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16 dez 2021

O ex-presidente Mujica não quer que você fume!

Série: maconha pro povo!

Parte 2: o ex-presidente Mujica não quer que você fume!

Aviso: este texto contém anarquismo. O uso pode causar vício. Se persistirem os sintomas a insurreição, expropriação e abolição do capital e Estado deverão ser considerados.

Na última edição da série “Maconha pro Povo” nós falamos um pouquinho sobre como o capitalismo estadunidense ferrou com os planos de legalização da erva. “Já sei!” Alguns vão ler e falar “É por isso que a maconha deveria ser produzida, plantada, colhida e distribuída exclusivamente pelo Estado! Igual foi no Uruguai!” Calma aí tankie (ver glossário abaixo). Também não é bem assim. Na verdade, pra além do marketing, a “legalização” da erva no Uruguai está cheia de problemas! Não é um sistema bom pra quem quer plantar e vender, mas também não é lá essas coisas pra quem quer (ou precisa) usar a planta!

“Mas como assim? Lá vende maconha em farmácia!” Pois é, essa é uma das três modalidades de consumo da erva por lá. Demorou bastante pra ser implementado. A lei que “legalizou” o verde passou em 2014, e a venda em farmácias só começou em 2017!¹ De uma forma ou de outra, sim, a princípio comprar ganja em farmácia seria um jeito de curtir a briza. Só que isso deu meio errado desde o começo. Pra começar, a maioria das farmácias não quis saber de vender! Por que? Bem, várias das redes de farmácias possuem negócios, ou mesmo que seja contas bancárias, em outros países. Só que internacionalmente a ganja continua ilegal. Daí as farmácias ficam com medo de serem perseguidas na gringa por narcotráfico.²

Para ser justo esse problema os caras até reduziram um pouco: o Estado autorizou a criação de dispensarias próprias para a ganja no país.³ Mas continuam sendo poucas e insuficientes. Na prática, filas longas pra conseguir comprar erva ainda são uma realidade. Além disso, a erva vendida pelo Estado tem pouquíssima variedade (apenas 5 tipos), e tudo com uma concentração de thc abaixo da média.⁴ 

Quem ganha com a ganja?

Tá bom, mas pelo menos dá pra comprar ganja, certo? Pode não ser a melhor ganja, e pode ter que esperar em filas, mas pelo menos dá pra comprar… Certo? Se fossem só esses problemas não seria tão ruim. Mas tem mais caroço no angu. Pra você comprar a erva no Uruguai você tem que carimbar seu nome, avisar oficialmente às autoridades que você está fazendo uma coisa que até poucos anos atrás era considerada crime.⁴ Como disse o próprio “Pepe” Mujica “Esta é uma experiência. Como toda experiência, naturalmente há um risco, e temos que ter a inteligência de, se passar por cima de nós, voltarmos atrás”.⁵ 

E se “voltarem atrás”, como ficam as pessoas que assinaram documentos falando que compram maconha? Acham que estou sendo paranóico? Então pensem assim: uma das motivações pra proibirem a maconha, no Brasil e no mundo, sempre foi ter uma desculpa pra prender negros, pobres e ativistas de movimentos sociais.⁶ ⁷ Daí se um governo fascista assume (pode acontecer, talkey?!) e proíbe a ganja, teria uma listinha perfeita sobre em quais casas passar.

Fica pior. A ganja de má qualidade que é vendida nas farmácias não vem do pequeno plantador. Vem, sim, de atualmente 5 grandes empresas de plantio intensivo da erva.⁸ É divertido pensar como no topo de qualquer grande operação estatal sempre encontramos poucas grandes empresas lucrando (e como por trás de toda grande empresa, sempre tem um Estado colaborando). Essas empresas não são flor que se cheire. Uma das maiores era, até pouco tempo atrás, literalmente, controlada pelo herdeiro de Bismarck⁹. Sim, aquele Bismarck. O primeiro ditador da Alemanha. Para além dos laços de família, o cara tem fortunas em diversos paraísos fiscais, além de responder em processos por fraude. É esse o tipo de cara que ganha dinheiro com a ganja “legalizada” no Uruguai. Para ser justo, em 2020 a empresa de Bismarck foi adquirida pela gigante canadense Flowr. Mas isso não torna as coisas muito melhores: o grupo está ativamente interessado em controlar verticalmente tudo o que eles puderem relacionado à maconha.

