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19 fev 2022

A luta de libertação nacional. Algumas experiências pessoais da África do Sul – Parte 4

Para ler as partes anteriores clique: parte 1, parte 2 e parte 3.

O mito do século 20 da ‘luta de libertação’

Depois de dezenas de ‘lutas de libertação’ nas quais os trabalhadores e camponeses estiveram na linha de frente da luta e foram jogados de volta na sarjeta pela elite recentemente ‘libertada’, as pessoas na Europa e nos Estados Unidos ainda preferem fechar os olhos a isso e continuar a agitar a bandeira para cada nova elite aspirante. Não foi o ANC ou Mandela que derrubou o regime do apartheid, foi a classe trabalhadora, especialmente os trabalhadores industriais, que levou a sociedade à beira do colapso. O ANC, o SACP e seus senhores da URSS simplesmente usaram essa luta da classe trabalhadora para colocar o seu pessoal no poder.

Esta lacuna entre a experiência das massas no terreno e a dos radicais europeus e norte-americanos ficou evidente em uma grande conferência na qual participei em 1999 no Senegal. Foi convocado pela coalizão senegalesa de grupos de mulheres para tentar desenvolver uma campanha toda africana para exigir o cancelamento da dívida africana aos bancos mundiais. Dois temas surgiram repetidamente durante a conferência de três dias que contou com a presença de delegados de toda a África Subsaariana. Em primeiro lugar, a maioria dos africanos só pôde comparecer porque trabalhava para ONGs ocidentais que pagavam as suas passagens, do contrário, eles não poderiam ter ido. Isso significava que eles eram vítimas das agendas das ONGs que tanto desprezavam. Toda uma sessão foi sobre como eles poderiam se financiar para se libertar destes mestres coloniais. Em segundo lugar, e um ponto ainda maior, era o papel dos seus próprios governos. A maioria das pessoas presentes dos Estados Unidos e da Europa culpavam o Banco Mundial, s governos dos Estados Unidos e da Europa, mas muitos dos africanos, em vez disso, atacavam seus próprios governos. Estes governos, diziam eles, adoram culpar os bancos mundiais para se safar. Mas eles eram  parte de toda a rede global de forças que empobreceu a África, roubou as massas. Até que as pessoas se levantassem contra esses representantes locais do capital, ninguém estaria livre.. 

Então, aqui estava a mesma imagem no romance com o qual comecei – a Associação Internacional de Ladrões com pessoas como Mandela, ANC, SWAPO, Kwame Nkruma, Robert Mugabe e uma longa lista de outros ‘libertadores’, todos saudados pela ‘vitória’ de grande parte da esquerda, desempenhando seu papel na contínua opressão e exploração das massas.

Na África do Sul, virtualmente nenhum dos problemas da vida diária enfrentados pelas massas acabou, mas todas as pessoas ao redor do mundo que marcharam sob a bandeira do movimento anti-apartheid ficaram em silêncio. Por que eles não continuam protestando? Principalmente porque, à medida que Mandela se tornou o convidado favorito de todos para um jantar fantasia, eles acharam que a batalha estava ganha. Porque a chamada ‘libertação nacional’ foi destacada enquanto a libertação da exploração foi colocada de lado.

Então como apoiar as lutas das pessoas contra os sistemas de apartheid, governo estrangeiro e / ou militar, como na Palestina ou Mianmar? Dando apoio total ao único setor das sociedades oprimidas que lutará até o fim contra a exploração – as massas trabalhadoras. Tentando fazer com que os trabalhadores das nações opressoras ou vizinhas apoiem diretamente, de maneira prática, as lutas de seus irmãos e irmãs. Recusando-se a ficar calados sobre as intenções dos aspirantes a líderes burgueses dos “movimentos de libertação”.

Um século da ‘teoria dos dois estágios’ mostrou que em um mundo dominado pelo capital das superpotências, novas sociedades burguesas ‘democráticas’ não surgem como no século XIX. O que sai das ‘libertações’ são, em sua maioria, elites clientes e parasitas. Despóticos e corruptos, muito mais próximos em todos os sentidos de seus antigos senhores coloniais do que de suas próprias massas. O motivo de os radicais sentirem que precisam torcer por este bando de aspirantes a gângsteres se reflete em seus próprios conceitos de libertação.

