- Um tempo de revoltas abortadas
“Isso me traz a evocação de um bando de pássaros migratórios: este tem sua estrutura própria, sua representação no espaço, seu papel, sua trajetória determinados sem a reunião de um comitê central e sem a elaboração de uma linha justa!”
F.G.
“A emancipação social, se tiver que acontecer, será um salto no desconhecido sem corda de segurança, não a realização de uma sentença emitida pela história. O que está programado é a catástrofe e não a emancipação”
A.J
A gente pode se precipitar em certas visões que temos, antecipar as coisas por vir ou recolher apenas aquilo que já dá sinal de desaparição. De todo modo, a questão da visão está intimamente ligada com aquela do acontecimento: trata-se sempre de um exercício de visão, uma espécie de vidência política e também de mudança profunda de como se olha o mundo e se vê as coisas, mudança que acompanha uma mudança nas próprias coisas. Essas rupturas subjetivas são de extrema importância, mais do que se quer admitir, e estão intimamente ligadas com a formação de grupos e coletividades políticas, vínculos criados, comunidades erguidas, motins instaurados. E as pessoas não saem as mesmas desses processos, e nem o conjunto das práticas possíveis, seja a partir do desencadeamento de novas formas e processos de luta, seja a partir da recuperação dos órgãos de lutas criados, de suas reivindicações e táticas, seja ainda a partir de suas dissoluções e esgotamentos para se criar outra coisa, em outro lugar e em outro momento.
Mas em todas essas experiências de luta se trata de um mesmo problema objetivo e, em certo sentido, indecidível, na medida em que, do ponto de vista da mutação da História, não se trata de uma escolha entre possíveis dados, mas daquilo que está em vias de se fazer ou criar. Essa instância problemática e objetiva insiste no corpo social e assombra esse corpo, insistindo como um imperativo prático de mudança e transformação social. É como um fragmento do futuro que eclode no seio do próprio presente histórico e tem uma espessura própria. Essa instância, que chamamos aqui de acontecimento, rompe na realidade de tempos em tempos, na forma de greves, motins que duram dias, ocupações generalizadas etc., e as forças populares vivem de fato esses eventos como momentos de vidência: elas veem o intolerável da sociedade e, ao mesmo tempo, enxergam e são tomadas por vetores de transformação, por uma situação que as excede e com a qual se relacionam a partir de uma aprendizagem, uma experimentação. Já foi relatado diversas vezes que de Junho de 2013, das ocupações de 2015, ou mesmo de um gesto como a queima de estátuas, as pessoas envolvidas são também transformadas, não saem as mesmas, nem seus repertórios de luta. Mas também os efeitos desses acontecimentos não são localizáveis no campo social e não se confundem com sujeitos identificáveis, atuando de maneira imperceptível. E mesmo quando esses acontecimentos, essas revoltas, que eclodem de tempos em tempos são suprimidas, mesmo que não sejam assimiladas em suas exigências de transformação, essas rupturas momentâneas ainda ressoam no campo social, como algo que foi expulso, sem, entretanto, poder ser ultrapassado. Elas insistem e produzem efeitos à distância: permanência de crises políticas e de governabilidade, crises econômicas etc.
O imperativo prático que essa instância objetiva e problemática impõe ao campo social é, ao mesmo tempo, a exigência também de uma transformação subjetiva que implica uma transformação na própria maneira de se transformar a realidade social: exige novas formas de criação coletivas, novas formas de organização, de enunciação dos problemas sociais e de subjetividades ligadas às formas de criações coletivas e formas de enunciação. Sem essa contrapartida, as agitações conjunturais e as transformações subjetivas que elas desencadeiam podem ser facilmente recuperáveis por velhos aparelhos e instituições como a Família, a Igreja, a Nação e recrudescer as aberturas de novas formas de subjetividades políticas e de organização social.