E eles não estão interessados só na ganja recreacional. Os principais atrativos para estes grandes grupos no Uruguai é a possibilidade de criar laboratórios para plantio e pesquisa com a maconha, além de trabalhar com produção e exportação de cânhamo. Na verdade, em 2021, a empresa Flowr anunciou não ter interesse em continuar com a produção de maconha para uso da população uruguaia, focando suas ações no país ligadas à Cannabis em pesquisas e produção de tecidos.¹⁰ Acontece que, no mundo inteiro, ocorre uma corrida por patentes ligadas à ganja. Se pudessem patenteariam a própria planta. Como não conseguiram (ainda!) lutam por formas de patentear compostos químicos, processos de extração, manipulações diversas da planta entre outras coisas ligadas à cannabis.¹¹ Na prática, começar a vender maconha para o Estado, pode servir como uma fachada para essas empresas entrarem na corrida por patentes. Inclusive porque a própria lei que legalizou a ganja no Uruguai define pesquisas científicas e busca por patentes como um dos poucos casos em que o controle dos resultados não precisa passar pelo Estado. Ou em outras palavras: as patentes que eles descobrirem ficam inteiras para eles. Isso ajuda a explicar a falta de erva boa para os maconheiros no Uruguai. Simplesmente não há tanta pressão econômica agindo para os caras quererem plantar várias variedades de qualidade para o consumo interno. Não é isso que move essas empresas.

Na prática, não há conveniência, variedade e segurança o suficiente para os maconheiros compararem a ganja do Estado. Por isso mesmo, cerca de 80% da maconha no país continua sendo do mercado ilegal!¹² (Trataremos mais a fundo na próxima edição). Ou seja, em termos práticos, essa comercialização pelo Estado foi um fracasso!

“Fumo Livre é o Caralho!”

“Ah, mas dane-se isso! O negócio mesmo no Uruguai é plantar sua própria ganja! Ou então se juntar a um clube de plantio!” De fato, as outras duas modalidades de uso da erva talvez tenham sido as melhores providências na “legalização” do Uruguai. Mas ainda assim ocorreram uma série de problemas. Pra começar o plantio e os clubes não faziam parte da visão original da proposta. 

Na verdade, o próprio Mujica foi explicitamente contra liberar essas modalidades até os últimos segundos do segundo tempo. Daí é importante pensar no contexto da legalização. Vamos tratar disso mais a fundo já na próxima edição, mas resumidamente, na cabeça do Mujica tudo tinha que se resumir a segurança pública, e controle (extermínio) do tráfico ilegal.¹² Mas havia, ainda, outras duas forças importantes em ação: um ativismo pela maconha desenvolvido ao longo de décadas, e a influência de um bilionário da gringa. Sim, estou falando do George Soros.

Não, a ideia aqui não é glorificar o mongol da bolsa de valores. Mas a questão é que um grupo que ele basicamente financia, a “Drug Police Alliance”, teve um papel importante na “legalização” da ganja no Uruguai.¹³ O foco dos caras não era pensar do ponto de vista de quem vende (ou gostaria de vender) maconha. Eles estavam, basicamente, pensando em acabar com o tráfico ilegal, e um pouco no consumo e na questão medicinal.¹⁴ Acontece que não só no Uruguai, mas no mundo inteiro, a legalização do plantio está no topo da lista de demandas de ativistas canábicos. E essa visão de liberar o plantio vai mais ou menos de acordo com a proposta mais “liberal” do grupo financiado pelo Soros. No fim houve bastante pressão, construída, em partes, de baixo pra cima pra incluir o plantio na lei. O Mujica não gostou. “Fumo Livre o caralho! [Fumo libre las pelotas!]” Ele chegou a dizer. O cara realmente não queria que as pessoas fumassem ganja. Para ele tudo deveria se resumir ao exercício do poder estatal e destruição do tráfico de drogas. Ele tinha ainda medo de que [que horror!] algumas das pessoas que plantassem vendessem a erva, como numa espécie de bico. Mas a pressão de ativistas, e, por mais que doa reconhecer, do lobby do George Soros, acabou, nesse caso, falando mais alto. Conseguiram colocar o plantio individual e em clubes na lei.¹²

E a Guerra às drogas?

Final feliz e fim da história, certo? Não. Longe disso. A retórica de combate ao tráfico continua sendo utilizada para invadir casas e prender pessoas (mesmo se tiverem licenças!) sob acusação de plantio para tráfico. Lógico, a ação policial ocorre mais ostensivamente em regiões pobres, com uma maior composição de minorias na população.¹⁵ ¹⁶ E isso sem nem entrar no fato de que a maioria dos maconheiros não querem (nem deveriam precisar querer) plantar ganja. 

Olha, no fim das contas o modelo uruguaio dá três opções de consumo: plantar, participar de um clube, ou comprar erva ruim de farmácias e dispensarias. Nos três casos você tem que colocar o seu nome numa lista do governo, e nos dois primeiros você tem que ou saber plantar ou ser muito amigo de pessoas que saibam. Não é o caso de todo mundo que mora em grandes cidades (como é o caso de 95% dos uruguaios)¹⁷. As opções legais simplesmente não são atrativas o suficiente pra quem quer brizar. Ao mesmo tempo, as pessoas que deveriam ser poupadas com a legalização, as vítimas da guerra às drogas, continuam sendo alvo da polícia e do Estado!

