O trabalho doméstico é no Brasil hoje a maior profissão em termos numéricos, abarcando um número de mais de 6 milhões de trabalhadoras, em sua maioria mulheres negras. Apesar desse número impressionante e ímpar no mundo, o debate sobre o trabalho doméstico é generalizadamente negligenciado nos diferentes campos da esquerda brasileira, assim como a perspectiva de luta e organização na categoria. Neste contexto, a página “mas ela é só a baba” se impõe como uma rara voz a trazer denúncias, relatos e reflexões sobre o trabalho doméstico com uma perspectiva radical, historicamente e racialmente consciente e classista, presente nas redes sociais facebook, instagram, twitter e medium, são administradas por Janaina, trabalhadora doméstica, quilombola e mestranda em história social, que é entrevistada abaixo. Essa é uma entrevista realizada em 27/02/20 por Gabriel Silva de Berlim na Alemanha por videochamada.
Você poderia começar se apresentando.
Eu sou Janaina, tenho 28 anos, sou natural de uma comunidade quilombola da região de Minas Gerais chamada Macuco que fica no Vale do Jequitinhonha e atualmente eu vivo na Colômbia onde estudo, eu faço mestrado pesquisando a questão do trabalho doméstico no Brasil, esse também é um tema que vai além da discussão acadêmica, é um tema que está relacionado com a minha vivência, minha condição, e sou formada em história pela faculdades metropolitanas unidas de São Paulo (FMU-SP), e nesse momento estou no segundo semestre de um mestrado em história social discutindo a questão do trabalho doméstico no Brasil por uma perspectiva racializada, de raça, classe e gênero.
Como e quando você começou a trabalhar como doméstica?
Oficialmente foi com 17 anos, mas aos 12 eu já trabalhava cuidando dos filhos de vizinhas, como babá mesmo, só que apenas com título de cuidadora de criança, eu vim pra São Paulo aos 14 anos cuidar dos meus sobrinhos enquanto minha irmã trabalha como empregada doméstica, mas foi só aos 17 anos em São Paulo que eu comecei a trabalhar como babá oficialmente.
Por que você criou a página “ ela é só a baba”?
Eu criei a página em 2017 depois de ter saído de um trabalho que eu considerei naquela época um dos trabalhos mais abusivos que eu tinha tido e eu imaginava que seria meu último trabalho como baba, que eu não teria mais saúde mental para continuar, mas acabou que não foi.
E então eu achei que eu deveria falar sobre aquilo, porque não era normal, sempre quando eu encontrava com outras outras babá ou trabalhadoras domésticas, em clube, nos transportes públicos, ou em qualquer outro lugar em que elas estivessem a gente sempre tocava nessas questões, sempre envolvia questões de humilhações, de racismo e tal. E foi aí eu decidi que eu começaria a escrever, não foi uma coisa na verdade muita pensada anteriormente, eu não falei “ah, eu vou criar uma página para falar sobre isso”, foi uma coisa que eu fiz meio que no impulso. Só que eu já tava motivada por esses relatos, essas conversas que eu tinha tido, que batiam muito com com a minha experiência pessoal, com as experiências das minhas irmãs, todas as minhas irmã são trabalhadoras domésticas, então eu percebi que não era algo comum, não era algo normal assim, que isso seguisse acontecendo da forma como acontecia, então comecei a escrever no início falando mais das minhas experiências e de coisas que eu já tinha presenciado, eu estava no último ano da graduação em História.
Na época eu acreditava que saindo da graduação, eu ia ter acesso a outros espaços e oportunidades, o que não aconteceu, depois da graduação também continuei trabalhando como babá. E aí sim eu fui trabalhar no pior lugar que eu podia considerar, achava que já tinha visto o inferno na terra mas isso foi até ir trabalhar para uma família de militares e bolsominion, que ainda eram do sul, lá descobri que ainda poderia ficar pior. Isso foi 2018, eu segui escrevendo só que ai eu escrevia com certo medo né. Porque eu trabalhava para pessoas que eu entendia como sendo bem perigosas e acredito que eram, e então assim eu me sentia extremamente desconfortável, até mesmo de deixar o celular dentro da casa assim de deixar em qualquer lugar porque tinham muitas câmeras como o Big Brother né, aí eu ficava com medo de escrever, eu nunca escrevi enquanto estava lá porque eu tinha medo de que por algum motivo isso chegar até eles, eles saberiam que eu estava falando deles né, então foi um ano em que eu segui. escrevendo na página mas com muito medo.
Por isso nunca tinha colocado o meu rosto na página, só consegui colocar na página depois que eu sai desse trabalho, porque eu tinha muito medo, mas no inicio foi basicamente isso, mais uma tentativa de desabafo. Mas como eu falei ontem no Twitter tava aqui começando a escrever os meus cadernos do cárcere enquanto eu trabalhava ali vigiada por câmeras.
Você tem uma perspectiva de organização das trabalhadoras domésticas? O que você vê em termos de organização na categoria?
A maior mobilização de trabalhadoras domésticas eu vejo expressa hoje nos sindicatos, agora fora desses espaços eu não observo hoje na categoria um sentido de unidade, além de ser uma categoria muito dispersa. Por exemplo, tem babá que acha que não é empregada doméstica, e é comum que se desconheça que no trabalho doméstico entra além da limpeza, a babá, o motorista, a diarista, o porteiro, etc. E é triste porque a depender dos espaços das pessoas que você ta conversando elas acreditam acreditam que existe uma hierarquização, onde a babá e o motorista dentro de uma casa são superiores, a faxineira e a pessoa que tá cozinhando seriam inferiores, se tiver governanta, a governanta acredita que ela está em uma categoria muito acima dessas outras pessoas.
