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14 mar 2022

O Capital e as Guerras do Fim do Mundo

    Entender a invasão da Ucrânia pela Rússia neste início de 2022 requer um percurso por algumas das questões não resolvidas deixadas pelo século XX, em especial a derrota da luta pelo socialismo e a reemergência do problema das nacionalidades. O texto a seguir tentará contribuir para esse debate com algumas contextualizações. Começaremos pela discussão sobre a relação da Rússia e da URSS com a luta pelo socialismo, faremos um parêntesis para apresentar algumas particularidades da chamada “esfera de influência” russa, passaremos pela trajetória da Rússia pós-soviética e seu reerguimento com Putin, pela reconquista do status de competidor geopolítico (coincidindo com a origem do conflito com a Ucrânia), pelo histórico das relações entre Rússia e Ucrânia no século XX, para chegar ao debate sobre a invasão de 2022; e concluímos com a relação entre as crises capitalistas e as guerras atuais.

    1. A Guerra Fria e a alternativa ao capital

Cartazes contra a guerra colados na Russia.

Muitos chamam a atual disputa geopolítica entre Estados Unidos e Rússia ou China de “nova Guerra Fria”. Essa denominação está redondamente equivocada, porque há uma diferença fundamental com o conflito que marcou a segunda metade do século XX. A Guerra Fria propriamente dita se estendeu desde o fim da Segunda Guerra Mundial (a guerra durou de 1939 a 1945, com a rivalidade entre os blocos em que se dividiram os vencedores se intensificando nos anos seguintes) até o fim da União Soviética e do bloco do leste europeu (entre 1989-1991). O principal aspecto que a torna diferente da confrontação atual é que a disputa do século XX trazia consigo o imaginário de uma alternativa societária ao capital. A URSS não era apenas um competidor geopolítico contra o bloco capitalista liderado pelos Estados Unidos, mas era também a representação da possibilidade de se lutar por uma sociedade socialista e comunista.

    Enfatizamos o aspecto de que se tratava apenas de uma representação de tal possibilidade, não de uma transição real para outro modo de produção. De saída, a superação do capital pressupõe a superação de todos os Estados nacionais, por isso uma disputa geopolítica entre blocos de governos nacionais jamais será um caminho em direção a essa finalidade, e sim um desvio na direção oposta. Mas a existência da URSS por várias décadas servia ao menos como um lembrete de que a revolução é possível, e ainda assim, enquanto mera representação, isso era suficiente para dar impulso à luta anticapitalista. Os lutadores desse campo divergiam (e ainda divergem) em graus variados quanto à condição da URSS como “modelo” para o tipo de transformação que defendem, sustentando posições que variam desde críticas moderadas até uma oposição radical, mas de qualquer forma, o debate se fazia com base na referência à experiência ocorrida naquele país. 

Ainda que as posições sobre o tema fossem variadas e até mesmo opostas em aspectos fundamentais, o imaginário da superação do capital associado à experiência da Revolução Russa animou as batalhas dos trabalhadores no mundo inteiro por quase um século. Estava presente como horizonte nas lutas que construíram o estado de bem-estar social europeu e estadunidense, nos processos de descolonização da África e da Ásia, nas revoluções na China, Vietnã, Coréia do Norte, nas guerras de libertação nacional da Argélia, Angola, Moçambique, etc., bem como nos esforços de vários países da América Latina para superar o secular domínio de oligarquias agrárias subalternamente associadas na pilhagem imperialista do continente, sendo o mais radical destes esforços a revolução cubana de 1959. Durante décadas muitos milhões de trabalhadores e dentre eles muitas gerações de militantes lutaram contra o capitalismo, o imperialismo e as autocracias, animados pela ideia de que era possível destruir esse modo de produção e construir um novo, ainda que imaginassem o caminho até esse novo e procurassem construí-lo de inúmeras maneiras diferentes. Estava implicada nessas lutas a possibilidade de se chegar a um mundo em que os trabalhadores seriam capazes de decidir sobre todos os aspectos de suas vidas, emancipando-se da alienação e da própria condição de trabalhadores.

    Tratava-se pois de uma representação e de um imaginário associado à existência da URSS, porque no plano material a sociedade de fato existente naquele país (e nos demais países citados que em diferentes medidas seguiram o seu “modelo”, com a ressalva das devidas particularidades históricas nacionais) tinha estacionado numa forma de transição interrompida, que rompeu com algumas características do sistema do capital, mas manteve outras. O primeiro aspecto relevante diz respeito ao fato de que a experiência ficou confinada em um único país, o que transformou a luta para superar um modo de produção global, o capitalismo, numa luta entre modelos nacionais, o dos Estados Unidos contra o da URSS. Isso por si só já representa um desvio fundamental, que não se pode perder de vista. Mas para prosseguir, precisamos delinear minimamente em que consistia o “modelo” da URSS e suas características. Essa forma de transição interrompida aboliu a propriedade privada de meios de produção, a alocação de recursos pelo mercado, a produção visando lucro, etc., mas manteve o trabalho assalariado, a extração de excedente, o dinheiro como representação da lei do valor, o Estado e suas burocracias, etc. Tal combinação esdrúxula foi o aborto que sobrou da Revolução Russa de 1917, mas seguiu sendo chamada de socialista e comunista pelo século XX adentro, tanto por uma parte de seus apoiadores como por detratores.

    Sendo um tipo de formação social híbrida, composta de constituintes estruturais que não se reforçavam reciprocamente, mas apontavam para tendências opostas, só restava à URSS e ao restante do socialismo “realmente existente” duas opções: aprofundar a ruptura com o capital, destruindo a burocracia e seu Estado, colocando os trabalhadores no controle, superando a lei do valor, o dinheiro e o trabalho assalariado (sempre ressalvamos que a superação do capital tem que ser um processo global, e o que caberia aos lutadores em cada país seria contribuir para tal processo, o que na URSS também não aconteceu); ou restaurar o capitalismo em sua completude, restabelecendo a propriedade privada, a alocação pelo mercado, a motivação do lucro, etc. A primeira opção começou a ser sabotada no dia seguinte à Revolução Russa pelos bolcheviques, que restauraram a gestão individual da produção, o exército permanente, a burocracia estatal, etc., destruindo as iniciativas autogestionárias dos trabalhadores em todos os campos e substituindo-as pela tecnocracia, que depois foi pilotada pelo stalinismo, com os resultados que conhecemos. 

Se é inadequado chamar a URSS de socialista, é muito mais chamá-la de soviética, já que o termo “soviet”, que é justamente uma palavra russa, significa conselho, em referência aos conselhos de trabalhadores, a forma embrionária da autogestão social que desponta em todas as revoluções como instrumento para a transição para além do capital. Os sovietes foram exatamente a instituição que o governo bolchevique suprimiu para instalar sua ditadura, bloqueando na origem as possibilidades da transição. Ainda assim, aleijada mortalmente logo no nascedouro, essa forma de transição interrompida sobreviveu durante décadas, em boa parte devido ao prestígio de ter destruído o imperialismo alemão na II Guerra Mundial. O uso dos termos socialista, comunista e soviético para se referir aos países que passaram pelas experiências revolucionárias do século XX está conceitualmente errado, mas já está também de certa forma sacramentado por força do hábito geral, de modo que, feitas todas essas ressalvas sobre o processo de transição, por uma questão de simplicidade terminológica, seguiremos empregando-os no texto daqui por diante.