É possível dizer que essa dimensão de acontecimento que as revoltas sociais assumem, como uma ruptura que rompe no inconsciente social e nas cadeias causais históricas (econômicas, políticas, linguísticas, organizacionais etc), sempre permeou todas as revoltas e conjunturas de transformação social, marcadas por guerras civis, por processos de desinstitucionalização e reinstitucionalização, por uma agitação barulhenta e visível, e que, além disso, em cada uma dessas conjunturas se está em jogo não simplesmente a mudança, mas uma mudança na maneira de mudar. Mas isso tudo se complica. Pois parece estarmos num tempo em que as próprias análises de conjuntura são transformadas, principalmente em suas pretensões teleológicas e científicas. Datar isso pode remeter ao início das primeiras manifestações de uma crise permanente do capitalismo, na década de 70 e com a contrarrevolução permanente, que vivemos até hoje como gestão da crise fundamental do capital. A questão poderia ser assim colocada: os elementos que caracterizavam para parte da esquerda uma conjuntura revolucionária se tornaram permanentes, vivemos num tempo de constantes processos de desinstitucionalização e reinstitucionalização que passam, inclusive, ao largo do Estado; também vivemos um contexto de guerra civil generalizada, e também de motins e revoltas em vários partes do globo em espaços de tempos relativamente curtos. Estamos numa época que os programas e projetos prévios e unificadores de Partidos que pretendiam dirigir a emancipação social e encaminhar a expectativa social na forma de acumulação de forças, acreditando ter a setença da História ao seu lado, são superadas pela força destituinte de acontecimentos incessantes, revoltas que pululam, no aqui e no agora, de maneira imprevisível em todo canto do mundo e que mostram como essas formas existentes de mudança social se tornaram um obstáculo aos atuais imperativos práticos. Bem como se tornou caduca qualquer análise sobre as “condições objetivas” que tornam possíveis ou impossíveis transformações sociais, a não ser para fins oportunistas e de pacificação, pois nossa história extremamente recente dá mostras de como as multidões ultrapassam e questionam o tempo inteiro as “condições objetivas”, criando aquilo que parecia impossível.
Ora, é nesse contexto que a extrema direita se fortaleceu. Ela soube, de diversas maneiras, subjetivar esses processos, soube dar soluções, ainda que falsas, a esses processos pelos quais multidões realizam um desinvestimento do campo social, se desligam das relações sociais automatizadas e em relação ao qual a esquerda progressista não soube reagir a não ser de maneiras repressiva, se fechando em si mesma. A extrema-direita é, nesse sentido, uma forma de captura dos desinvestimentos sociais, dessas linhas de fuga em relação ao campo social. A crise social, portanto, é também uma crise das formas de subjetivação gestadas em ao menos três décadas de neobeliralismo progressista, para reterritorializá-las em formações de poder ainda mais solidificadas, mais rochosas e violentas, que aparecem aos olhos da esquerda progressista como “arcaismo” ou “regresso”, mas que goza, na verdade, de um futurismo (apocalíptico e integrado), de uma atualidade funcional cujos ares de “atraso” nada nos ajudam a compreender. Diante do fracasso da esquerda de criar outras formas de existências coletivas que fossem capaz de dar consistência a esses desinvestimentos em relação a ordem capitalista e colonial, inclusive pelo fato de a “esquerda” nas últimas décadas ter se mostrado uma ótima gestora e especialsita em operações de garantia da lei e da ordem, a extrema-direita conseguiu captar os desinvestimentos e inscrevé-los em formas de eternização e repetição daquilo que está em crise: o sacrifício em nome de Deus, da Nação, do Mercado, da Raça, do Sexo, em defesa da sociedade e contra toda a “escória”, que se opõe moralmente ao trabalhador e cidadão de bem. Quando se diz, por exemplo, que Junho de 2013 foi responsável por produzir o bolsonarismo, o que se oculta é toda reação repressiva aos protestos, sobretudo aos seus elementos “irresponsáveis”, as ações “selvagens”, por parte do PT e da esquerda que gira ao seu redor. Recuada diante de uma multidão que colocava em questão todo seu repertório e universo referencial militante, a esquerda progressista tomou uma atitude paranóica. A esquerda não soube assimilar Junho, por se encontrar numa posição de governo e de gestora do capitalismo a partir de suas políticas de compromisso que entraram em colapso.
Mas não é preciso remontar a Junho. Podemos remontar à 2020, no contexto dos protestos realizados em maio pelas torcidas antifascistas e dos atos de 07 de junho seguindo a onda de revoltas anti-racistas disparadas pela morte de George Floyd no mundo todo. Os atos do dia 07, que tinham um potencial de eclodir, foram controlados de cima para baixo e pacificados. Não só foram transformados em palanque, mas a esquerda institucional abandonou de fato as pessoas do ato para a repressão policial, havendo um saldo de 32 pessoas presas sem que houvesse um pronunciamento ou reação por parte dessa esquerda.[1] Mas também nos atos que aconteceram esse ano (2021) vemos ser atualizada a mesma atitude da esquerda diante das possibilidades de revolta. Se há algo que a esquerda institucional aprendeu com os sucessivos acontecimentos de revolta é como pacificar e matar por dentro qualquer possibilidade de revolta.