Então é muito difícil pensar numa organização partindo disso. E sem contar também que dentro do trabalho doméstico a gente tá muito suscetível a ser colocada uma contra a outra pelo patrão, assim logo que uma patroa percebe que existe um conflito entre uma empregada e outra, ela vai estimular esse conflito, porque ai uma delas vai estar sempre mais disponível para ela. Eu já vi várias vezes conflitos entre trabalhadoras serem estimulados, no sentido da patroa manipular uma delas como uma aliada.
Eu vejo que sempre vai ter muito conflito dentro da categoria, como falei recentemente nas redes, inclusive de ter muitas trabalhadores de direita e bolsominion. Também conheci muitas outras que não querem participar de movimentos e que não querem entrar em conversas sobre isso, porque acreditam que não é algo necessário, que vai ser sempre assim mesmo, que existe uma definição divina de que as coisas são assim mesmo e então fica muito difícil a mobilização.
E eu gostaria de ser mais otimista e dizer que eu vejo organização dentro da categoria, gostaria mesmo de falar, mas só vejo isso expresso nos sindicatos, que sãao o maior espaço de organização da categoria, fora deles eu não percebo.
E como você vê a atuação dos sindicatos hoje na categoria ?
Eu comecei a estudar faz pouco tempo os sindicatos, até então não tinha entrado nesse tema. Eu percebi que tinha um desconhecimento total da sindicalização, descobri esse espaçco agora que comecei a Laudeline, e daíi que eu comecei a me aproximar dos sindicatos, mas pelas pesquisas que eu vi nem 4% das trabalhadoras domésticas hoje são sindicalizadas. Logo eles existem e são importantes, mas existem grandes dificuldades, continua existindo dificuldades muito parecidas com as dificuldades da laudelina e das sindicalistas daquela época de aproximar as trabalhadoras, de quebrar o isolamento na categoria. Continua hoje a visão que sindicato é só para fazer greve, ou que o sindicato não serve para nada e não sei o quê.
Então existe um desconhecimento muito grande do que se propõe um sindicato, um desconhecimento em relação a importância e do que de fato se propõe o sindicato, porque eu acho que a mentalidade de lá da da época da Laudelina de que “Isso é coisa de comunista, de gente que não tem que fazer, que não ajuda em nada”, eu acho que isso ainda tá tão presente que parece natural que elas não busquem se informar a respeito.
Você mesma não chegou a conhecer os sindicatos antes né? não foi uma coisa que estivesse presente na sua experiência no trabalho…
Antes de eu começar a discutir publicamente o trabalho doméstico eu nunca tinha ouvido falar de sindicato, eu nem sabia que existia sindicato de domésticas. Mas depois que a página ganhou repercussão e que eu entrei na pesquisa, eu conheci algumas mulheres que são sindicalistas. Conheci a Creuza, por exemplo, que é secretária da Fenatrad (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas), foi só aí que comecei a entender que existe um movimento todo ali. Por que se a gente não vê esse movimento parece que nada está acontecendo, que as empregadas estão só esperando cair do céu e também não é bem assim.
Inclusive, eu vi o filme da Laudelina que você indicou recentemente e é muito bom…
Eu estou usando esse documentário, que tem muitas coisas nesse documentário que não estão postas em muitos trabalhos sobre a Laudelina, normalmente não se fala da participação dela na segunda guerra, assim como não se coloca normalmente sobre relação a dela com o PCB e cercada aos movimentos. Então eu fico pensando assim, alguns reivindicam a figura Laudelina, mas só alguns momentos pontuais dela, dai eu vejo pontos da trajetória dela que são extremamentes importantes e que não são colocadas, me pergunto por que não ne?
Você acredita que existe alguma aliança entre feministas e empregadas domésticas?
Essa pergunta sempre rende, por que ne? (risos) Quando se fala feminismo assim me parece meio amplo né, então em relação ao feminismo que a gente vê por aí, o feminismo liberal e tal, a gente não é nem mulher né. Então é meio difícil pensar que vai ter uma ajuda em relação à categoria de trabalhadores domésticos, quando eu vejo feministas falando de trabalho doméstico, na maioria das vezes são feministas negras, porque eu vejo que a gente que tem essas experiências e vivências mais próximas entende a importância de discutir isso.
Mas eu confesso que ainda assim, eu vejo que o trabalho doméstico é tratado como uma categoria tão menor, que fica uma coisa de “precisamos falar” nas pautas de mulheres negras, dai se fala da mulher no mundo do trabalho, mas nunca é uma coisa aprofundada no mundo do trabalho doméstico. Pois no Brasil se a gente quer falar do mundo do trabalho para mulheres negras, a gente precisa falar mais de trabalho doméstico, que é lá onde estão a maioria dessas mulheres. Então eu fico pensando que não, não é uma coisa de primeira, não é uma coisa que tá na agenda do dia a dia dos feminismos, porque eu acho que quando engloba a questão do trabalho, se traz frequentemente que a mulher ganha menos do que o homem, e a mulher negra ganha menos que as mulheres brancas, que ganham menos menos que o homens brancos, mas aí não se especifica que se ganha menos mesmo é nestes trabalhos totalmente subalternos, que são trabalhos relacionados à limpeza.