No fim das contas, foi aquele segundo caminho, a restauração capitalista plena, que tragicamente prevaleceu. Mas este, por sua vez, se bifurcou em duas outras opções. De um lado, a via de um retorno “ordenado” ao capitalismo pleno, administrado pela burocracia estatal, num sistema em que o partido comunista manteve a sua ditadura, via esta que foi seguida por China, Cuba, Vietnã, etc. De outro lado, um retorno “desordenado” ao capitalismo, via que prevaleceu na própria URSS, com a desintegração do país (as 14 repúblicas que tinham sido associadas à Rússia proclamaram sua independência), a  privatização caótica do patrimônio estatal nas mãos dos antigos dirigentes soviéticos, uma séria crise econômica e social, etc. 

Consolidada a restauração capitalista plena nos países que passaram pelas experiências revolucionárias do século XX, o que temos agora no século XXI é uma disputa entre grandes potências capitalistas. Não há nesses grandes países e blocos capitalistas conflitantes, Estados Unidos, China, Rússia, União Europeia e Japão nenhum elemento que possa remeter, nem sequer remotamente, a uma disputa entre modelos sociais alternativos. Há apenas nuances em termos de estilos de gestão e assimetrias em relação aos tipos de poder que projetam: os Estados Unidos são a maior superpotência global, com um poderio inigualável em termos econômicos, militares e culturais; a União Europeia e o Japão são potências econômicas, mas com poderio militar e cultural declinante ou quase nulo; a Rússia é a segunda potência militar do planeta, mas é economicamente muito menor que todos os demais e culturalmente isolada; e a China é a segunda potência econômica do planeta, com um poderio militar em ascenção e uma projeção cultural suficiente apenas para consumo próprio, mas bastante para gerar orgulho e senso de autossuficiência. O restante dos países do mundo pertencem a alguma área de influência controlada por esses concorrentes principais, com pouquíssimas exceções, como Índia ou Irã, que preservam alguma autonomia, mas que projetam uma influência externa limitada. O que temos, portanto, é uma disputa entre os grandes poderes políticos e ideológicos para assegurar os meios de reprodução dos respectivos capitais imperialistas por meio da subordinação de áreas de influência. Um cenário muito distante das expectativas de transformação que o século XX presenciou. Não há por parte dos poderes que participam dessa disputa qualquer contestação aos componentes fundamentais do sistema do capital, a lei do valor, a forma mercadoria, a propriedade privada, a compulsão pela reprodução ampliada, etc. Muito pelo contrário, esses componentes são reforçados na disputa, e a lógica do capital é tomada como uma espécie de segunda natureza, como algo completamente imutável. Muito mais do que a Guerra Fria, o conflito atual lembra bem mais a paz armada e a corrida entre potências imperialistas que antecedeu a I Guerra Mundial, no início do século XX.

2. Vicissitudes da “esfera de influência” russa

Um trono jogado após o saque da residência do presidente do Cazaquistão em Almaty, no contexto do levante no Cazaquistão em janeiro de 2022.

De imediato, com a restauração plena do capitalismo no território da antiga URSS, houve uma queda brutal do nível de vida da população, exposta em indicadores sociais declinantes em todas as áreas (o salário real caiu ⅓ entre 1990 e 1998, o índice de pobreza pelos critérios do Banco Mundial saltou de 2% em 1988 para 13% em 1998, o índice de desigualdade de Gini saltou de 0,23 em 1990 para 0,40 em 1993, mantendo-se nesse nível desde então; dados disponíveis nesta pesquisa, capítulo 3, seção 1.4), bem como uma desaceleração econômica colossal (o PIB da Federação Russa teve queda de 50% entre 1990 e 1998, conforme a tese acima, página 154). O segundo artigo desta série, escrita em 2017, traz estatísticas sobre a queda da produção e a desarticulação econômica geral do país quando da queda do regime burocrático. Além disso, o conjunto dos textos relaciona, de maneira bastante competente, a retração econômica e suas circunstâncias políticas com a atual hegemonia conservadora e anticomunista vigente no país. O fracasso da URSS foi assimilado na Rússia como fracasso do socialismo, um trauma que é preciso deixar para trás, e os estratos dirigentes do país passaram a enxergar como sua tarefa histórica o reerguimento da condição de superpotência. A perda do “império” soviético foi vista por eles como uma grave humilhação internacional, que durou por toda a década de 1990, e que lhes caberia superar. A tentativa dessas facções do aparato de Estado de superar o que entendem como humilhação do orgulho nacional russo está na base da crise atual, por isso será preciso se estender em alguns detalhes sobre as particularidades da relação da Rússia com os países vizinhos constituem o que ela considera  sua esfera de influência. 

Além da própria Rússia, a antiga União Soviética se compunha de mais 14 repúblicas, sendo três no litoral Báltico (Estônia, Letônia e Lituânia), três no leste europeu (Bielorrússia, Ucrânia e Moldávia), três no Cáucaso (Geórgia, Armênia e Azerbaijão) e cinco na Ásia Central (Cazaquistão, Uzbequistão, Turcomenistão, Tadjiquistão e Quirguistão). A Rússia sozinha é maior em território que as demais 14 ex-repúblicas somadas e sua população era equivalente a metade do total da URSS. Mas ao mesmo tempo, esse país (que aliás é o maior do mundo e inclui uma infinidade de paisagens e etnias, um verdadeiro mundo à parte) é ele próprio uma federação, que congrega no seu interior um total de 21 repúblicas menores, além de uma série de espaços com graus diferenciados de autonomia. A URSS continha, pois, a Federação Russa e as demais 14 repúblicas, numa extensão territorial que correspondia aproximadamente ao que tinha sido o antigo império czarista de antes de 1917, o qual, por sua vez, ainda incluía a Finlândia e partes da Polônia.

Além das ex-repúblicas que compunham a URSS, o país comandava o Pacto de Varsóvia, uma aliança militar que incluía os países ocupados pelo Exército Vermelho ao fim da II Guerra Mundial: Alemanha Oriental (hoje parte da Alemanha unificada), Polônia, Tchecoslováquia (hoje dividida em República Tcheca e Eslováquia), Hungria, Romênia e Bulgária. E além destes aliados diretos (ou satélites), o conjunto dos países ditos socialistas na Europa incluía a Albânia e a Iugoslávia (hoje dividida em Sérvia, Croácia, Bósnia, Eslovênia, Montenegro e Macedônia). Depois da decomposição da URSS e do socialismo real, esse vasto conjunto de nacionalidades, aos poucos, foi escapando da órbita do controle russo e gravitando em direção à Europa (em termos econômicos) e aos Estados Unidos (por meio da aliança militar da OTAN). 

