz sob o pensamento por trás de nossa perspectiva, e que o internacionalismo prático da classe trabalhadora seja a única maneira de realmente superar a opressão. Um livro, publicado pelo autor deste artigo, que aprofunda o assunto, pode ser baixado aqui (em inglês).
África Ocidental pós-colonial
No romance de 1980, ‘Diabo na Cruz’, do escritor queniano Ngugi wa Thiong’o, a heroína, uma mulher pobre, é erroneamente convidada a participar do Congresso de Ladrões do Diabo. Neste congresso, todos os grandes e poderosos da recém-independente Quênia estão presentes. O destaque do congresso é o prêmio anual para novas ideias sobre como roubar e enganar as massas. Um homem disse: ‘cobramos pela água, por que não cobramos pelo ar?’ E assim por diante. Em seguida, um jovem sobe ao palco, curvando-se diante do painel de juízes ilustres que decidirão o vencedor deste ano, e também curvando-se à mesa dos homens brancos da Associação Internacional de Ladrões. Ele faz sua apresentação. ‘Nós, ladrões quenianos’, diz ele, ‘usamos toda a nossa habilidade para tirar dinheiro do povo, mas depois damos 50% para a Associação Internacional. Proponho que paremos com isso e fiquemos com todo o dinheiro nós mesmos.
Há um silêncio atordoante seguido por um pandemônio. Os guardas de segurança arrastam o jovem para fora do salão. Lentamente, a ordem é restaurada. O presidente nervosamente sobe ao palco e, voltando-se para a mesa dos homens brancos, pede desculpas profusamente, dizendo-lhes que todos sabem que a Associação Queniana de Ladrões só pode funcionar sob o patrocínio dos irmãos internacionais.
A literatura africana do período pós-colonial imediato está cheia de raiva e decepções amargas à medida que os ‘heróis’ dos movimentos anticoloniais escalam o pólo gorduroso. Histórias de pobres de zonas rurais, expulsos de suas terras pelos britânicos, apenas para verem suas fazendas acabarem sendo propriedade dos novos ministros do governo.
Essas experiências de toda a África não foram esquecidas pelos fundadores da Federação dos Sindicatos da África do Sul (FOSATU). Em 1973, após duas décadas de repressão em que todos os sindicatos foram destruídos, uma grande greve espontânea se espalhou pela enorme região industrial em torno de Durban e depois para o resto do país. Os trabalhadores saíram das fábricas para as ruas exigindo salários mais altos. Esta revolta da classe trabalhadora levou à formação de sindicatos novos, muito militantes e dirigidos por trabalhadores que se agruparam na FOSATU. Em seu congresso de 1982, o secretário-geral, Joe Foster, fez um discurso no qual incluiu o seguinte:
“Os trabalhadores precisam de sua própria organização para enfrentar o crescente poder do capital e melhor proteger seus próprios interesses na sociedade em geral. No entanto, são apenas trabalhadores que podem construir esta organização e, ao fazer isso, eles devem ter clareza sobre o que estão fazendo.
À medida que o número e a importância dos trabalhadores aumentam, todos os movimentos políticos devem tentar conquistar a lealdade dos trabalhadores, porque eles são uma parte importante da sociedade. No entanto, em relação às exigências particulares da organização dos trabalhadores, os partidos de massas e as organizações políticas populares têm limitações definitivas, que devem ser claramente entendidas por nós.
Devemos distinguir entre a posição internacional e a atividade política interna. Internacionalmente, é claro que o ANC é a principal força com presença e estatura suficientes para ser um desafio sério para o estado sul-africano e para garantir a condenação internacional do presente regime. … ..