Então eu acho que tem uma certa carência e uma das coisas que eu apronto muito assim, se a gente quiser falar de luta de mulheres, se a gente quer falar de feminismo e reivindicar essa posição da mulher negra, eu não vou dizer nem enquanto recorte né, porque é meio complicado falar “o feminismo precisa fazer o recorte racial”, não é um recorde, eu acho que são coisas do tipo, quando o feminismo branco liberal fala “vamos fazer um recorte de raça” elas acreditam que estão fazendo um favor pra gente por falar de temas de que elas nunca falaram, mas assim, a gente sempre falou sobre essas questões, a gente sempre colocou quais eram as nossas pontuações, não é porque o outro não está vendo, não está dando a devida importância a isso, que isso não existia antes. Isso só significa que mesmo que você não esteja vendo a gente está fazendo o nosso o nosso rolê aqui, então assim, quando eu vejo feministas hoje falando sobre a questão do trabalho doméstico são as mulheres negras né.
Eu escutei recentemente uma passagem da Lenira Maria de Carvalho em que ela fala que “só a gente que viveu sabe” e isso é muito real. Porque até mesmo quando observo as mulheres brancas tentando fazer a narrativa do trabalho doméstico é uma narrativa ainda que não intencionalmente, muito romantizada, que coloca a opressão como sendo algo pontual, não algo que tá na questão estrutural, então quando eu vejo uma narrativa de uma pessoa branca, uma mulher branca, falando sobre trabalho doméstico, mas que nunca teve a experiência de vivenciar o trabalho doméstico, a única experiência dela sendo da pessoa que contrata o serviço, eu percebo como se produz uma narrativa falsa, superficial, por que ela ta tentando falar de uma posição mas a posição dela é a posição contrária, ela é pessoa que contrata, não a pessoa que limpa e que cuida, então para mim é muito problemática essa questão.
Sempre quando eu falo disso da uns buchichos assim, porque as pessoas falam que eu estaria gerando “guerra entre mulheres”, mas é que sempre tem a questão da empregada e da patroa, e isso não é propor uma guerra…
Eu me lembro de ja ter visto posts seus zuando a questão da patroa feminista, que é de esquerda progressista, mas que na prática não paga direito, faz exigências absurdas..
Exato, exato, que pede desconto na faxina e tal, se diz toda de esquerda, fala “somos todas mulheres” e aí no domingo vai para Paulista fazer manifestação, levantar Bandeira, enquanto dentro de casa tem uma trabalhadora negra que tá cuidando do filho dela. E aí ela tá na Paulista falando sobre direito das mulheres, aí me perguntou de que mulher você tá falando? Você tá falando de todas as mulheres ou a mulher que tá na sua casa cuidando do seu filho não se encaixa nisso? Então eu acho meio louco quando falam disso de gerar guerra entre mulheres porque se você observar a grande parte dos meus relatos, das coisas que eu escrevo, estão direcionadas na maioria do tempo para mulher trabalhadora e a mulher patroa. Isso não significa, por exemplo, que eu ignore o homem nesse caso, como um elefante na sala, que ele não participa de nada, não faz nada. Não, a gente entende que elas também estão sob a lógica do patriarcado.
Só que é muito conveniente para elas deixar isso de lado, porque assim, agora aqui se trata de outra mulher, e essa mulher não é como eu, se trata de uma mulher negra, que é minha empregada, e eu sou uma pessoa que tem dinheiro e ela é uma pobre. Então a hierarquia que existe aí, então quando entra o marido no meio do caminho ela fica pianinho mas ainda assim ela vai reproduzir essa opressão com a mulher negra, digo assim, com a mulher negra no sentido de racializar a discussão, porque se for uma mulher pobre branca, também ela vai deixar claro o seu poder em cima dela. Então eu acho muito problemático isso de tentar colocar a situação de uma forma homogênea, essa história toda de sororidade, de não sei o quê, sendo que na prática essas mulheres não enxergam humanidade na gente, elas não se colocam no mesmo lugar que a gente, quando se está falando de mulher elas se colocam como numa categoria melhor e superior de mulher, então para mim se for para falar de uma guerra, estamos falando de uma guerra que já existe e que não foi a gente que criou sabe.
E com o movimento negro, você sente que existe uma aliança ou um debate em torno da questão dos empregados domésticas?
Ai já é uma pergunta um tanto complicada, porque a minha relação com os movimentos negros não é um envolvimento direto de participar da organização, mas é mais pelas redes sociais que eu observo como essas pessoas se manifestam, até pela minha condição de não estar no Brasil, como uma pessoa que não tá participando efetivamente.
Então assim, eu vou ser bem sincera, quando essas discussões são levantadas eu percebo que são apenas em momentos pontuais, e aí eu posso estar sendo ignorante ou até injusta na minha colocação, mas eu enquanto uma pessoa que está háa quatro anos falando disso nas redes sociais, eu percebo que o acercamento dos movimentos, pelo menos em relação a mim, é muito pouco e quando acontece é em momentos pontuais.
Em momentos assim, estourou um caso como o da Madalena, dai as pessoas querem falar comigo, as pessoas querem saber a minha opinião, neste momento, e aí quando eu falo “eu já estou falando disso há muito tempo e essa questão não é uma questão que só surge quando explode um caso no Fantástico” também não tem muita participação sabe.