Aquela regressão e desarticulação econômica dos espaços nacionais da antiga URSS e aliados levou os dirigentes desses países a buscar a integração econômica na Europa, na esperança de que a mão de obra barata e qualificada da sua população fosse um atrativo para os capitais europeus. Assim como os países da América Latina caíram no conto da globalização neoliberal, da abertura comercial, dos programas de ajuste do FMI e Banco Mundial e suas “reformas modernizadoras”; também os países do leste europeu caíram na armadilha de buscar a integração à Europa. Ao aceitarem o que na prática significava uma anexação econômica, estes últimos tinham como desculpa, pelo menos, a proximidade com o exemplo negativo da própria Rússia, pois ainda que esta seguisse sendo um gigante econômico, era um gigante estagnado, devido à forma atabalhoada como foi feita a dessovietização  e privatização da economia, que comentaremos mais adiante. 

Dessa forma, uma parte significativa do conjunto de Estados da antiga esfera de influência russa foram aceitos na União Européia: Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia, República Tcheca, Eslováquia, Hungria, Romênia, Bulgária, Croácia e Eslovênia; e dentre estes, alguns deram um passo adicional, e foram admitidos no núcleo mais desenvolvido da UE, a zona do euro: Estônia, Letônia, Lituânia, Eslováquia e Eslovênia. A opção pela integração à Europa fez com que muitos desses países buscassem a “proteção” militar que os Estados Unidos proporcionam ao restante do continente, e assim os seguintes países se integraram à OTAN: Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia, República Checa, Eslováquia, Romênia, Bulgária, Albânia, Eslovênia, Croácia, Montenegro e Macedônia.

A fragmentação da antiga esfera de influência russa e soviética e a expansão da União Européia e da OTAN em direção a esses países nunca foi aceita por certa camada da burocracia estatal da Rússia. Na sua visão o controle sobre os países dessa área de influência é uma espécie de “direito natural” da Rússia, adquirido ao longo de séculos de expansão pelo antigo império czarista e mantido enquanto o país esteve sob a roupagem da URSS depois de duas guerras mundiais. Esse “direito”, naturalmente, na sua visão, se sobrepõe ao direito dos povos desses países de escolher qualquer outro caminho. Mas de acordo com o discurso do governo russo, não se trata apenas de pleitear a restauração de um antigo império, e sim de resistir ao avanço de um império rival.  Do ponto de vista dos interesses geopolíticos russos, a expansão europeia e estadunidense nessa direção representa uma agressão. A participação desses países na OTAN significa que tropas e armamentos (teoricamente, até armas nucleares) podem ser posicionados no seu território, em alguns casos na fronteira da própria Rússia. Seria como se o México e o Canadá fossem aliados russos e tivessem armas nucleares daquele país apontadas para os Estados Unidos, uma comparação que aparece com frequência no discurso pró-russo (ainda que, no caso da Ucrânia, o país não seja parte da OTAN, que a sua aproximação esteja congelada desde 2014, como veremos, e desse modo, que não haja armas da aliança no seu território, e que só tenha começado a receber alguma ajuda militar depois da própria invasão russa).

 A OTAN, na verdade, não deveria sequer existir, pois a justificativa para a criação da aliança militar euro-estadunidense era exatamente a ameaça soviética, que não existe mais. A OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte, foi constituída pelos Aliados vitoriosos na II Guerra Mundial que permaneceram capitalistas, sob a liderança dos Estados Unidos, para se contrapor à expansão da URSS e seu Pacto de Varsóvia. Mesmo que esse pretexto não exista mais, os Estados Unidos mantém até hoje bases militares e armas nucleares na Europa. Aquela justificativa de contenção do “socialismo” não faz mais sentido, pois a URSS se dissolveu, a Guerra Fria acabou, a ameaça da revolução socialista desapareceu do horizonte histórico imediato; mas a OTAN não só permaneceu de pé como se expandiu para a antiga área sob controle soviético. E os Estados Unidos jamais reduziram o seu orçamento militar, além de estimular os gastos dos parceiros da aliança. Na realidade, a OTAN é instrumento de disputa geopolítica entre impérios, o que ficou evidente quando a URSS se desfez e a contenção da Rússia se despiu da pretensão de representar uma defesa de determinados princípios ideológicos. Agora, as guerras de Putin dão um pretexto para que os “comunistas” do passado sejam amalgamados com os “russos” do presente como uma única e mesma encarnação do despotismo e do autoritarismo, contra o qual o ocidente deve defender os valores da democracia e da liberdade (isso, é claro, para quem tem a desfaçatez de associar esses valores com o imperialismo euro-estadunidense, e para quem tem a ingenuidade de acreditar).

Em todo esse debate sobre as pretensões geopolíticas dos diferentes blocos imperialistas, o que está implícito é o pressuposto de que as superpotências têm o direito de controlar como quiserem as suas respectivas áreas de influência. Para o governo russo e seus partidários, é a OTAN que está invadindo o seu “quintal”, e jamais se cogita que se trata do oposto, os governos desses países se voltam para o guarda-chuva da União Europeia e da OTAN para fugir ao abraço opressivo do controle russo. Mais tarde voltaremos ao que significa fazer parte de uma “esfera de influência” de alguma potência e a esse “ponto de vista da geopolítica”. A grande questão é que ambas as opções, aceitar o controle russo ou o euro-estadunidense, são desastrosas, não serão capazes de assegurar desenvolvimento, prosperidade ou melhorias, no contexto de um sistema capitalista mundial cada vez mais restritivo. Não há mais espaço no capitalismo mundial para o desenvolvimento nacional, nem no leste europeu, nem na América Latina, nem em parte alguma, e o que os governos nacionais podem realmente fazer é apenas manter as suas populações sob controle, seja por meio de recursos assistenciais, seja repressivos. Para não expor cabalmente a dureza dessa realidade, movimentos políticos de viés identitário apelam para diferenças morais, insuflando identificações de tipo progressista ou de tipo reacionário, sem interferir com as condições de vida material, porque isso significaria interferir com os lucros do capital, e isso seria inadmissível, iria contra a função primordial de qualquer governo.

O desenvolvimento (no sentido humano, não apenas econômico) e a superação da miséria e da opressão que prevalece na maior parte do mundo (e que hoje se espalha mesmo nos centros capitalistas principais, homogeneizando as condições sociais no mundo inteiro) exigiria a ruptura com o capitalismo, a derrota das grandes potências, o fim dos Estados nacionais, etc. Essa é a perspectiva que desapareceu do debate, de modo que a discussão sobre as alternativas e projetos nacionais se limita ao nível medíocre da simples gestão da miséria, sob estrito controle da tecnocracia neoliberal, que pode se apresentar nas duas versões do identitarismo, o progressista ou o reacionário. As guerras e conflitos dos tempos atuais são um resultado da desaparição da alternativa socialista e da sua derrota no século XX. O aspecto mais trágico da realidade mundial atual é o fato de que a crise do capital coincide com a crise da alternativa socialista. Ainda que as crises do capital e as lutas sociais não tenham deixado de existir (pelo contrário, em muitos sentidos elas se intensificaram), a perspectiva de superar o modo de produção capitalista não aparece no horizonte imediato. Há muito tempo que a ideia de imitar a URSS deixou de seduzir a maior parte da esquerda mundial (felizmente), e as partes minoritárias desta, que propugnavam uma ruptura anticapitalista sem se guiar pelo “modelo” da URSS, nunca obtiveram influência significativa (infelizmente).