Mas de todo modo, as revoltas que aconteceram esse ano evocaram experiências passadas ou análogas com as que ocorrem em outros países, continentes, territorialidades ou mesmo por outros grupos. Essas experiências de luta se comunicam a partir de uma experiência de devir que perpassa de maneira imperceptível diversos pontos do mundo, toda uma cartografia intensiva das ações e das curvaturas que elas produzem no tempo e no espaço de um mundo que bate conforme o ponteiro do desastre permanente, ponteiro que marca a queima do futuro e um tempo do fim que tem o péssimo gosto de se adiantar: revoltas pós-2008, incluído aí junho de 2013 e as ocupações de 2015, Peru, Paraguai, Chile, Colômbia, Haiti, os breques dos app’s, a revolta de indígenas no Brasil contra PL 409, a luta contra o genocídio da população negra, a luta contra o desemprego, a greve pela vida nas escolas etc. Na comunicação entre essas experiências díspares trata-se menos de imitar essa ou aquela ação ou estratégia desenvolvida aqui e ali. Também não se trata de uma ruptura identificável e localizável: seria inútil procurar quando e com quem começa, as coisas racham no inconsciente coletivo, produzindo variações nas relações de força do conjunto do campo social, e essas rachaduras das coisas se comunicam.
Antes, trata-se de reproduzir um gesto, uma atitude em relação a um mundo, que é aquela de tomar nas próprias mãos a capacidade de agir, de produzir uma mutação existencial de larga envergadura, de ir roçando os muros aqui e ali para liberar seus tijolos – e nada temos de lamentar que alguns deles se dirijam contra a PM, bancos, concessionárias etc. De todo modo, trata-se de desalienar as forças que criam o mundo e devolvê-las sua autonomia de traçar seu próprio destino, destino imanente, com sua própria racionalidade, sua própria superfície e que não espera a sanção do juiz, do Comitê Central, do Partido e do Sindicato, dos Cientistas de Conjuntura e nem do telos da História, que deu mostras que não tem Happy Ending e que não se desenrola ao nosso favor.
Ora, é esse gesto que as organizações partidárias e burocráticas, bem como alguns grupúsculos que praticam uma relação substitucionista ou representativa em relação às “massas” (os porta-vozes da palavra da Classe), não suportam. Diante dessas ações, toda brecha que se tem para de fato produzir algo novo é logo fechada, e não só pela ação da PM. Nesse sentido, as organizações partidárias têm desempenhado o papel de disseminar esterilidade do ponto de vista da criação de novas formas de organização, de ação e de subjetividade capazes de darem consistência aos processos de mutação existencial no qual as pessoas se implicam. As organizações representativas e burocráticas agem, assim, como aparelhos produtores de reificação das “massas”, transformando-as em objetos representáveis e governáveis pelas organizações como “tomada de consciência”. São, assim, obstáculos para a criação de novas formas de auto-organização e de territorialidades políticas que não se reduzam a um modo de gestão e participação dentro dos quadros do capitalismo. Mas também operam como aparelhos policiais no seio da própria revolta, buscando impor a repetição no Mesmo toda vez que um mínimo de criação e de destituição do mundo existente cintila na realidade social.