Eu costumo dizer que essa questão do trabalho doméstico é tão necessária de ser discutida quanto a greve dos aplicativos e coisas do tipo, porque se trata de pessoas que estão ali sendo exploradas e dentro dos movimentos que eu observo, em direção ao que eu faço nas redes sociais é muito pouco, dentro dos movimentos de esquerda é tipo quase inexistente a aproximação também, porque essa aproximação acontece de novo só em momentos pontuais, quando acontece algo midiático todo mundo quer debater. E ai eu falo “ nesse momento eu posso falar sobre isso, mas não adianta a gente discutir isso como se isso só acontecesse por que repercutiu no Fantástico”. Sabe tem pesquisas que mostram que todo ano mais de uma centena de mulheres são resgatadas de trabalho escravo doméstico, a pesquisa volta desde 1995 até agora e em sua maioria são mulheres trabalhadoras domésticas negras.
Então eu me pergunto, a gente tá tentando falar disso em um momento pontual por que viralizou no fantástico, mas tem pesquisas dizendo que isso acontece háa muito tempo e o perfil, a cara dessas mulheres, é essa, aí a gente ta falando de algo que ta enraizado no cotidiano, que o Brasil ta apoiado nessa lógica colonial, é algo que ta no dia a dia e não se reflete como um caso especifico que viraliza na mídia.
Então assim, eu penso que em relação aos movimentos é muito pouco interesse, e quando há, na maioria das vezes, é algo puxado pelas próprias mulheres negras partindo de suas experiências. Assim, por exemplo, pensa no caso da minha família, que como no caso de muitas outras mulheres negras, que o trabalho doméstico é algo quase hereditário, no qual todas as mulheres da família trabalham. Então é uma coisa que se a gente não falar, tá naturalizado, tá naturalizado em todos os cantos, na novela, nos movimentos, em tudo. Se eu, se outras mulheres negras, se os filhos e filhas de trabalhadoras domésticas não falam sobre isso, fica tudo invisibilizado. Enfim, não sei se respondi não.
Não, você respondeu perfeitamente. Eu concordo, é uma desgraça.
No gancho do que você falou eu quero perguntar, como você entende o conflito de classes no trabalho doméstico ? Considerando que muitos dos patrões, no caso do trabalho doméstico no Brasil, eles também são trabalhadores né, um pouco melhor remunerados, mas acho que essa situação é muito comum no Brasil. E lembro até de posts que você faz com essa problemática. Por exemplo, sobre a babá que tem uma babá né, gostaria que você desenvolvesse um pouco dessa problemática de como se dá o conflito de classes dentro do trabalho doméstico.
Em relação ao conflito de classes que está posto, por exemplo, em relação a trabalhadora e o patrão, eu acho que nesse primeiro momento é algo que é gritante, sabe eu falei disso também a essa história de falar de luta de classes para trabalhadoras domésticas que não tem quase sempre nem escolarização, é algo meio que utópico e que não funciona, mas se você falar para uma que, por exemplo, ta no Morumbi como era o meu caso, durante o dia você tá no Morumbi e durante a noite você ta na favela, você ta vivenciando os dois pontos, você tá vivenciando chegar na favela no começo da noite e passar pelo traficante, e as pessoas te olharem, te reconhecerem e te respeitarem por que sabem que você mora ali. E ai de manhã cedo você ta num bairro rico que você anda e todo mundo te acha suspeito, que se perguntam “O que que essa pessoa ta fazendo aqui?” Mas eles te aceitam ali, por que sabem que você ta indo prestar um serviço, você é empregada de alguém. Então assim, desde que seja nessa posição de servir, de ter alguma utilidade, você é aceita ali. Fora isso você já é um corpo estranho. Que é o que acontece, por exemplo, em relatos de mulheres negras que tem uma condição de vida melhor e chegam num determinado prédio pra entrar e o segurança fala pra ela “a entrada de serviço é pelo fundo”. Que as pessoas entendem que se a gente ta ali, é automaticamente na posição de servir.
E eu penso o conflito de classes ai de uma forma tão natural, de tipo, olhar pra pessoa, estar na casa de uma pessoa pra quem você trabalha e pede um aumento, e você ta ali exercendo três, quatro funções, dai você pede um aumento de cinquenta reais e a pessoa diz que vai conversar com o marido que ela não pode te dar esse aumento, depois na sua frente essa pessoa faz uma compra de um objeto de decoração de oitocentos reais e que ela não precisava. Por que ela acredita sim, que é mais útil colocar um enfeite em cima da mesa do que dar um aumento de cinquenta reais pra pessoa que tá passando a roupa dela, tá cuidando do filho dela e cozinhando sabe. Então eu acho que a situação é essa, pra eles é naturalizado, avaliam que se te pagam mil reais pra você realizar aquele serviço, podem te sugar até o último centavo do que foi pago.