3. Humilhação e retorno da antiga potência

Voltando à Rússia, quando dissemos que o antigo patrimônio estatal soviético foi privatizado, isto na verdade representa um eufemismo que precisa ser substituído por uma descrição mais exata: as empresas estatais foram na verdade saqueadas por gangues de burocratas e integrantes do antigo aparato repressivo (a famigerada KGB, polícia política do regime desfeito), que se impuseram por meio da força bruta, do uso das armas para se apossar de tudo que pudessem açambarcar. Enquanto a população vivenciava a volta da pobreza e de penúrias que tinham ficado para trás há mais de meio século, uma geração de multimilionários (hoje bilionários) começou a emergir da pilhagem pura e simples das antigas empresas públicas, os chamados “oligarcas”, com seus sinais de consumo ostentatório copiados do ocidente, enquanto o prestígio do país declinava internacionalmente.

No crepúsculo da era soviética o acidente da usina nuclear de Chernobyl, localizada justamente na Ucrânia, que explodiu em 1986, representou uma espécie de atestado de incompetência gerencial da velha burocracia soviética, que logo entraria em desfazimento. E algumas décadas depois, no ano 2000, uma nova tragédia expôs ao ridículo as forças armadas russas, herdeiras da maior parte do arsenal da outrora temida URSS: o naufrágio do submarino Kursk, que submergiu no mar com seus 118 tripulantes. Era uma espécie de sinal de que o aparato estatal russo estava literalmente caindo aos pedaços, apodrecendo justamente naquele componente que constitui a coluna vertebral de qualquer Estado, as suas forças armadas. Uma reação contra essa deterioração seria necessária, do contrário o país seria ele próprio também engolido pelo imperialismo ocidental, como seus antigos satélites do leste europeu.

A reação já estava a caminho, na figura de Vladimir Putin, ele mesmo um egresso dos quadros da KGB, que fez uma carreira fulminante no caótico governo de Boris Ieltsin, e desde 1999 alterna os cargos de primeiro-ministro e presidente do país. Putin centralizou os oligarcas, prendendo vários deles, confiscando seu patrimônio, numa espécie de reestatização entre amigos, dando liberdade de ação somente para aqueles que se mantivessem leais ao seu poder político. Também centralizou os poderes administrativos, reservando-se a prerrogativa de nomear governadores e prefeitos, além de também aparelhar o legislativo e o judiciário com seus partidários e perseguir a imprensa. Os requisitos de uma democracia liberal ao estilo ocidental, como a separação de poderes, direitos civis, imprensa livre, etc., nunca criaram raízes na Rússia, e Putin não teve dificuldades em suprimi-los. 

Uma ditadura foi estabelecida de fato, ainda que formalmente o país tenha eleições periódicas e outras instituições de fachada. Os opositores políticos e críticos na imprensa e na academia podem ser simplesmente assassinados, presos, exilados, demitidos ou silenciados de qualquer outra maneira. Sindicatos e organizações da sociedade civil podem ser reprimidos brutalmente, manifestações são dissolvidas com violência, homossexuais são discriminados e perseguidos ao se assumir, etc. Um sistema foi estabelecido na era Putin, pelo qual o poder executivo centraliza todas as decisões, e dentro deste a presidência emana as diretrizes mais importantes, e todos os interessados em fazer negócios no país precisam enfrentar não uma concorrência capitalista típica via mercado, como no ocidente, mas um intrincado jogo que envolve regras e exceções tributárias, propinas (a serem pagas a funcionários ministeriais, burocratas militares, prefeitos, deputados ou juízes) e financiamento de campanhas eleitorais, ou todos esses expedientes misturados. Esse modo de fazer negócios bloqueia a competição, a inovação e a modernização, mas no curto e médio prazo isso é disfarçado pela condição do país como potência energética e exportadora de gás, petróleo e matérias primas, que garante riquezas fáceis por algum tempo para uma camada de grandes empresários, políticos, funcionários públicos de alto e médio escalão, profissionais especializados, e uma renda razoável para algumas camadas de assalariados (remetemos mais uma vez ao dossiê de 2017 publicado no Passa Palavra). 

O sistema putinista trouxe alguma estabilidade por um certo período, mostrando-se adequado enquanto os preços do petróleo e matérias primas se mantiveram elevados no mercado mundial. A centralização política deteve o colapso econômico e a população experimentou uma relativa melhoria nas suas condições de vida em comparação com o caos da década de 1990 (queda da inflação, aumento dos salários reais, aumento das exportações, aumento do investimento público, conforme esta pesquisa, capítulo 3, seção 2), beneficiada indiretamente pela melhoria das finanças públicas, devida principalmente à regularização das exportações de petróleo e gás, dos quais o país é um dos maiores produtores mundiais. Ainda assim, como expõem os artigos citados acima, o país não conseguiu retornar aos níveis da produção que tinha na década de 1980 para uma série de itens, como aço, cimento, carvão, etc., e de modo geral, experimentou uma especialização regressiva, convertendo-se em exportador de matérias primas (a participação das commodities na pauta de exportações subiu de 50% em 1987 para 86% em 2005, conforme esta pesquisa, página 158) e dependente da importação de bens industrializados, como automóveis, eletrodomésticos, eletrônicos e bens duráveis e elaborados. Essa situação se agravou depois das sanções internacionais de 2014, às quais nos referiremos adiante. De certa forma, a estagnação ou deterioração econômica, a insatisfação social latente, a viragem ideológica conservadora (ou mesmo fascista), o isolamento internacional e a agressividade militarista formam uma espécie de círculo vicioso de fatores que se reforçam mutuamente e conduzem para a situação atual. A insatisfação social com a situação econômica é contornada por meio de alguma guerra patriótica, e a guerra prejudica as relações internacionais, que por sua vez deterioram a situação econômica interna, fazendo aumentar a insatisfação social, que é contornada por uma nova guerra, e assim por diante. Na Rússia de Putin, esse mecanismo é posto em prática sem que a insatisfação social chegue a produzir manifestações visíveis ou sem que indícios de alguma ameaça de alternância política cheguem sequer a ser cogitados. A insatisfação é desviada preventivamente por meio da exaltação nacionalista, religiosa, mística, da nostalgia da grande potência, da missão nacional da Rússia, ou da falsificação deslavada da realidade, recursos esses de natureza tipicamente fascista, que encontraram seu porta-voz, pelo menos aos olhos do ocidente, na figura de Alexander Dugin.