Diante de ações como a da queima de estátuas, de incêndio e destruição de bancos e concessionária, a esquerda institucional e organizações hierarquizadas produzem e disseminam suas neuroses internas, seus mecanismos de defesa, autoconservação e narcisismo diante do que parece ameaçá-los do ponto de vista do seu sistema representacional. Trata-se, em parte, de um apego cego ao legalismo, uma dificuldade, uma negação da esquerda lidar com o fato que a luta de transformação desse sistema de poder e dominação significa sempre uma oposição ao seu sistema de direito e de legalidade. Toda formação social que se vale da forma-Estado gesta seu direito, sua Lei e seu Regulamento, tem seu Soberano e seu Legista. Entretanto, induzindo a uma reconfiguração profunda da forma-Estado pela forma-Dinheiro que se torna determinante e a própria finalidade social (acumular dinheiro), o capitalismo tem um sistema de direito e de regulação social que funciona na condição de que a acumulação se exerça sem entraves, mesmo que uma acumulação simulada nas bolsas de valores e nas especulações imobiliárias. O Soberano que decide sobre a exceção já não é o Déspota com suas relações de filiação/descendência e nem de aliança com o Divino, mas o Dinheiro e acumulação via produção de mercadorias. O Poder Social já não está sintetizado no Estado, mas no Dinheiro, que se carrega no bolso e se pode enfiar na boca. A violência, assim, se torna a violência do dinheiro e da mercadoria, formas de riquezas e poder social racializadas e sexualizadas. Num contexto de crise permanente, para manter o lucro e acumulação, ou simplesmente para que parcelas da população tornadas supérflua permaneçam no jogo mercantil, sacrifica-se parcelas da população, aumenta-se a produção, distribuição e consumo de armas, e se intensificam as caçadas e guerras sociais contra minorias sociais, inclusive guerras e caçadas levadas a cabo pelas minorias umas contra as outras: a permanência no mercado a todo custo envolve, inescapavelmente, um ethos viril e, agora, militarizado tanto no andar de cima, pela elite econômica e política, quanto no andar de baixo via mercados ilegais de toda espécie (do tráfico às milícias que vão tecendo relações cada vez mais estreitas) com suas formas de regulação e concorrência territoriais pelas fatias do bolo monetário e de poder, toda uma hierarquia no andar social de baixo cujo eixo estrutural é não só as relações econômicas, mas também raciais e cispatriarcais pelas quais as relações bélicas se estabelecem como regime necessário para reprodução da totalidade social.
Mas parte da esquerda, diante dessa carnificina, parece se erguer como guardiã da sacralidade da propriedade e dos monumentos de terror do Estado. As organizações de massa e certos grupelhos, diante de uma população arrebentada e precarizada, se impõem como autoridades paternalistas, produtoras de consciência moral não só a partir da produção da cisão entre trabalhadores-vagabundes, manifestantes-vândales, mas introjetando nas pessoas revoltadas esse conflito: conter em si seu “vandalismo” potencial, reforçar a culpa e o medo em detrimento da capacidade de se criar grupos finitos e provisórios que consigam, em dado momento histórico, tomar as forças sociais em suas mãos. Em suas formas de produção da “consciência” essas organizações se reconciliam com a forma burguesa, racista e patriarcal de “pessoa”, inclusive colocando es de baixo contra si mesmos, criando hierarquizações políticas fundamentadas, no fundo, numa concepção moral da política e da história. Ali onde a culpa e o medo são suspensos por uma nova forma provisória de coletividade política, PT, PCB, PSOL, MTST, PCO etc., com suas correntes de transmissão (suas juventudes, sindicatos e movimentos sociais) emergem como últimos agentes de um sistema de repressão-recalcamento capaz de devolver à ordem sua capacidade de recuperar e reinscrever numa ordem “objetiva” e reificada as forças sociais: “olha, a partir daí é desordem, caos, desorganização”, “a partir daí vocês já não são mais classe trabalhadora”, “se vocês fizerem isso, vai haver repressão e a culpa será de vocês”.[2]
Busca-se bloquear qualquer veleidade de agir de maneira autônoma e sem tutela por parte das bases ou das “massas” (um termo que deveria há muito ter sido jogado na lata de lixo da história). Para além do apego ao legalismo, nesse caso trata-se de uma forma de organização baseada na representação das multidões a partir da qual se consegue ter em mãos a capacidade de se firmar políticas de compromisso e de negociações com o aparelho de Estado. Aqui é, portanto, preciso considerar duas coisas. Primeiro, a inibição à radicalização no ato nada tem haver com a massificação: só no 19J (2021) havia cerca de 100 mil pessoas na Paulista, com organizações com quadros massivos de militantes, e mesmo assim se opuseram a simples ação de fechar mais uma via da avenida Consolação. Ações mais radicalizadas já foram realizadas e feitas com muito menos do que isso. A massificação é sempre uma falta, nunca é suficiente. Mesmo em 2013 não era o momento para essas organizações de “massa”. Segundo, a inibição da radicalização está, antes de tudo, ligada à manutenção do controle, em impedir que as coisas escapem, a um mecanismo de defesa dessas organizações para se preservarem, bem como de preservarem o controle sobre seus militantes diante das ações de “elementos irresponsáveis” e da possibilidade disso desencadear processos coletivos que afetem, à maneira de um contágio, o conjunto da cadeia social no seu nível inconsciente. Nesse sentido, é compreensível que a condenação e a violência contra determinadas ações seja feita por movimentos que, inclusive, utilizam desses métodos quando se trata dos interesses internos, da “consciência de classe” produzida pelas organizações das quais participam. É compreensível que eles reprimam outras pessoas também trabalhadoras, indígenas, negras etc.