Isso do conflito que você comentou, da babá que tem babá, é uma das coisas que refletem muitos desses anúncios abusivos que as vezes eu compartilho, quando eu compartilho esses anúncios abusivos, muitas vezes eu gosto de deixar claro isso, que a pessoa está atravessando a cidade pra ganhar 1200 reais pra cuidar do filho de outra pessoa, essa pessoa não tem condição de pagar 1200 reais pra pessoa que vai cuidar do filho dela, por que esse valor é o que ela ganha, então, ela acaba pagando valores extremamente inferiores a pessoa que vai ficar com o filho dela, é uma diferença que eu faço entre ter a “babá” e a “mulher que cuida” no bairro. Claro que a gente poderia levar isso pra uma reivindicação por exemplo, de ter creches gratuitas de qualidade pra que a pessoa não precise fazer isso. Só que essa pessoa tem que estar no trabalho às 7 da manhã, por isso sai de casa as 5 da manhã, não tem creche que abre 5 horas da manhã. Então ela se vê forçada a deixar a filha dela na casa de outra pessoa, que normalmente também junta mais outras duzentas crianças ali, uma confusão em que no final ninguém cuida de ninguém naquele amontoado de crianças, e essa pessoa ainda fica responsável de distribuir essas crianças pra outros locais específicos em determinados horários.
É muito problemático e Isso é o reflexo dessa situação extremamente desigual, em que você sai de casa pra cuidar do filho de outra pessoa, que esta na casa dela muitas vezes sem trabalhar, mas que não quer ter essa responsabilidade de cuidar do próprio filho por que ela pode pagar pra outra pessoa. Isso tem a ver com algo que meu professor estava falando, e eu acho que isso tem a ver com sua outra pergunta, que é a situação de qualquer pessoa que ascende a uma possível classe média, o primeiro passo dela é contratar uma faxineira, por que isso tras um peso significativo, você ter uma faxineira e uma pessoa que cuida do seu filho. E nem sempre de fato existe uma necessidade de fato daquilo, por que a pessoa poderia colocar essa criança numa escola ou algo do tipo, mas tras um peso diferente você ter o título de ter uma babá, e eu digo babá, que é diferente, que a mulher que deixa o seu filho numa casa pra ir pra trabalha não fala que deixa o filho na babá, fala que deixa na “mulher que cuida”, por que é essa a relação. Mas aquela pessoa lá que acha que ascendeu, que está ganhando oito ou nove mil reais, nem sei se isso se encaixa exatamente como classe média, mas enfim, quem ganha isso e tem seu carro usado la ja acha que é classe média então vamos pensar dessa forma. Essa pessoa paga la esse valor e isso ja dá esse distintivo pra ela, e a pessoa que trabalha ali, paga 600 de aluguel, da mais 200 duzentos pra pessoa que cuida, ela nao tem outra coisa que fazer que nao seja isso. Poderia ser ai pensando alguma questão de política publica? Poderia, mas em geral as politicas públicas não são eficazes de resolver isso, por que a creche não vai funcionar no horário que abarca a necessidade de quem sai de casa as 5h da manhã e chega depois das 6h da tarde, então essa carga horária excessiva sempre vai ter que ter outro alguém pra cuidar dos filhos, seja a moça que cuida, ou uma rede de mulheres entorno dela, que é quase sempre uma irmã, avó ou tia, num contexto de mulheres negras, pensando em termos das relações normativas mesmo em que quase sempre a figura do pai se faz ausente, seja por que abandonou, ou esta encarcerado ou mesmo foi morto pela polícia. Então ela sempre vai precisar desse outro apoio e se ela só pode pagar esse valor, ela vai pagar.
Uma coisa que eu acabo abordando ao tratar desses anúncios abusivos, é uma questão do tom e da forma como elas se referem as outras, que elas acreditam então que por poderem pagar os duzentas reais, a outra tem que ficar quieta, não reclamar e ainda cumprir uma série de exigências, as pessoas nao conseguem entender que tudo bem elas terem a necessidade, mas que a forma como se esta colocando isso não é nenhum pouco justa. De tratar com arrogância, com prepotência, tipo agora a pessoa acha que tem uma funcionária. Eu já estou viajando muito, mas isso faz uma conexão por exemplo, com as coisas como são mostradas nas novelas, quando tem essa trabalhadora que tem essa figura da pessoa que cuida do filho dela, também se estabelece essa relação totalmente prepotente sabe, eu lembro de uma novela, achoa que era “Avenida Brasi”l, e tinha uma empregada doméstica que trabalhava numa casabeça onde ela era tratada que nem chachorra, quer dizer nem cachorro merece ser tratado assim, quer dizer ela era tratada muito mal e quando ela chegava em casa ela tinha uma pessoa que fazia o serviço e ela tratava igual, ou pior, do que o tratamento que ela recebia. Então ela entendia que, se eu estou recebendo isso, eu preciso reproduzir isso com alguém, e vou reproduzir isso com quem? Com quem eu to pagando, por que a partir do momento que eu pago, isso me coloca numa posição diferente, então se eu humilhar e tudo mais ta justificado por que essa pessoa precisa desse dinheiro e vai se sujeitar a isso.
Você teve alguma experiência de ver um processo de luta coletiva das trabalhadoras domésticas? Ou em geral a experiência que você viu ficou só na denúncia e no relato posterior das situações que aconteceram?
Sim, as experiências e os relatos que eu recebo são sempre narrando situações que já aconteceram, tem até casos de gente que manda uma situação e fala que ta passando por aquilo agora mas ta aguentando por que precisa do dinheiro e tal, mas 90% são relatos de coisas que já aconteceram e que na época que aconteceu essas trabalhadoras não se viam em situação de simplesmente dizer “vou sair desse trabalho, não vou me sujeitar a isso”, por que existia a necessidade. Que nem eu mesma, por exemplo, só comecei a falar mesmo dessas situações depois que sai desses trabalhos. Por que se eu falasse quandto ainda estava nestes trabalhos, isso significaria que eu iria perder estes trabalhos, e isso não significava que esse trabalho fosse importante pra mim, era importante apenas no sentido financeiro de no final do mês conseguir pagar minhas contas, mas a troco de uma questão de um desgaste muito forte. Então a maioria dos relatos que eu recebo são de depois do que aconteceu.