Para ser justo, até há um mercado lícito ligado à maconha no Uruguai, que adquire proporções um pouco maiores. Falo da venda de acessórios canábicos (isqueiros, pipes, sedas etc) de insumos para plantio e mesmo de sementes. Mas as pessoas que podem entrar nesse mercado não são as mesmas sendo presas pela polícia. São pessoas ricas e de classe média alta, que viram uma oportunidade de fazer a vida com a erva. Pessoas como Juan Vaz, ativista canábico com grande repercussão na mídia uruguaia. Ele trabalha como consultor de plantio para clubes, e ajuda a montar lojas de insumos, além de ter uma própria dele.¹⁸ 

Verdade seja dita, é difícil odiar o cara. Ele possui uma visão muito mais realista sobre a legalização, e até fala sobre liberar os pequenos vendedores para a legalidade. Só que o cara tem grana, vem de família bem provida, tem capital inicial pra torrar. Na prática ele acaba perpetuando uma visão liberalóide de legalizar, em que apenas os mais ricos poderiam ter sucesso. E não é pra menos: já está ocorrendo competição entre essas lojas. O que ainda cria mais necessidade de investimento em campanhas de marketing. A concorrência e os gastos tornam as margens, na verdade, pequenas. Isso só favorece mais a centralização dos negócios em poucas empresas de gente grande com dinheiro.¹⁸

Tem muito mais coisa pra ser coberto sobre a esquizofrenia que foi a “legalização” da maconha no Uruguai. Por isso mesmo que dividimos a cobertura do país em três artigos. Mas o que já dá pra ter bem claro é que a “legalização” não teve como principal objetivo permitir o uso da ganja. Mujica não quer que você fume maconha!


¹https://www.google.com/amp/s/english.elpais.com/elpais/2018/10/16/inenglish/1539687522_144922.html%3foutputType=amp 

²https://www.drugdiscoverytrends.com/marijuana-can-be-sold-at-uruguay-pharmacies-but-few-want-to/ 

³https://www.google.com/amp/s/www.denverpost.com/2017/09/14/uruguay-setting-up-dedicated-cannabis-dispensaries-after-banks-scare-off-pharmacies/amp/ 

https://www.scielo.br/j/nec/a/9MsB6QhX6Q6yGrVstRgLfVL/ 

http://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/08/mujica-promete-retroceder-se-maconha-sair-do-controle-no-uruguai-1.html 

https://www.google.com/amp/s/www.cartacapital.com.br/sociedade/a-proibicao-da-maconha-e-racista/amp/ 

https://www.google.com/amp/s/amp.cnn.com/cnn/2016/03/23/politics/john-ehrlichman-richard-nixon-drug-war-blacks-hippie/index.html 

https://www.google.com/url?sa=t&source=web&rct=j&url=https://www.unodc.org/res/wdr2021/field/WDR21_Booklet_3.pdf&ved=2ahUKEwiRkbGTiub0AhXQr5UCHdVzCZMQFnoECBEQAQ&usg=AOvVaw2Hq3CV2nokGDZ05GMhbNL2  

https://www.google.com/amp/s/www.vanitatis.elconfidencial.com/amp/famosos/2018-06-21/francisco-ortiz-von-bismark-juan-sartori-cannabis-uruguay-hacienda-panama_1578623/ 

¹⁰https://www.google.com/url?sa=t&source=web&rct=j&url=https://s24.q4cdn.com/393921366/files/doc_financials/2020/ar/Flowr-210426-Annual-Information-Form-(Final).pdf&ved=2ahUKEwj739KW–X0AhUMq5UCHWMPCJwQFnoECAcQAQ&usg=AOvVaw0QARnLoEE5KbMgfSI49zsR 

¹¹https://www.rollingstone.com/culture/culture-features/future-weed-formulations-patents-and-where-cannabis-is-going-next-781439/ 

¹²https://www.scielo.br/j/nec/a/9MsB6QhX6Q6yGrVstRgLfVL/ 

¹³https://www.google.com/amp/s/amp.usatoday.com/amp/3974601 

¹⁴https://books.google.com.br/books?id=sZ9MDwAAQBAJ&pg=PA35&lpg=PA35&dq=%22drug+policy+alliance%22+lobbying+uruguay&source=bl&ots=1D3CXh30dj&sig=ACfU3U3_SqS4552lBxTXMIp8h5E4CZsiDA&hl=pt-BR&sa=X&ved=2ahUKEwjO3IXkhOb0AhUfqZUCHQ0dDg8Q6AF6BAgrEAI#v=onepage&q=%22drug%20policy%20alliance%22%20lobbying%20uruguay&f=false 

¹⁵https://www.gub.uy/junta-nacional-drogas/comunicacion/noticias/informe-uso-excesivo-prision-preventiva-america-latina-afecta-manera 

¹⁶https://www.gub.uy/junta-nacional-drogas/comunicacion/publicaciones/monitoreo-evaluacion-ley-19172-aplicacion-justa-ley-seguridad 

¹⁷https://data.worldbank.org/indicator/SP.URB.TOTL.IN.ZS?locations=UY&view=map 

¹⁸https://www.google.com/amp/s/amp.france24.com/en/20150821-marijuana-cannabis-industry-law-thrives-uruguay-montevideo 

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