É no inconsciente coletivo, apesar do “interesse”, da “consciência” e do programa declarado, portanto, que essas organizações burocráticas e pretensamente representativas da classe trabalhadora e das minorias fincam suas raízes. Elas produzem, nesse sentido, neuroses obsessivas (conjuração ‘consciente’ de forças diabólicas que batem à porta de seus quadros militantes) e, no extremo, paranoias (a presença disseminada de infiltrados que querem estragar “suas” manifestações e que levam até firmar compromisso com o aparelho repressivo do Estado). A neurose e a paranoia devem ser entendidas aqui menos como entidades psicológicas ou psicossociológica do que formas de produzir e organizar o desejo coletivo, de produzi-lo segundo uma determinada lógica de relações verticalizadas e marcadas por mecanismos de defesa diante daquilo mesmo que se diz representar, que marcam os conflitos e oscilações na relação entre formas de organização e formas de manifestação do desejo coletivo que escapam às formas de organizações hierarquizadas, exteriorizadas e suas formas de codificação da militância. É o caso, por exemplo, do conflito de determinadas formas de organizações e as oscilações diante de fenômenos do tipo ações diretas ou de fuga em relação às formas representativas de organização para a criação de estratégias imanentes ao próprio movimento político em curso. Quando esse conflito se instaura, toda oposição e separação imaginária é estabelecida. Assim, é no nível do inconsciente que se trama fenômenos de desconhecimento que cindem o campo político e estratégico em oposições imaginárias do tipo trabalhadores/vagabundes; manifestantes/vândales; comunistas/autonomistas, e que assumem até uma espacialização em certas circunstâncias. Há também toda uma cartografia efêmera e observável, opondo o carro de som com sua tropa à primeira linha e à emergência de ações não previstas no horizonte do Déspota em movimento. Apaga-se, nesse sentido, o fato que a primeira linha dos atos era composta em sua maioria por setores sociais marginalizados O pecado, nesse sentido, não é que não havia “massa” suficiente, mas é não terem a “consciência de classe” do PSOL, PCB, MTST para “saberem” o que é ou não eficaz, quando é ou não o momento; o pecado é não se submeterem à catequese desses grupos. O que rendeu a exclusão do bloco autônomo, bem como de atos descentralizados como dos Comitês de Zona e da Revolução Periférica do ato legítimo da Paulista acordado com a PM. Ou seja, não bastasse a deslegitimação das ações em nome de uma pretensa ciência estratégica, houve cooperação ativa com a repressão.
E apesar disso, após fato consumado, quando certas ações encontram receptividade no campo social e desencadeiam novas formas de subjetivação, essas organizações podem até se mostrar favoráveis, com risco de perder a legitimidade, mas sem que haja qualquer reavaliação substancial do ponto de vista do poder e organizacional, é o que aconteceu com o incêndio da estátua do Borba Gato.
Reich, diante do fato de que as massas populares empobrecidas haviam aderido ao fascismo, dizia que para a psicologia social “o que se pretende explicar não é por que motivo o esfomeado rouba ou o explorado faz greve, mas por que motivo a maioria dos esfomeados não rouba e a maioria dos explorados não faz greve.” (Wilhelm Reich, Psicologia de massas do fascismo). Que as massas adiram a sua própria servidão, isso nada tem a ver com um desejo espontâneo, mas é resultado de toda uma tecnologia social que produz o desejo, submetendo-o às condições determinadas, toda uma economia libidinal imanente à economia política: desejo de desenvolvimento e crescimento econômico, de trabalho, de dinheiro, desejo racista de Borba Gato, desejo cisheterossexual de dominação, desejo de poder do Estado e de suas personificações etc. No interior dessa tecnologia social, as organizações integradas da esquerda cumprem um papel funcional de controle, gestão populacional e individual a partir da pilotagem subjetiva, com suas palavras de ordens marteladas e suas fórmulas repetidas independente das circunstâncias em que nos encontramos. De um ponto de vista da economia libidinal, para além dos interesses ou da “tomada de consciência”, a posição do desejo dessas estruturas organizacionais e de poder é reacionária, é desejo de ordem e de conservação das formas elementares de determinação da vida social.