E eu nunca vi durante a coisa acontecendo uma movimentação assim de vamos se organizar pra fazer isso, nao vejo, nao foi algo que eu recebi ou percebi até hoje, são sempre a posteriori, tanto que os meus relatos agora são todos relatos passados. E ai as criticas que eu faço hoje são em relação aos meus trabalhos que já passaram, por que hoje eu não tenho nenhuma reclamação propriamente a fazer. Dai quando eu recebo relato de mulheres falando “isso aconteceu comigo semana passada”, eu percebo que todo dia isso se atualiza, o que aconteceu comigo nunca vai ficar uma coisa la em 2014, ta acontecendo de novo em algum lugar neste momento sabe, agora se numa dessas situações rolou uma mobilização pontual eu nunca presenciei ou ouvi falar nesses mais de dez anos de função ja.
Você vê esses processos de compartilhamento de experiências entre as mulheres como um processo de acolhimento? Em relação ao que aconteceu, sabe, em termos de escuta mesmo, saúde mental, como você vê essa relação?
Com esses relatos que eu recebo ou comentários que eu leio, a partir do que eu narro de uma forma muito descritiva as coisas que acontecem comigo, quando eu falo “aconteceu assim, assim, assado e ela falou assim e assim comigo” e eu relato aquilo. Eu recebo muitas mensagens de mulheres falando “que bom que você ta falando isso, por que eu passei exatamente pelo mesmo” e quando não é exatamente o mesmo sempre tem um agravante a mais. Então quando eu falo disso, eu recebo mensagens quase sempre muito positivas, dizendo “que bom que você ta falando isso, por que ninguém fala disso, as pessoas sempre pensam que tá tudo bem” e pra mim ao ver esse retorno me dá um ânimo pra continuar falando sabe.
Ainda que na maioria das vezes seja também extremamente desanimador, por que eu percebo que somos uma categoria complemente invisibilizada, que qualquer discussão que a gente faça sempre passa por ser diminuída como uma questão de vitimização ou exagero, por que as pessoas acreditam que quando eu narro algo que aconteceu comigo eu to falando de algo que é só comigo, e que não é bem assim e que poderia ser outra coisa. Só que aí quando a gente vê no Brasil um número de quase 6 milhões de trabalhadoras domésticas, e se eu pudesse apostar eu diria que 90% delas diriam “eu ja passei por isso que você ta narrando”, eu percebo da importância disso dentro da própria categoria, claro que também por uma questão social maior, mas também pra dentro da categoria, por que se acontece e eu não falo, acontece com outra e ela não fala, e com outra e por assim em diante, fica assim sendo encarado como algo natural esse tratamento degradante que as pessoas vêem na novela e acham bacana, e aí quando alguém diz que isso não é bacana por tais e tais motivos, acusam de exagero, por que? Pois esses absurdos tão normais, afinal se passa sempre até na novela tá certo que seja assim ne? E não ta.
Então eu percebo sim um acolhimento muito grande, de trabalhadora com trabalhadora, e isso eu percebo nas redes e na forma como a gente se apoia, por que no cotidiano por vezes também existe esse apoio mas também existe os conflitos dentro da categoria. Existem conflitos que quando a gente fala a gente entende que tem a ver com a questão da desigualdade e da desinformação, mas no momento que acontece as pessoas só conseguem pensar que seja uma coisa relacionada a caráter pessoal, mas sabemos que é algo que vai muito além disso.
Entre esses relatos, quais relatos você lembra que foram mais dificeis que você recebeu?
Acho que tem dois relatos que me impactaram em especial, um na primeira vez que participei de uma mesa, que foi na semana de diversidade da usp, e ai tinha três mulheres negras, eu, uma outra que era advogada e uma que era também trabalhadora doméstica só que mais velha, a Regina. E ela estava contando que ela trabalhava numa casa e que lá ela não entendia por que ela tinha que comer em um prato específico, ela só podia comer naquele prato. E um dia ela chegou pra trabalhar e ela viu que o prato que ela comia era o mesmo prato que o cachorro comia, que o prato ficava no chão na lavanderia com a comida do cachorro. E aí os patrões, não sei se o patrão ou a patroa, se era uma coisa conjunta, mas eles aparentemente tinham esquecido de tirar naquele dia o prato de lá e dai ela viu que ela estava comendo todos os dias no mesmo prato do cachorro. E que aquilo pra eles tinha talvez até uma certa graça, devia dar um certo prazer pra eles, verem a pessoa que trabalhava dentro da casa comendo no prato do cachorro sabe. Isso de certa forma era uma tentativa de desumanizar ela por completo. A Regina falou tudo isso e isso ficou na minha cabeça, eu nunca esqueci isso, foi em 2018.