Além da supressão da oposição e de alguma melhoria econômica temporária, o respaldo político de Putin para se manter no poder por tanto tempo veio, portanto, do cultivo do nacionalismo russo, que renasceu depois das duas guerras contra os separatistas da Chechênia (uma primeira em 1994-1996, que terminou com a independência parcial da região, e uma segunda em 1999-2000, na qual Putin se consagrou, que terminou com a destruição da capital Grozny, com centenas de milhares de mortos e refugiados  e com a reintegração à federação russa) e da guerra contra a Geórgia em 2008. Agindo na sombra do precedente criado pelo governo estadunidense de George W Bush, Putin encenou a sua própria guerra ao terror, aproveitando a perseguição a terroristas fundamentalistas islâmicos (a fase de insurgência terrorista praticada por forças baseadas na região do Cáucaso se prolongou até 2009) para fortalecer ainda mais as instituições repressivas e a vigilância contra qualquer forma de contestação no próprio país.

4. Origem do atual conflito na Ucrânia

Depois dos testes contra Chechênia e Geórgia, a Rússia se sentiu fortalecida para voltar a bater de frente com os Estados Unidos no terreno geopolítico, dando sustentação ao governo de Assad na Síria, o qual foi o autor de atrocidades inomináveis na trágica guerra civil em que aquele país se dilacerou desde 2011. De certa forma, o reposicionamento da Rússia foi facilitado pelo fato de que os Estados Unidos passaram a ter que dividir suas atenções com um outro competidor sério, a China, que ascendeu à condição de superpotência global nas últimas duas décadas.

Protesto de Maidan em 2014 na Ucrania.

A escalada nacionalista de Putin passou então a um novo objetivo, a contenção da integração das antigas repúblicas soviéticas e do antigo Pacto de Varsóvia às instituições rivais da União Europeia e da OTAN. A Ucrânia estava na fila para ingressar em ambas quando, em 2013, o presidente ucraniano Viktor Ianukovytch foi dissuadido por Putin e voltou atrás. Mas forças políticas alinhadas com os interesses ocidentais na própria Ucrânia não aceitaram a decisão e derrubaram esse presidente em 2014, depois de uma série de manifestações que tiveram como centro a praça Maidan, na capital do país. Nessa ocasião chamou a atenção a presença de grupos neonazistas entre as forças pró-europeias, revivendo velhos fantasmas da rivalidade nacionalista entre o gigante russo e os povos eslavos vizinhos. Esse é mais um tema sobre o qual teremos que nos estender mais adiante. Mas de saída, é preciso assinalar que os grupos neonazistas e nacionalistas radicais não são nem de longe a força política predominante na Ucrânia, e que as próprias manifestações de Maidan e o cenário subsequente no país são muito mais complexos do que as narrativas simplistas querem levar a crer. O governo ucraniano é conservador ou até reacionário, favorável ao imperialismo ocidental, pratica políticas neoliberais, mas isso não é sinônimo de nazista, e de resto, grupos neonazistas e ultra-reacionários existem em qualquer país de certo tamanho. No caso da Ucrânia eles tiveram a sua projeção facilitada pelo curso político do país, mas o alcance real dessa projeção tem sido também muito exagerado.

Voltando a 2014, regiões de grande presença étnica russa no interior da Ucrânia reagiram à guinada pró-europeia do governo central com manifestações pró-Rússia. A península da Criméia, que se projeta geograficamente na direção do Mar Negro, com população de grande maioria etnicamente russa, foi militarmente ocupada pela Rússia e anexada pelo governo de Putin, o que já naquele momento não foi muito bem aceito pela Europa e Estados Unidos. Apesar das objeções ocidentais, na forma de um conjunto de sanções que debilitaram a economia russa, a anexação da Criméia foi consumada de forma irreversível por um referendo e pela ocupação militar. A situação mais complicada foi a das regiões na fronteira leste entre Ucrânia e Rússia, nas quais também há uma presença étnica russa importante. 

A proclamação das repúblicas independentes de Donetsk e Luhansk, na região de Donbass, não foi aceita pelo governo ucraniano e um conflito armado se instalou, com milícias pró-Rússia combatendo o exército ucraniano e as milícias paramilitares ultranacionalistas e neonazistas. Esse conflito poderia ter evoluído para uma guerra aberta de grandes proporções já naquele momento, mas um cessar-fogo foi negociado, dando origem aos chamados acordos de Minsk, capital da Bielorrússia, onde foram assinados. Uma paz instável foi alcançada, permanentemente ameaçada por grupos extremistas, que de um lado pressionavam o governo ucraniano para que destruísse de vez a independência das duas regiões; e de outro, estimulados mal disfarçadamente pela Rússia, buscavam aprofundar essa independência. Desde 2014, o cessar-fogo foi descumprido inúmeras vezes, com uma série de choques envolvendo as milícias locais e o exército ucraniano.

A invasão de 2022 não surge portanto como um raio em céu azul, mas como consequência da intensificação dos enfrentamentos, que já vinham escalando desde o fim do ano passado. O lançamento de uma guerra em larga escala surpreendeu a maior parte do mundo e se tornou tema de um acalorado debate. Mas antes de entrar na discussão sobre os eventos em andamento, precisaremos passar por mais um parêntesis, revisitando o histórico do antigo império russo no que se refere ao tratamento das nacionalidades a ele submetidas.

5. O renascimento cossaco

Cossacos de Kuban, final do século 19 / Sputnik

Antes da criação da URSS em 1922 (como resultado da revolução de 1917, da decomposição da monarquia czarista, da guerra civil e da guerra contra a intervenção das potências estrangeiras, das perdas e ganhos de território), a Rússia já era sede de um imenso império, que subjugava dezenas de nacionalidades ao longo de seu vastíssimo território. Uma das populações mais peculiares desse mosaico era a tribo dos cossacos. Originários das regiões tártaras e mongólicas, os cossacos ocupavam uma região intermediária entre os espaços controlados pelo Estado russo sediado em Moscou e os espaços da Ásia Central. Nômades e habilidosos nas artes da cavalaria, os cossacos ficaram famosos pelas suas capacidades guerreiras.

Com a consolidação do domínio da monarquia czarista, os cossacos foram aos poucos assimilados à nacionalidade russa e  incorporados ao exército imperial, deixando de ser uma expressão étnica para ser uma denominação militar. Passaram a atuar como uma espécie de tropa de elite, que acabou tendo a infame função de reprimir as demais minorias étnicas. Já nas guerras contra Napoleão, no início do século XIX, os cossacos ficaram famosos por toda a Europa, tornando-se uma espécie de estereótipo dos russos em geral, com seus trajes característicos e seus modos rudes. No imaginário russo, os cossacos ocupam um lugar semelhante ao que os cowboys ocupam para os estadunidenses.