Parcelas da população no Brasil vivem já há anos sob a humilhação, a violência, a subjugação, a obstrução da própria possibilidade de conseguir sobreviver: é uma humilhação de segundo grau, que já nem passa por aquela do “mundo do trabalho”, que parcelas da população, sobretudo as racializadas e sexualziadas, nunca adentraram de fato, encontrando como destino o desemprego, a viração, o trabalho sexual. Num cenário como esse, as populações deixam de acreditar cada vez mais nesse mundo, de tempos em tempos as pessoas perdem a esperança: a espera atualmente se tornou, inclusive, um mecanismos de tortura, basta ver a grande zona de espera que são atualmente as prisões.
O Estado, nesse quadro, mantém uma ordem que já perdeu seus créditos conforme suas próprias bases, uma História oficial que já perdeu sua força, ou que só pode se justificar pela força: as milícias são o maior exemplo de uma ordem que não existe, ou melhor, que existe em estado de suspensão perpétua, de uma ordem que só se impõe sob as forças da desordem e da ilegalidade como forma de governabilidade de um mundo que vai se tornando supérfluo e descartável. As milícias não são o oposto da ordem e da lei, elas são a manifestação das suas forças mais originárias de reprodução dessa ordem, de uma violência que é própria desse mundo povoado de mercadorias, estruturado pelo racismo e pelo cispatriarcado. A luta partilha, em parte, esse terreno de exceção, mas buscando cair fora disso, atacando aquilo que são seus símbolos de legitimação, suas relações de produção e buscando neutralizar seus dispositivos de reprodução. Não se trata da mesma violência.
Mas é essa exigência (a da ordem) que parte da esquerda visa cumprir, desempenhando o papel de polícia, no seu sentido mais originário, que apareceu no século XVII: o de garantir o equilíbrio de um campo de forças divergentes e o desenvolvimento ou bom uso dessas forças no interior de uma realidade econômica, regulada pelo Estado, em constante expansão. O sentido do termo polícia, nesse sentido, era muito amplo, objeto de economia-política, estatística, medicina social e tantas outras instituições. É tendo isso visto que dizemos que, ao lado das forças repressivas do Estado, certas organizações da esquerda compõem um dispositivo de segurança fundamental: o da função de polícia. Parte da esquerda quer vender esperança, quer nos fazer acreditar no desenvolvimento possível de um certo mundo em que ninguém acredita mais, quer nos fazer acreditar na saúde das instituições, nas vias da democracia representativa, na acumulação de forças que sempre adiam a ação de cair fora dessa merda toda, quer nos fazer acreditar que nas eleições de 2022 as coisas irão ou poderão melhorar e que, após esse momento de crise, resolvido por um bom tecnocrata, a aurora virá, com “pleno emprego”, crescimento econômico e tudo em cima! Mas com a condição que as pessoas fedidas não reclamem demais e não percam a esperança. Dada a crise fundamental do valor, a tendência irreversível do capitalismo a um processo de informalização da economia e do poder – no qual o processo de privatização e desinstitucionalização, inclusive do uso de armas de fogo para administração de territórios e reprodução forçada de vínculos sociais esgarçados – são um sintoma, é a própria esquerda institucional ou proto-estatal que vai ficando sem objeto, se transformando numa espécie de arcaísmo incapaz de oferecer um novo modo de organizar e produzir a vida coletiva.
- Quando ganhar é também perder
Mesmo diante dessa situação, a esquerda institucional continua seguindo o mesmo protocolo, que, desde que sofreu o golpe, consiste em mobilizar todas os esforços para voltar a ser governo e disputar a gestão da catástrofe. O PT chega, inclusive, a considerar alianças com Geraldo Alckmin, cotado a ser vice do Lula. O que não deixou de suscitar críticas, apesar de algo desse tipo ser esperado por parte do PT, que realizou políticas em diversos pontos semelhantes.