No entanto, esta presença internacional do ANC (Congresso Nacional Africano)… .. coloca certas limitações estratégicas ao ANC, nomeadamente: para reforçar a sua posição internacional tem de reclamar crédito por todas as formas de resistência, independentemente da natureza política de tal resistência. Há, portanto, uma tendência a encorajar atividades políticas oportunistas não dirigidas. Tem que se situar entre os grandes interesses internacionais. Para as principais potências ocidentais, deve parecer anti-racista, mas não anti-capitalista. Para o Oriente socialista, deve ser pelo menos neutro na luta das superpotências e certamente não poderia parecer oferecer uma alternativa socialista séria àquela desses países, como ilustra a resposta à solidariedade …
Internamente, também temos que examinar cuidadosamente o que está acontecendo politicamente. Como resultado da total incapacidade do estado de efetuar reformas e do colapso de sua política de bantustão, eles estão novamente recorrendo à repressão aberta. Desde 1976, em particular, isso deu nova vida à resistência popular e mais uma vez o impulso pela unidade contra um estado repressivo reafirmou a tradição política do populismo na África do Sul. Vários interesses políticos e econômicos se reúnem na frente popular na tradição do ANC e da Aliança do Congresso (Congress Alliance) …… ..
No entanto, a questão realmente essencial é como a organização dos trabalhadores se relaciona com essa luta política mais ampla. Argumentei acima que as condições políticas e econômicas objetivas que os trabalhadores enfrentam agora são nitidamente diferentes das de 20 anos atrás. No entanto, não parece haver clareza sobre isso no atual movimento sindical. Existem boas razões para esta falta de clareza. ‘ [1]
África do sul segue o mesmo caminho
Essa falta de clareza se mostraria desastrosa para a classe trabalhadora. Poucos anos depois desse discurso, os novos sindicatos independentes, em rápido crescimento, ficaram sob o controle do ANC. Então, quando Mandela formou o primeiro governo pós-apartheid, os sindicatos tornaram-se um braço júnior do estado. Eles se burocratizaram rapidamente e ficaram o tempo inteiro defendendo a camada crescente de milionários negros e corruptos nas fileiras do ANC. O auge dos efeitos devastadores dessa tendência foi visto em 2012 em Marikana, onde mineiros em greve, que haviam rompido com o sindicato dos mineiros pró-ANC, foram baleados por tropas do governo do ANC, incentivadas por líderes sindicais. 34 grevistas foram mortos. [2] O ex-líder do sindicato dos mineiros, NUM, era Cyril Ramaphosa, que agora é o presidente sul-africano e um rico empresário.
Apenas no mês passado, uma trabalhadora têxtil foi morta a tiros no Lesoto quando 50.000 trabalhadores industriais da região entraram em greve exigindo aumentos salariais. [3] Olhando para trás, em sua luta contra o apartheid, eles devem estar fazendo a mesma pergunta que os trabalhadores em toda a África fizeram após sua ‘libertação’: ‘Foi por isso mesmo que lutamos?’
Uma viagem para a áfrica do sul
Visitei a África do Sul pela primeira vez no final dos anos 1980 com o apartheid ainda em vigor, mas sob ataque constante das massas. Meu primeiro encontro foi em Durban com um grupo de trabalhadores industriais, principalmente zulus e índios, homens e mulheres, a maioria deles delegados sindicais em suas fábricas. Perguntei se eles pertenciam a algum partido político. Eles responderam, ‘não’, apenas aos seus sindicatos. ‘Nenhum de vocês está no ANC?’, Perguntei. Uma mulher de uma fábrica têxtil respondeu: “Por que nos juntaríamos ao partido burguês?” Agora, este era um grupo de militantes, não necessariamente representativo da classe trabalhadora em geral, mas durante esta visita, eu li no jornal que uma pesquisa com os trabalhadores descobriu que 80% queriam uma sociedade socialista para substituir o estado do apartheid. Claramente dentro do levante popular de massa contra o apartheid, uma parte poderosa da classe trabalhadora estava estabelecendo sua própria voz, distinta dos aspirantes a capitalistas negros, que, como disse Joe Foster, tiveram que tentar manter a classe trabalhadora sob seu controle.