Os czares tinham por hábito recompensar os cossacos com terras nos diversos territórios do império. Essa é uma das origens da atual presença de população russa na Ucrânia. Durante a época soviética a identidade cossaca desapareceu. Mas a burocracia stalinista manteve o procedimento de instalar minorias russas em todas as demais repúblicas, numa espécie de russificação forçada das regiões periféricas. Nos anos 2000, com o renascimento nacionalista liderado por Putin, o culto dos cossacos passou a ser política de Estado, e uma nova geração identificada com essa figura reapareceu. Tal como os texanos nos Estados Unidos (ou os milicianos e jagunços no Brasil), os cossacos andam armados em público e usurpam funções típicas de polícia, ou se fundem com a polícia e órgãos de segurança.

Os países que fazem parte dessa “esfera de influência” do antigo império russo e soviético convivem com essa política de russificação há séculos, e seria inevitável que isso criasse ressentimentos. Apesar do fato de que boa parte desses países são etnicamente eslavos, falam línguas aparentadas com o russo, usam o alfabeto cirílico, seguem a igreja ortodoxa, etc., a presença desse grande irmão não pode deixar de ser sentida como incômoda. Comparativamente, a presença estadunidense na América Latina é bem mais suave do que essa “influência” russa.

O caso ucraniano apresenta algumas particularidades adicionais. O primeiro principado eslavo que viria a dar origem ao Estado russo, estabelecido no longínquo século IX, teve como sede a cidade de Kiev, que hoje é capital da Ucrânia. Na verdade, Rússia, Ucrânia e Bielorrússia reivindicam o principado medieval de Kiev como seu mais longínquo ancestral. Os três povos têm uma história muito próxima, e isso teve consequências negativas para os ucranianos, em especial no século XX. Logo na sequência da queda do czar em 1917, uma guerrilha de base camponesa e liderança anarquista se desenvolveu na região ucraniana e teve sucesso em derrotar os generais czaristas dos exércitos brancos, inclusive cossacos, com grande sacrifício. Esgotados, os guerrilheiros foram seguidas vezes traídos e finalmente massacrados pelo Exército Vermelho liderado pelos bolcheviques, deixando de atuar em 1921.

Já na fase stalinista, o governo soviético impôs a coletivização forçada das terras e lançou uma perseguição contra os chamados “kulaks”, proprietários rurais de médio porte que estariam supostamente sabotando as medidas de centralização. Na prática, qualquer camponês que manifestasse oposição aos confiscos de produtos ordenados pelos gestores nomeados pelo governo central era acusado de kulak e condenado a trabalho forçado, deportação para a Sibéria e outras regiões ou extermínio puro e simples. Os stalinistas apresentam a campanha contra os kulaks como “luta de classes no campo”. Essas campanhas provocaram grande desorganização da economia rural, escassez de víveres e fome em várias regiões de toda a URSS, nos anos de 1932 e 1933. A Ucrânia, que já na época czarista era uma potência agrícola, foi uma das mais atingidas, e como resultado desse desastre milhões de pessoas morreram. Esse episódio entrou para a história com o nome de “holodomor”, um genocídio que os negacionistas stalinistas de então e de hoje fazem questão de esconder e que os opositores do “comunismo soviético” procuram de todas as maneiras destacar.

Uma década depois, na II Guerra Mundial, quando a Alemanha invadiu a URSS, alguns ucranianos se puseram a combater contra o governo central e a favor do exército comandado pelos nazistas. Alguns chegaram a ser recrutados pelos invasores, apesar dos povos eslavos serem considerados uma sub-raça pela doutrina hitlerista. Com a revivescência nacionalista do século XXI, todo esse histórico problemático veio à tona. Em 2014, no movimento da praça Maidan, uma das milícias neonazistas adotou o nome de Batalhão Azov, em homenagem aos milicianos que combateram o exército soviético ao lado dos nazistas.

6. A invasão de 2022

A invasão russa da Ucrânia foi prontamente condenada pela “opinião pública internacional”, uma expressão que é usada para se referir à opinião do governo dos Estados Unidos. Sanções foram aplicadas num nível nunca antes visto no contexto da globalização, para tentar asfixiar a economia russa, bloqueando a circulação de bens, transações financeiras internacionais, etc. Prontamente, para mostrar adesão ao isolamento da Rússia, os países europeus se colocaram hipocritamente à disposição para aceitar refugiados vindos da Ucrânia, com uma hospitalidade que, de modo muito peculiar, não demonstram para com aqueles vindos de países que são há décadas assolados por guerras que o imperialismo europeu e o estadunidense provocam no Oriente Médio e na África. Instituições as mais diversas colaboraram no esforço de isolar a Rússia, como a FIFA, que baniu equipes russas de todas as suas competições.

A mídia ocidental, evidentemente, é peça central nessa operação de isolamento, dando uma cobertura massiva das atrocidades da invasão, construindo uma intensa torcida contra a Rússia, satanizando tudo o que vem daquele país, legitimando uma campanha chauvinista que atinge a cultura russa, sua literatura, etc. Esse tipo de cobertura que critica o invasor e suas barbaridades faltou quando dos ataques estadunidenses ao Afeganistão e ao Iraque, já neste século, ou quando dos inúmeros massacres perpetrados por Israel contra os palestinos, etc. Nestes dois casos, ao contrário, os povos invadidos é que foram satanizados pela mídia como terroristas. A repugnante unanimidade e o impressionante consenso fabricado por essa “opinião pública internacional”, suas instituições hipócritas e sua mídia cínica contra a Rússia prontamente acenderam o sinal de alerta naqueles que, vivendo na esfera de influência estadunidense, que inclui por exemplo o Brasil, querem se opor ao grande irmão que zela pelo hemisfério do lado de cá.

No afã de se colocar contra essa operação de isolamento da Rússia pelo imperialismo ocidental, muitos opositores, precipitadamente, sem refletir, ou intencionalmente, de má fé, aderem e reproduzem o discurso do imperialismo russo. Isso representa uma grave incoerência do ponto de vista de qualquer projeto emancipatório contra o capital e mostra o grau assustador no qual a consciência dos militantes e a política das organizações retrocedeu em termos de princípios fundamentais. Muitos esquerdistas adotam o método que foi celebrizado por Leonel Brizola para tomar posição (“na dúvida, se a rede Globo é a favor, sou contra, se a rede Globo é contra, sou a favor”), o que revela uma extrema preguiça mental e o condicionamento a um modo de pensar estupidamente maniqueísta. Em tempos de redes sociais, a geopolítica se converte em Copa do Mundo, na qual o papel que nos cabe é escolher um time para torcer. Se você não gosta dos Estados Unidos, tem que torcer para a Rússia. Que os ucranianos estejam morrendo, é uma pena. São “danos colaterais“, como dizia George W. Bush quando as bombas estadunidenses destruíam algum hospital ou escola, no Afeganistão, Iraque, Somália, etc.