Uma carta dos trabalhadores iranianos, 1991

Em visita a Londres, um grupo de sindicalistas sul-africanos se reuniu com refugiados iranianos e levou para casa esta carta escrita pelo falecido Yadollah Khosrovshaki, que estava no comitê executivo do Sindicato Nacional dos Petroleiros Iranianos que liderou a greve que ocorreu no coração da luta para derrubar o Xá. [14]

Caros Camaradas,

Acompanhamos com ansiedade sua luta contra o regime do apartheid. Temos consciência de que o apartheid não é simplesmente discriminação racial, negar-lhes os direitos democráticos, incentivando o desprezo e a degradação social. Juntamente com isto, o apartheid visa privá-los de sua parcela igual do produto social, do qual são o principal produtor.

Há dez anos nos levantamos contra o regime capitalista na esperança de nos emancipar dos mesmos sofrimentos que os seus. No decurso da nossa revolução, para mostrar a nossa solidariedade de classe, fechamos as torneiras do petróleo ao regime do apartheid na África do Sul.

Durante a revolução, todo um espectro de correntes políticas – que vão do liberal ao reformista ao islâmico – surgiu com o objetivo de sufocar a revolução. Estas correntes políticas já haviam começado a fazer acordos com os diferentes governos do falecido Xá e seus aliados internacionais antes da revolução.

No entanto, a revolução varreu o regime do Xá e infligiu um golpe severo à máquina opressora do governo capitalista. Os conselhos de trabalhadores cresceram rapidamente por todo o país.

Mas uma seção da classe capitalista, usando a ideologia islâmica, que era apoiada direta e indiretamente por todas as correntes políticas de direita e esquerda, chegou ao poder. Seu objetivo era reagrupar a classe trabalhadora e esmagar a revolução. Não tínhamos consciência de classe e, como resultado, perdemos terreno.

No início da revolução éramos fortes e o inimigo era fraco. A liderança do regime islâmico nos lisonjeou. Eles gritaram o seu apoio às massas carentes.

Mas, ao mesmo tempo, o regime islâmico ordenou que os seus Guardas Revolucionários atacassem e prendessem os trabalhadores sem-teto que estavam ocupando as casas deixadas pelos capitalistas que fugiram. Eles atiraram e mataram trabalhadores desempregados em marcha. Durante estes ataques, fomos informados: ‘Não façam greves. Greves, marchas por salários etc. enfraquecerão o governo diante do imperialismo.

Hoje entendemos, com muito pesar, que a única luta genuína contra o imperialismo é a luta incondicional em apoio às nossas reivindicações. O regime islâmico explorou habilmente a nossa ignorância e rapidamente se estabeleceu no cargo.

Durante a revolta, tomamos o controle do quartel do exército, capturamos as armas e as entregamos. Então descobrimos que estávamos sendo punidos porque ousamos desafiar o estado sagrado da burguesia.

Usando a religião, eles demitiram, prenderam e executaram comunistas e trabalhadores militantes dos conselhos de fábrica porque não eram muçulmanos. Nossa tragédia foi completa quando o regime restaurou o maltratado estado do Xá.

Hoje, sob o regime islâmico, a classe trabalhadora está privada até mesmo do direito básico de greve e de ter organizações independentes.

Camaradas, a amarga experiência dos trabalhadores no Irã mostra que também na África do Sul o ANC e Nelson Mandela estão desempenhando o mesmo papel que o regime islâmico.

Acreditamos que o ANC seja uma corrente burguesa. Agora que o apartheid está morrendo, seu objetivo é manter a velha ordem, gerando ilusões entre os trabalhadores e obtendo algumas concessões para os capitalistas negros. O ANC pretende se livrar de algumas das características do apartheid, mas manter a real exploração capitalista dos trabalhadores.

Esperamos que organizem as suas fileiras independentemente de todas as correntes não operárias e, suscitando imediatas demandas de bem-estar, democráticas e econômicas, assegurem as condições mais favoráveis ​​para marchar para a revolução socialista.

Trabalhadores do mundo uni-vos.

Para mim, esta é a verdadeira voz do internacionalismo da classe trabalhadora. Comece com este tipo de compreensão da natureza real das coisas e tente construir uma solidariedade prática com base em tal perspectiva.

Bob Myers

A tradução foi feita por Gabriel Junqueira, Gabriel Silva e Raissa Sato.

Notas:

14 letter from Iranian Oil Workers. p59 Is This What We Really Fought For. 1997. Index Books available to buy from https://booksfromindexbooks.wordpress.com/titles/
The two books, ‘Revolutionary Times’ and ‘Is this what we really fought for’ were edited by me in the final years of my attachment to Trotskyism. I wouldn’t agree now with some things I wrote then but this in no way detracts from the testimonies of the African militants that the books contain.

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