Série: maconha pro povo!
Parte 3: Por que a Guerra às Drogas no Uruguai não Acabou.
Aviso: este texto contém anarquismo. O uso pode causar vício. Se persistirem os sintomas a insurreição, expropriação e abolição do capital e Estado deverão ser considerados.
“Temos que legalizar a maconha para acabar com a guerra às drogas!” Essa talvez seja uma das retóricas mais comuns no cenário antiproibicionista. E sem dúvida alguma, esteve no centro da “legalização” da maconha no Uruguai. Próximo de aprovarem a lei da ganja, algo como um em cada 3 homicídios no país estavam ligados ao tráfico. Em pesquisas de opinião entre os apoiadores da liberação da erva, a principal razão apontada era a diminuição da violência. E de fato, a questão da segurança pública esteve no centro dos discursos do então presidente “Pepe” Mujica. “Qual o problema dessa vez, seu estraga prazeres?!” Você talvez esteja se perguntando. Bem, alguns.[1]
A “legalização” da Cannabis no Uruguai teve como ponto de partida a tal da “Estratégia por la Vida y la Convivencia”, uma campanha nacional pela regulamentação da ganja, sob a perspectiva da segurança pública. A campanha não veio do nada. A população uruguaia, especialmente de classe média, associava a maconha aos problemas de violência urbana. (Não muito diferente da retórica, às vezes reacionária, de moralistas no Brasil). É importante entender isso, para compreender que a retórica de regulação da ganja estava intimamente ligada, no Uruguai, a uma retórica punitivista, de “vingança” contra os traficantes. Não à toa, a “Estratégia por la Vida” surgiu logo após três eventos violentos em Montevidéu, ocorridos em rápida sucessão, e, segundo as autoridades, ligados às drogas.[1] O povo queria vingança. Mas percebeu que a melhor forma de consegui-la seria atacando onde dói mais: nas finanças.
Na verdade, o objetivo de Mujica nunca foi “estender a bandeira branca” na guerra às drogas, e sim usar da lei como forma de VENCER a guerra às drogas. E como fazer isso? Simples (na cabeça dos legalistas) basta o Estado criar o seu próprio cartel de drogas e dizer que o resto das vendas são ilegais![2] [3] 💩 . Mujica foi explícito nesse sentido. Afastou em todas as oportunidades que teve a ideia de que a legalização seria sobre “liberdades individuais”, reafirmando inúmeras vezes se preocupar apenas com a segurança pública. “Isso não tem nada haver com liberdades; para mim é um problema de segurança, contra o narcotráfico. Eu expliquei isso de novo e de novo, mas as pessoas apenas escutam o que elas querem escutar”[2] esclareceu uma vez um Mujica um pouco irritado.
E a diferença nas ideias não é apenas formal ou filosófica. A questão se traduz nas políticas públicas. Na verdade, Mujica se opôs com unhas e dentes a liberar o plantio de maconha individual. E por que? Um memorando do Gabinete de Segurança da gestão de Mujica desenha com todas as letras: a grande preocupação seria as pessoas plantarem e venderem a sua erva. Segundo o relatório, uma situação assim seria “perigosa e descontrolada”[2]. Essa palavra resume tudo: controle. Nunca foi sobre acabar com a guerra às drogas, e sim sobre controlar as drogas. Por isso que a mesma lei que “legalizou” a maconha também aumentou as penas para a posse de pasta base de cocaína. Porque, na visão do Estado, era sobre atrapalhar o tráfico, mais do que sobre “legalizar” a ganja. No fim o cultivo individual foi aprovado, mas invasões e prisões em casas de pessoas com licença para o plantio são hoje muito comuns.[4] Na lógica do governo, a dona de casa que planta uma flor pra vender para um amigo é tão inimiga quanto o tráfico internacional de entorpecentes. São ambos inimigos do Estado, sedento por controlar um monopólio.
E o “plano brilhante” do Mujica deu certo? Claro que não! O Estado, no processo de criar seu próprio cartel, criou tantos obstáculos pra quem quisesse comprar a erva, que cerca de 80% dos compradores continuaram preferindo comprar do mercado ilegal! (Artigo anterior).
Os caras, na verdade, não conseguiram impactar muito o tráfico de drogas, mas vamos parar pra pensar por mais um momento o que esse objetivo significava: basicamente é o Estado insistindo em ver o vendedor de drogas como inimigo. Como um vilão maquiavélico de novela da Globo interessado em destruir toda a sociedade. E não como um cara marginalizado pela sociedade, que encontrou em uma profissão perigosa, com risco de vida, forma de conseguir pagar as contas.
Não está convencido de que o vendedor não deveria ter um alvo nas costas? Tudo bem. Então pensa por essa perspectiva: a guerra às drogas, como todo ativista canábico sabe, é usada para perseguir populações pobres e minorias. Isso vale para o Brasil, Estados Unidos, e também para o Uruguai, como dados do próprio país apontam.[4] [5] Se a ganja é liberada, mas o traficante continua sendo ilegal, o Estado continua tendo desculpas pra perseguir as pessoas de sempre! Mesmo que você acredite que o traficante é um ser “terrível” que “merece” ser trancafiado num sistema prisional horroroso, ainda assim vale pensar se vale a pena dar essa “carta branca” para o Estado sair prendendo gente pobre. E a “legalização”, como feita no Uruguai, abre margem para que exatamente isso continue acontecendo.