Contudo, a esquerda progressista, apoiadora do PT, está neutralizando as críticas que estão sendo feitas à aliança Lula-Alckmin, o que é sinalizador do horizonte rebaixado no qual a política, em última instância, é reduzida à alternância de gestão. Nesse contexto, o que pesa é menos as forças populares e sua revolta capazes de encarnar um processo de transformação social, do que a aliança com os de cima para garantir a governabilidade da crise – o que significa garantir o lucro dos bancos, os interesses do agronegócio, o encarceramento em massa, a militarização social etc. O argumento de legitimação dessa aliança consiste em dizer que o que importa, antes de tudo, é derrotar o fascismo, e que, nesse sentido, pouco importa quem estará de vice, se fará aliança com o diabo ou o que for. O que importa é seu efeito: mandar os fascistas de volta para o bueiro. Supondo que não importe que Alckmin seja outro genocida, supondo que não importe seu papel no extermínio e encarceramento da população negra, indígena e periférica quando foi governo de São Paulo, supondo que suas políticas repressivas não importem, supondo, enfim, que tudo isso possa ser relativizado diante do mal maior que nos acomete. Ainda assim o argumento é forçado. Poderia ser só um “é o menos pior”, ao invés da narrativa redentora de uma frente tão ampla contra o fascismo que inclui inclusive alguns fascistas. Sem falar no horizonte rebaixado de derrotar e destruir o fascismo com as eleições, com tanto respeito à institucionalidade e à democracia representativa a ponto de durante todo o ano muito pouco ter sido feito de fato contra o Bolsonaro e seu governo por parte da esquerda institucional, que já estava há muito tempo se preparando para voltar ao governo e fazer a gestão da crise que produziu e reforçou a própria extrema direita.
É um fato que a extrema direita ganhou muita expressividade nas eleições e que é bem provável que continue assim, como continua mesmo nos países em que governos mais progressistas se restabeleceram, na medida em que ela se alimenta da própria crise cobiçada como objeto de administração.[3] E não há nenhum horizonte que vá além da catástrofe e da gestão das formas sociais que produzem a catástrofe. Parece que é só isso mesmo, sem nenhum horizonte de se fazer de fato uma mudança na forma de organização social.
Quem esteve nas ruas sabe a praticamente ausência do PT nos mais diversos atos, exceto o Grito dos Excluídos. E não só isso, há também o papel da esquerda institucional em geral de conter qualquer revolta de fato, inclusive fazendo acordo com a PM. De modo que a comparação da situação do Brasil com outros países da América Latina, como o Chile e o Peru, que queimou as ruas por causa de um “golpe democrático”, é também bem forçada. Nesses países houveram revoltas intensas que abandonaram a mera defesa da institucionalidade a qual a esquerda aqui se agarrou e se fez de gestora repressiva contra as próprias pessoas de baixo que se revoltam diante violência brutal, ao mesmo tempo que coexistiu ‘democraticamente’ com o fascismo que diz combater. No Chile houve uma reconfiguração da esquerda que foi produzida por processos insurrecionais – mesmo que essa reconfiguração acabe se mostrando, e está se mostrando, uma espécie de “syriza”, uma renovação das formas de se estabelecer políticas de compromisso via representação.[4] Aqui até hoje há quem espera o PT fazer autocrítica, ao mesmo tempo que ele segue fazendo o mesmo de sempre, as mesmas alianças, os mesmos discursos, as mesmas propostas. A expulsão da revolta, sua repressão e controle em parte pela própria esquerda se constitui como a condição do retorno do PT e de repetição do mesmo: sua hegemonia é também sintoma de uma derrota das ruas, algo inverso do que ocorreu em outros lugares da América Latina. Nada de novo, de modo que a aliança com o Alckmin, nesse sentido, é algo bem esperado, segue a inércia da esquerda institucional que vai cada vez mais ficando parecida com a direita, apesar de ainda manter um controle e influência muito grande sobre a base e suas lutas, dando condições para as políticas de compromisso.