Por que eu (um trabalhador britânico branco) estava na África do Sul? Aos 11 anos de idade em 1960, eu tinha visto no jornal as fotos no do massacre de Sharpeville, de Hector Pieterson carregando seu filho morto. 69 pessoas foram mortas, muitas delas baleadas nas costas enquanto a polícia disparava contra uma manifestação pacífica. [4] Isso teve um grande impacto em mim e, como um jovem adolescente, participei de manifestações anti-apartheid. Minha mochila escolar estava coberta com um slogan apoiando a luta contra o domínio branco de Ian Smith na Rodésia (mais tarde, Zimbábue). Em seguida, passei 20 anos em uma seita política, o Partido Revolucionário dos Trabalhadores, onde passei a maior parte do tempo vendendo jornais. Em 1985, o líder da seita, Gerry Healy, foi expulso por abuso sexual de mulheres jovens e o partido se desfez. Eu agora estava livre para me envolver em todos os tipos de atividades políticas, e me juntei ao piquete ininterrupto em frente à embaixada da África do Sul na Trafalgar Square de Londres, que durou dia e noite de 1987 a 1990, exigindo a libertação de presos políticos sul-africanos. [5]
Nessa época, eu trabalhava como operário de chapa metálica em uma fábrica de membros artificiais da British Tire and Rubber Company (BTR). Essa mesma empresa possuía uma fábrica na África do Sul, BTR Samcol, onde uma forte greve estava ocorrendo. [6] Inkatha, uma organização de bandidos leais a um líder zulu, Gatsha Buthelezi, sequestrou e assassinou vários dos líderes da greve. (O regime sul-africano financiou ‘líderes tribais’ em diferentes partes do país e criou vários ‘reinos autônomos’ para tentar dividir as massas). Eu ajudei a organizar uma turnê pelo Reino Unido para alguns dos sindicalistas do BTR que montaram uma peça chamada ‘A Longa Marcha’ sobre sua greve. Mais tarde organizei uma peça semelhante feita por algumas de suas esposas e filhas – ‘As Irmãs da Longa Marcha’.
Esta foi a época de agitação em massa na África do Sul. Seguindo o exemplo dos trabalhadores da indústria na década de 1970, todos os segmentos da população não branca enfrentavam o Estado. Os distritos, onde a maioria dos não brancos era forçada a viver em condições miseráveis, eram palco de constantes batalhas com a polícia. Greves estavam ocorrendo em todo o país. A Frente Democrática Unida, uma aliança de muitas tendências políticas com o ANC no centro, levantou o slogan, “Tornem os municípios ingovernáveis”, para tentar pressionar o regime a negociar.
Os trabalhadores do BTR Samcol eram membros do MAWU, o sindicato dos metalúrgicos que agora se fundia no NUMSA (Sindicato Nacional dos Metalúrgicos da África do Sul). Seu presidente, Moses Mayekiso, estava na vanguarda dessa revolta. Ele foi preso e acusado de conspiração. NUMSA perguntou se poderíamos organizar uma turnê de palestras no Reino Unido com sua esposa e outro membro importante do sindicato, Bongani Mkhungo. Organizamos isso e, após a primeira reunião pública em Manchester, Bongani ficou em minha casa. Ficamos conversando a noite toda, descobrindo tanta coisa em comum. Ele partiu no dia seguinte para continuar a turnê, mas quando ela terminou, seu sindicato disse-lhe para ficar no Reino Unido, pois a polícia sul-africana estava procurando por ele.
O Sindicato dos Transportadores e Trabalhadores Essenciais (Transport and General Workers Union) em Liverpool deu a ele um emprego temporário e todo fim de semana por cerca de 2 meses, ele veio e ficou comigo e nos tornamos companheiros próximos. Ele me pediu para ir à África do Sul para dar palestras, pois achava que os militantes da fábrica tinham estado muito isolados dos eventos globais e da história. Fui com uma maleta de livros ilegais (praticamente toda a literatura de esquerda foi proibida na África do Sul). Nos anos seguintes fiz inúmeras visitas, e Bongani e eu colaboramos juntos em muitos projetos.
Notas:
1 marx.libcom.org/library/workers-struggle-where-does-fosatu-stand
2 https://en.wikipedia.org/wiki/Marikana_killings
3 https://www.theguardian.com/global-development/2021/may/28/woman-shot-dead-in-lesotho-as-factory-workers-clashes-with-police-escalate
4 https://www.britannica.com/event/Sharpeville-massacre
5 Objecting to apartheid: building a non-stop protest in 1980s’ London • V&A Blog (vam.ac.uk)
6 LaJul85.0377.5429.010.008.Jul1985.17.pdf (ukzn.ac.za)
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