Segundo dados oficiais do país, após a “legalização”, as prisões por entorpecentes tiveram apenas uma leve queda. E pior, como afirma explicitamente o artigo “Prisión Preventiva En América Latina: El Impacto Desproporcionado En Mujeres Privadas De Libertad Por Delitos De Drogas”, publicado no site da Junta Nacional de Drogas[6] (órgão oficial do próprio governo uruguaio criado para monitorar questões ligadas a drogas) as principais vítimas dessas ações são mulheres, pobres de periferia! Pessoas às vezes com uma ou outra plantação de ganja, e que o Estado suspeita de venderem parte da produção. Mesmo com licenças sendo oferecidas para o plantio individual, a retórica de, sim, guerra às drogas, continua servindo para a polícia invadir casas, humilhar e prender pessoas. E como sempre, as principais vítimas moram nas periferias, também segundo dados oficiais.
A violência ligada ao tráfico também não apresentou grandes mudanças. Alguns especialistas chegam a considerar que pode ter aumentado com a legalização, na medida em que gangues precisaram rever disputas de território, dessa vez levando em consideração a ganja “legal”. [1] [7]] De uma forma ou de outra, o grosso da violência ligada a drogas no país, não envolvia, e continua a não envolver a maconha, e sim o tráfico de cocaína, em especial da pasta base. Liberar a ganja, somente, não poderia ter um efeito significativo nos índices de violência.[8] Qualquer especialista no assunto sabe disso, e provavelmente esses são pontos que foram levantados em reuniões que levaram à legalização. Se continuaram com a mesma retórica de “segurança pública” no decorrer da “legalização”, isso só pode ter se dado por dois motivos: 1) tornar a pauta mais atrativa, para parcelas mais “vingativas” da sociedade uruguaia, e 2) usar a maconha “legalizada”, na verdade, como instrumento de um controle social.
Ações recentes do governo uruguaio corroboram essa análise. Em 2018 houve um relativo aumento nos crimes violentos no Uruguai. As razões prováveis para o aumento são várias: recessão econômica, humores políticos entre a população, aumento da desigualdade social, e mesmo disputas internacionais ligadas ao tráfico de drogas, sem relação direta com políticas na área pelo governo uruguaio. Entretanto, a retórica utilizada pelo governo, buscou justificar um aumento no orçamento de segurança pública, dizendo ser necessário para melhor combater o tráfico de drogas. [7] Isso porque era tudo sobre acabar com a “guerra às drogas”.
Se isso numa lógica estadista já é ruim, fica ainda mais escancarado quando um liberal assume o controle do país. O presidente atual do Uruguai Luis Lacalle Pou vê na ganja “legal” mais que uma forma de encher o saco do tráfico. Vê como uma puta oportunidade de fazer muito dinheiro, meu! A ideia dele é fortalecer o turismo canábico. Mas daí, é claro, apenas com o Estado podendo vender.[9] Só tem dois problemas: primeiro que a produção “legalizada” de ganja é pouca, mesmo para a própria população do país, e segundo que o crime organizado continua com bastante presença, inclusive nas vendas para os turistas. Soluções: fazer mais “parcerias” com grandes fazendas, para fazer maconha focada no mercado dos turistas, e combater com ainda mais violência o mercado ilícito de maconha. E os caras não estão de brincadeira. Em 2020 o presidente sancionou uma lei, basicamente equiparando tráfico (inclusive de maconha) a crime hediondo, com penas mais longas, e menos chances de saídas temporárias. [1]
A coisa se torna verdadeiramente distópica quando a gente se lembra que o Uruguai, recentemente, aprovou o monitoramento automático da população por câmeras com reconhecimento facial e inteligência artificial.[10] A tecnologia será usada para combater crimes, e pode ter importância nos objetivos do governo de criar um monopólio sobre a venda de maconha.
Em última análise, é uma questão de pensar: a quem a legalização deveria beneficiar? A quem está beneficiando na realidade? Para refletir sobre isso eu decidi terminar o texto com uma entrevista de um agricultor, Emiliano Mumari, que ajuda a colher flores de maconha em um grande cultivo legalizado: “Há uma contradição porque, por um lado, o país se vende como a Uruguai da cannabis (…), e por outro você tem o Ministro do Interior perseguindo os produtores que, na realidade, são a base para que isso funcione, porque isso não é como plantar alface. Isso requer conhecimento, mas também paixão”.[11] Emiliano é um morador pobre da cidade de Canelones, periferia do Uruguai. As jornadas de colheita de ganja duram cerca de 10 horas, e requerem intenso trabalho braçal.
Por:

[1]https://www.scielo.br/j/nec/a/9MsB6QhX6Q6yGrVstRgLfVL/
[2]https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/1866802X20937415
[3]https://www.wsj.com/amp/articles/uruguay-legalizes-pot-recasting-drug-war-1386722497
[7]https://insightcrime.org/news/analysis/organized-crime-uruguays-uptick-homicides/
[8]https://diamantina.cedeplar.ufmg.br/portal/download/diamantina-2019/D18_486.pdf
[10]https://indela.fund/pt/uruguai-na-direcao-de-uma-populacao-sob-vigilancia-com-reconhecimento-facial/
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