Quando o máximo que a indignação alcança é a condenação da assimetria na cobertura da infâmia e não a condenação da própria infâmia, a esquerda “anti-imperialista” expõe a sua falência moral, em justaposição à falência analítica e estratégica. O problema que causa indignação, nessa perspectiva, não é que as bombas russas estejam matando civis na Ucrânia, o problema é que a mídia só fala dos russos e não fala das bombas estadunidenses em vários cantos do mundo. O problema é que a FIFA nunca suspendeu a seleção dos Estados Unidos. E assim por diante.

Em alguns casos a falência moral é tão profunda que se completa com o exercício ativo da mistificação. A Ucrânia é um país nazista, descobrem os esquerdistas, para poder vibrar sem culpa com as bombas caindo sobre aquele país. A impotência da esquerda brasileira para fazer qualquer ação prática relevante no próprio país precisa ser compensada psicologicamente por meio da identificação simbólica com alguma força que tenha os meios materiais para de fato “vencer” alguma disputa, propiciando alguma forma de gozo substitutivo, mesmo que seja por meio da celebração da morte e da destruição que o “nosso lado” também se mostra capaz de causar. Ou justamente por causa da celebração da morte, pois, de uma esquerda educada com os horrendos filmes de Tarantino, não se poderia esperar que tivesse algum parâmetro ético, político e histórico para avaliar os acontecimentos. 

A única coisa que importa é que havia neonazistas nas manifestações da praça Maidan. Logo, o país inteiro pode ser chamado de nazista (mesmo que em 2019 tenha empossado um presidente judeu), e pode ser justificadamente atacado. Os trabalhadores, os jovens convocados a lutar, os idosos e crianças indefesos, as famílias que se desfazem na tentativa desesperada de cruzar a fronteira de algum país vizinho, os grupos militantes que tentam se opor aos respectivos governos nacionais; nada disso tem importância. Enquanto anarquistas se organizam para tentar defender territórios do país contra a invasão e a imposição da ditadura do governo Putin, alguns esquerdistas brasileiros torcem para o exército russo.

Para os nossos esquerdistas pró-Rússia, não há separação entre povo e governo. Dessa forma, Zelensky representa os ucranianos, Putin representa os russos, Biden os Estados Unidos, e assim por diante. Desaparecem as classes sociais, as lutas dos trabalhadores, os movimentos sociais, as dissidências e alternativas. No mundo unidimensional da geopolítica da esquerda, cada país é um bloco homogêneo, sem contradições e lutas internas, sem possibilidades e aberturas outras que não o embate entre os exércitos. Desconsidera-se que a Rússia tenha um regime muito mais próximo do fascismo histórico do que a Ucrânia, com seu renovado fervor religioso, culto aos homens armados, criminalização da divulgação da homossexualidade, descriminalização da agressão a mulheres, etc. 

A Ucrânia não é um país nazista, como quer fazer crer a propaganda russa (e esquerdistas ocidentais desinformados ou mal intencionados acreditam). Os resultados eleitorais dos grupos neonazistas, que não passaram de 2% nas eleições parlamentares de 2019, são, por exemplo, muito inferiores aos do bozismo no nosso país. Isso não significa, porém, que o papel deles seja desprezível. Por serem mais coesos, organizados e motivados, a influência política desses grupos é desproporcionalmente maior que a influência eleitoral. Mas daí a condenar o país inteiro a desaparecer por ter admitido a existência dessas milícias, a distância é absurda.

Se essa lógica fosse aplicada ao Brasil, todos nós seríamos responsáveis pelas ações do Bozo, mesmo aqueles que se colocam entre os ditos 70% que se opõem a seu governo. Considerando-se a presença de forças reacionárias nas manifestações de 2015 e 2016 contra o governo Dilma, a escalada reacionária que levou à eleição do Bozo em 2018, e a política efetivamente posta em prática por seu governo, o Brasil seria tão ou mais qualificável como nazista quanto a Ucrânia. No nosso próprio país a atividade neonazista cresce de maneira explosiva e as simbologias nazistas são veiculadas por figuras do próprio governo. Aos olhos do mundo, pelos critérios desse setor da esquerda, o Brasil de Bolsonaro é um país nazista? A solução para o reacionarismo que grassa no Brasil seria a invasão estrangeira? Não se deveria apostar, ao contrário, tanto no Brasil como na Ucrânia e na Rússia, na organização e luta dos trabalhadores e movimentos sociais? Ou será que acreditam que é possível construir uma sociedade emancipada à base de bombas e invasões armadas?

Talvez esses esquerdistas também sonhem com a “desnazificação” do Brasil pelas bombas de Putin. Pois também há a variedade daqueles que, sem confessar, idolatram os governantes, os homens fortes, os avatares da masculinidade patriarcal, os viris comandantes de homens armados, cowboys, jagunços e cossacos, aqueles capazes de impor “ordem” e tomar grandes decisões. Freud explica a devoção com que alguns esquerdistas absolvem Putin de toda e qualquer ação. Para encobrir o seu desejo de submissão a homens fortes, outros dizem que a Rússia está enfrentando o imperialismo estadunidense, como se a própria Rússia ou a China não fossem também imperialistas. O que esses nostálgicos do stalinismo querem é um imperialismo para torcer e chamar de seu.

Diante dessa falência múltipla, algumas questões de princípio precisam ser reafirmadas: não existe um imperialismo menos pior que o outro. A derrota de uma potência imperialista por outra rival ou a substituição da potência mundial dominante por alguma concorrente não representam por si um avanço na luta contra o capital. A emancipação só pode ser obtida com a derrubada de todas as potências, todos os imperialismos, todos os estados nacionais, pela ação consciente, coletiva e organizada da classe trabalhadora mundial. Não existem atalhos nessa tarefa histórica, e a ação de escolher algum governo ou Estado em favor de outro, supostamente menos pior, só serve para nos afastar das atividades teóricas e práticas que encaminham aquela tarefa histórica.

7. A guerra como subterfúgio contra a crise do capital

“Aquele morreu. Este também vai morrer.” Cartaz em um ponto de ônibus na Rússia.

Algumas análises alcançam até o ponto de identificar que a Ucrânia é um dos maiores produtores mundiais de trigo, além de possuir importantes reservas de gás natural e carvão, nas regiões de Donbass e do litoral do Mar Negro, o que em parte explicaria a invasão. Mas essa análise por si só não dá conta do complexo relacionamento entre economia, vida social, ideologia e política. A guerra é travada muitas vezes para neutralizar o inimigo interno, mais do que vencer um externo. O inimigo interno, a insatisfação social, pode ser debelado mediante a evocação da necessidade da unidade nacional contra uma ameaça que vem de fora. Diante de uma ameaça exterior, a contestação ao governo pode passar a ser considerada um ato de traição, inclusive do ponto de vista jurídico e criminal. A crítica pode ser silenciada e os opositores vilipendiados em nome da unanimidade requerida para uma guerra. Mas essa manobra apresenta um certo risco, porque a ameaça externa tem que ser suficientemente grande para parecer crível, para que o conflito seja visto como legítimo, mas ao mesmo tempo, a derrota de um inimigo externo tem que ser factível, para que o governante tenha alguma vitória a apresentar que confirme a sua força e virilidade perante a população, que é o verdadeiro objetivo final que se procura alcançar.