Há, assim, uma redução da dimensão do problema que vem com essa fé enorme na institucionalidade, abandonando o que é uma tradição da luta des de baixo, das ações diretas, de ir para além da forma da lei. Até porque o bolsonarismo não se ancora e nem nasce aí, não surge com a eleição do Bolsonaro e nem com um desvio de percurso no seio do funcionamento das instituições. Ao contrário, o bolsonarismo se fortaleceu inclusive com o “desenvolvimentismo punitivo” dos governos do PT e da esquerda que se tornou sinônimo de establishment (“tudo farinha do mesmo saco, mas uns piores outros menos piores”) e que ainda continuará desempenhando esse papel, gerindo a dinâmica da realidade social e as descrenças em relação à própria institucionalidade e em relação à própria esquerda e seus representantes, tão democráticos quanto o Alckmin.
Por Agnes de Oliveira Costa – Mestranda em Filosofia, Travesti terrorista de gênero em tempo integral e militante.
As fotos que ilustram o artigo foram tiradas no ato Fora Bolsonaro do dia 3 de julho de 2021 em São Paulo.
[1] Protesto antirracista e contra Bolsonaro em SP termina com bombas e pelo menos 32 detidoshttps://ponte.org/protesto-antirracista-e-contra-bolsonaro-em-sp-termina-com-bombas-e-pelo-menos-29-detidos/
[2] Veja, por exemplo, as posições do PSTU e MST/Frente Brasil Popular: 1) PSTU – https://www.pstu.org.br/3j-pco-e-black-blocs-fazem-o-jogo-de-bolsonaro/; 2) MST/Frente Brasil Popular – https://www.facebook.com/623779227/posts/10159755129784228/;
[3] É necessário atentar para os limites das festejadas renovações dos governos progressistas na América Latina, inclusive com destaque no seu imaginário e horizonte balizados pela ideia de progresso e cujo lastro são a permanência e ampliação de políticas econômicas neoextrativistas, além da permanência de uma política de reprodução da crise cujo efeito é a ampliação da inflação e da fome – o que reforça as bases político econômicas da extrema-direita . Assim, na Argentina houve protestos recentes do povo de Chubut e Mapuche contra a política extrativista do governo nacional e local e a aprovação da “Lei de Zonificação”, que autoriza a mineração na região de Chubut. Em decorrência do aumento dos incêndios na região sul, em março de 2021, realizados para ampliar a mercantilização das terras, houve morte, pessoas desaparecidas e centenas de pessoas que foram expulsas de suas casas por conta do fogo. No mesmo mês, manifestantes apedrejaram a comitiva do Presidente Alberto Fernández, que se reunia com o governador da província de Chubut, Mariano Arcioni. Em dezembro, a Lei de Zonificação foi aprovada pelo governo de Chubut, a população como reação atacou prédios legislativos e bancos. Houve detenção e relato de pessoas desaparecidas. O governo de Fernández desde o início repudiou as ações diretas legítimas da população, fazendo coro com o governo de Arcioni. Ver: “Manifestantes apedrejam veículo que transportava presidente da Argentina” – https://bityli.com/YeVUf; “Que el gobierno de Chubut arda” – https://bityli.com/hBVJd; “Mobilização popular consegue barrar projeto de megamineração em Chubut, patagônia argentina” – https://bityli.com/DIhnq. No Peru, o recém presidente eleito Pedro Castillo se afasta da esquerda e do partido Peru Livre, e se aproxima da direita, estreita laços com o Banco Mundial, BID e multinacionais, reiterando a defesa da propriedade privada e os interesses de consórcios neoextrativistas. Ver – https://bityli.com/rxeMq. No Chile, apesar da vitória de Gabriel Boric, é preciso atentar para a grande expressividade da extrema-direita nas eleições representa por José Kast (44,14% dos votos), além de cerca de metade da população que não votou, votou nulo ou branco, expressando um descrédito com a política institucional, mesmo num cenário em que a extrema-direita mostra forças nas eleições – https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/jose-antonio-kast-reconhece-vitoria-de-gabriel-boric-em-eleicoes-no-chile/.
[4] Veja, por exemplo, a recém edição, no Chile, de “El Método insurreccional” de Alfredo Bonanno, que apresenta um breve balanço das revoltas no Chile: “Neste território denominado $hile intensos dias de revolta generalizada foram vividos a partir de 18 de outubro de 2019. E embora ainda exista um nível significativo de conflito e de luta, foram muitxs xs que se viram envoltos em slogans e bandeiras de esperança a fim de aprovar uma saída política através de um plebiscito para uma nova Constituição, acordo “de paz” destinado a esmagar a revolta por meio da política, da representatividade e delegação por vias institucionais.” Ver – https://bityli.com/XloDX
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