Teve um outro relato também que faz pouco tempo, foi de uma trabalhadora contando agora no contexto da pandemia, em que a gente se ferrou mais que tudo, uma trabalhadora contando que a patroa pegou o covid, sabia que pegou covid e nao contou pra ela, ela continou indo trabalhar, ela era babá, e ela ia trabalhar e tal, dai ela também contraiu covid, a patroa se curou. Mas a trabalhadora passou o covid pra mãe dela, que era uma senhora idosa, que cuidava do filho dela que é autista, e ela não tem marido, então assim ela morava com a mãe e o filho, e a mãe pegou o covid, não teve como se tratar da melhor forma possível e acabou falecendo. E ai nesse processo todo, ela não podia continuar no serviço por que ela tinha que cuidar do filho dela, dai ela foi falar pra patroa e ela foi mandada embora. Então assim, a pessoa que passou a covid se curou, simplesmente substituiu a baba por outra, contratou outra qualquer, a pessoa perdeu a mãe e perdeu o emprego, e ta numa situação super dificil agora. E fora isso tem vários outros relatos, que assim, vai desde a tentativa ou consumação de abuso sexual por parte do patrão, e a empregada falar pra patroa e a patroa mandar embora dizer que ela estava mentindo e que ela estaria dando em cima do patrão, que são coisas que parece coisa que acontece em filme ou em novela das nove, mas que acontece em todos os lugares sabe. Quando eu leio essas histórias é chocante pra mim, mas já não me surpreende, por que a cada dia fica pior, sabe eu recebo um relato e fico “meu Deus, o que é isso?” e ai na semana que vem eu recebo um que é até pior do que o que recebi antes. As vezes eu até brinco que eu estou perdendo minha sensibilidade, mas não é isso, é que não dá mais pra se espantar sabe, eu não me espanto mais, eu me espanto como as coisas se refazem sabe, como se renovam mais, que sempre vem algo novo e que eu nunca li. Eu vejo que vai renovando, mas a intenção é sempre a mesma, é humilhação, é bem pesado.
Em relação a esse período da pandemia como você já colocou. Eu acompanhei as notícias do início da pandemia e o vírus vai pro Brasil com os patrões né, com pessoas vindas da Europa, em maioria gente de classe média ou gente rica, e a categoria de empregadas domésticas acabou sendo vitimada e acabou disseminando o vírus nas comunidades num primeiro momento, pois pegava dos seus patrões e levava pra quebrada. Inclusive se não me engano, as duas primeiras pessoas registradas de morrer de covid no Brasil foram um porteiro e uma trabalhadora doméstica. Enfim, eu queria que você comentasse como foi essa questão do trabalho doméstico durante a pandemia, como você tem sentido isso.
Isso eu posso falar pelos dois contextos, por que vivendo aqui na Colômbia, aqui no bairro onde eu vivo é a mesma imagem do Brasil, mulheres negras uniformizadas todo dia passeando com o cachorro as 6 horas da manhã, faça chuva ou faça sol, então assim, aqui por exemplo, as trabalhadoras domésticas foram consideradas como trabalhos de primeira necessidade, e ai a cidade inteira de quarentena obrigatória e entre as poucas pessoas indo e vindo continou as trabalhadoras domésticas, porteiros, etc. O mesmo cenário, os patrões ficam em casa, se cuidando, entre aspas né, por que se a doméstica ta indo e voltando pra casa todo dia ninguém ta realmente se isolando, então o cenário é parecido com o do Brasil.
Eu acompanhei no Brasil a situação das celebridades falando “gente fiquem em casa não sei o que” e no fundo da imagem a gente via a trabalhadora doméstica, cuidando do filho ou fazendo a comida. Algumas diziam a eu dispensei o porteiro, mas a bebe não quis ficar em casa, por que ela ficou com dó da criança, ou alguma outra desculpa. Então foi uma coisa assim, eles até podiam dirigir o próprio carro e fazer a comida, mas cuidar do próprio filho já não pode. Todas que eu vi era essa mesma situação, algumas ate fazendo aquele relato bem escravidão mesmo, de a empregada tem que morar na casa e trabalhar vinte e quatro horas por dia.
Então logo que aconteceu a primeira morte eu percebi o quão isso seria recorrente, por que o patrão pegou o virus se cuida no melhor hospital, vai pro Albert Eisten , a trabalhadora vai morrer no SUS, por vezes sem conseguir sequer atendimento e ainda vai passar pra família inteira. E eu percebi que ai muita coisa foi potencializada, por exemplo, as patroas reclamando dos filhos tendo aula em casa, e as empregadas tudo lá junto e os patrões reclamando do barulho, dai eu imagino como deve ta o filho da empregada em casa, sem conseguir acessar a internet direito, sem aula, sem acesso a nada, aumentando uma série de problemas. Dai já vi que de novo a corda ta arrebentando pro nosso lado, e arrebentando bonito. Pois pra eles é impossível pensar a vou ter a arrumar a casa, fazer comida, cuidar de tudo, pra eles é impossível fazer isso, não vão aceitar todo mundo ficar em casa, então o pessoal fazendo videozinho e falando se cuidem não passou de uma grande hipocrisia.