A ameaça que o governo Putin apresenta à população russa não é a própria Ucrânia, mas a OTAN e os Estados Unidos, que estariam por trás do governo daquele país. Diante de um inimigo desse porte, o governo russo pode representar o papel de um Davi enfrentando Golias, o que cumpre o primeiro requisito. Ao mesmo tempo, o esmagamento de um inimigo que na realidade é muito mais fraco, a Ucrânia, proporciona uma demonstração de força que pode ser comemorada como uma vitória, o que cumpriria o segundo requisito, desde que a guerra seja de fato vencida. Um empantanamento da invasão, como o que os Estados Unidos enfrentaram no Afeganistão e no Iraque, pode resultar em queda do prestígio do governante, tanto no plano interno quanto no externo. 

Os custos da guerra, tanto em termos diretos, de vidas humanas e material mobilizado, quanto indiretos, em termos de isolamento econômico e até escassez, podem se tornar insuportáveis. A unanimidade obtida quando do início da guerra pode ser erodida conforme se questione tanto a legitimidade quanto a viabilidade da guerra. E essa unanimidade pode inclusive se inverter contra o governante, ajudando a acelerar o seu declínio. Já no início da guerra houve manifestações contrárias na Rússia, indicando que o país não constitui um bloco monolítico de opinião.

A guerra é, no final das contas, um mecanismo para reforçar a autoridade e legitimidade do governante de plantão e do conjunto das instituições do Estado, por meio do culto que se faz à sua instituição principal, as forças armadas. O Estado precisa reforçar a sua legitimidade e autoridade quando algum perigo ameaça a coesão e conformidade social. Sem coesão e conformidade a continuidade da exploração capitalista não pode prosseguir. E assegurar a continuidade da exploração é a função fundamental do Estado, a razão da sua existência.

Mais uma questão de princípio precisa ser reafirmada: não existe Estado amigável aos interesses dos trabalhadores. No máximo, um governo pode ser forçado a fazer concessões, mas desde que as organizações dos trabalhadores e movimentos sociais mantenham a sua combatividade e independência, o que em geral só é possível quando mantém a perspectiva da derrubada do Estado e do capital. Essa perspectiva precisa ser recolocada no centro da pauta. Não existem mocinhos e bandidos entre os governos, não existe Estado agressor e vítima num sistema mundial de alianças e vínculos geopolíticos. A Rússia atacou a Ucrânia, e o governo ucraniano usou o povo do próprio país como bucha de canhão e escudo humano para atrair o apoio ocidental. O conjunto dos Estados, seus exércitos, suas guerras e sua mídia são inimigos dos interesses da humanidade. Os conflitos entre eles são um desvio político e ideológico para evitar preventivamente que venha à tona o conflito fundamental das suas populações contra a burguesia e o capital. Mais importante do que qualquer guerra entre os Estados nacionais é a guerra de classes contra a burguesia e o capital.

Esses princípios adquirem uma validade mais dramática num contexto em que as crises mundiais se agravam. Crise da Nasdaq em 2000, crise do subprime em 2008, crise durante a pandemia em 2020, cada uma mais global, profunda e abrangente que a outra, trazendo consequências mais graves para os trabalhadores, que são chamados pelos respectivos governos para pagar os custos por meio dos programas de austeridade, ou mesmo da guerra, conforme o caso.

Desde 2020, uma crise econômica gigantesca foi mascarada pela ocorrência da pandemia (que é ao mesmo tempo uma manifestação dos múltiplos tipos de degradação ambiental produzidos pelo capitalismo), exigindo diversos sacrifícios da população mundial. Desemprego, inflação, escassez de recursos se espalham pelos diversos espaços econômicos nacionais, provocando diversas formas de inquietação e insatisfação social.

No caso da esfera de influência russa, explosões sociais aconteceram no Quirguistão e na Bielorrússia em 2020 e no Cazaquistão em 2022, sendo que no primeiro e no último caso a explosão social foi forte o suficiente para provocar a queda do governante de plantão, e em todos os três foi sufocada por pesada repressão armada, não mais policial, mas já militar. E na própria Rússia, uma nova tentativa de reativar a oposição democrática aconteceu em 2021, quando da prisão do opositor liberal Alexei Navalny, que acabara de sofrer uma tentativa de assassinato por envenenamento, despertando uma leva de protestos, pequena dentro do contexto mundial mas importante para as circunstâncias do país.

O contexto mundial a que nos referimos é marcado não só pela pandemia e pela crise econômica, mas pela onda de protestos, que não se limitou a esses países citados, mas percorreu nações tão diferentes em peso no sistema mundial quanto Estados Unidos e Haiti, tão socialmente díspares quanto Catalunha e Tailândia, tão exaustos por conflitos armados quanto Iraque e Colômbia, tão distantes geograficamente quanto Chile e Birmânia, sob pretextos tão diferentes quanto os que ocorreram na Nigéria e no Peru. 

Na verdade, a guerra e o imenso estardalhaço que os Estados e a mídia capitalista fazem em torno dela vieram interromper a maior onda de protestos da história da humanidade, que merece uma discussão em separado, que aqui apenas podemos mencionar. A ocorrência de tantos protestos e guerras é uma indicação da gravidade da crise capitalista. Diante da crise, para evitar que a insatisfação popular expressa nos protestos alcance os fundamentos do sistema do capital, os governos são forçados a adotar medidas autoritárias, e as ideologias conservadoras, reacionárias e fascistas ganham mais divulgação. A violência se legitima e a competitividade permeia todas as esferas da vida. A guerra retira o protagonismo dos povos em luta contra seus governos para refazer a adesão dos povos aos governos, e impedir que a luta alcance a contestação ao próprio sistema.

Na impossibilidade de uma guerra aberta e total entre as potências mundiais, que não pode ser travada porque uma ínfima fração dos seus arsenais nucleares destruiria o planeta; partimos para uma série de guerras indiretas, com invasões de países menores, sacrificados com suas populações como peões no tabuleiro de xadrez geopolítico, além de guerras civis, guerra ao terror, guerra às drogas, guerra ao crime, guerra de facções, guerras religiosas, guerra de todos contra todos na concorrência do mercado capitalista. Para sustentar essas guerras todas, uma série de tendências ideológicas reacionárias se espalham e se tornam política de governo: nacionalismo, xenofobia, racismo, supremacismo, fundamentalismo, intolerância religiosa, tradicionalismo, aceleracionismo, chauvinismo, machismo, misoginia, etc.

O capital irá afundar a humanidade num banho de sangue, barbaridades e miséria antes de permitir que se ponha algum freio ao imperativo da valorização e reprodução ampliada do valor. A barbárie militar, ambiental, pandêmica, econômica, cultural, estética, etc., está instalada, e para que não se torne irreversível o socialismo tem que ser colocado o quanto antes de volta no horizonte.

Por Granamir.

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