Eu cheguei a escrever que a quarentena era de certa forma um privilégio, mas depois eu retirei isso por que acredito que esse deveria ser um direito de todas as pessoas se cuidar. Mas considerando o Brasil, em que pessoas não poderam ficar em casa, as pessoas que por exemplo, trabalham de forma autonoma, as diaristas que ganham por dia, essas pessoas até querem se cuidar, mas como vão fazer isso e comprar comida, pagar conta de luz, conta de água. Então quando teve a reportagem falando que as empregadas domésticas eram trabalhadoras domésticas eu pensei, “é realmente, zero proteção, zero cuidado” e se a gente, se a trabalhadora morre, se contrata outra, é uma máquina, a gente torce pra que não pegue nada no caminho, mas se pegar também, se der defeito, é trocada e tá tudo certo. Tanto que as mortes não causam a mesma comoção, por exemplo o caso a Mirtes pra mim foi auge, que o filho dela tava com ela ali no meio de uma pandemia, sabe tinha dois adultos na casa, se ela tinha que passear com o cachorro, então a casa que tem dois adultos, qual a necessidade de uma empregada doméstica? Nesse contexto de perigo e exposição.
Desculpa, essa caso que você falou por último é o do menino Miguel né? Morto pela negligência da patroa.
Sim. Então, é isso, acho que a pandemia só potencializou isso que a gente ja vivia a muito tempo sabe, o patrão e a patroa reclamando que tão exaustos com a pandemia, enquanto a trabalhadora tem que atravessar a cidade, pegar a covid, matar a família toda e ainda carregar essa responsabilidade, essa questão emocional e psicológica de entender que foi ela muitas vezes que contraiu o vírus e passou pra familiar que acabou falecendo, e ta como que tudo bem deixar que as coisas se passem dessa forma.
Pesado. Vamos mudar de assunto um pouco. Como você foi estudar na Colômbia?
A essa é uma história longa. Começou por causa da página, eu não vim aqui especificamente pra estudar mas pra trabalhar. Eu vim em 2019, por conta de uma pessoa que eu conheci através da minha página, uma pessoa que começou a me seguir e tals. E eu tava num momento bastante complicado da minha vida. E essa pessoa vivia aqui e falou “quer vir passar um tempo aqui ?” Dai eu aceitei, era uma pessoa que eu não conhecia, que nunca tinha visto na minha vida, mas ainda assim eu arrisquei e vim, dai quando cheguei aqui eu comecei a cuidar dos filhos dela, e fui ficando, era uma coisa que era pra ser um curto período, só que em 2020 eu cheguei a conclusão que eu queria tentar o mestrado, dai como eu estava aqui meu plano foi querer continuar pelo menos até o próximo ano, ai eu vi que o tempo alcançava perfeitamente o mestrado. Dai mesmo sendo um mestrado em uma universidade pública, aqui é paga né. Mas mesmo sendo paga acabava saindo pra mim mais barato que no Brasil até mesmo com bolsa, por que aqui eu cheguei a conclusão que eu não pago aluguel, não pago nada, então o meu salário vai exclusivamente para pagar meus estudos. Então é isso, eu to aqui, pretendo continuar no mestrado até meados do próximo ano, e depois voltar pro Brasil e enfrentar o desemprego né, que é o que tem lá pra nois. Chegar la e vender minha arte na praia.
Qual sua perspectiva?
Eu queria ter uma. (risos) Sinceramente eu não sei, mas eu quero dar aula.
E em relação a sua perspectiva ai, quanto ao internacionalismo, você vê possíveis conexões entre o Brasil e a Colômbia em termos da luta?
Eu não sou muita ativa nas coisas aqui em termos de organização e tal, mas eu percebo que aqui em relação as lutas de esquerda, o Brasil por mais que esteja ruim esta um ruim muito melhor do que aqui. Por que aqui eu tenho é muito medo. E em relação ao movimento negro também, aqui é o segundo país depois do Brasil com a maior população negra da América do Sul, e eu fico impressionada com como a coisa ainda ta engatinhando aqui, por exemplo, eu fui participar de um curso sobre a questão de negritudes, e ai eu me perguntei até sobre o que o Brasil esta emitindo pra fora, que um dos debates que mais houve foi sobre colorismo e relação interacial, dai eu falei é sério mesmo que a gente vai ficar debatendo isso, dai me pergutaram o que era palmitagem, dai eu falei porra tanta coisa pra me perguntar, que eu fiquei assim… (risos)
Assuntos prementes da negritude aqui.. (risos) Vamos resolver os problemas dos negros agora
Exato, vamos falar colorismo e de palmitagem por que isso que genocida, que acaba com a população negra, que faz o racismo estrutural, ferrar com tudo, eu fiquei irritada, mas fui la e falei, comentei.
Eu não sei se é ignorancia minha por não estar tão ativa nos movimentos, mas pelo que vi até agora o Brasil esta sem duvidas um passo a frente. Mas ao mesmo tempo eu me pergunto o que é que o Brasil vende pra fora, que a gente chega aqui e as pessoas vem me perguntar de palmitar.
Mas em relação ao trabalho doméstico, eu percebo que é muito similar, é muito parecido, inclusive esses dias eu tava lendo jornais argentinos, e é curioso como também la a questão dialoga muito com a questão do trabalho doméstico no Brasil. E mesmo que o Brasil seja o país com a maior população negra, a situação é muito parecida, então eu vejo que o problema ai não é só nacional, o problema esta em todos os cantos, em todo luga onde tem população racializada de modo significativo e a escravidão foi forte, existe o problema e ele não é de caráter nacional não.
Você vê possibilidades de ação internacionalmente?
Como assim? Não entendo.
Não sei, que é meu dilema aqui na Alemanha, que sabe eu vejo que existe uma relação de solidariedade assim, de você sabe fazer uma plaquinha e postar, dai da like aquil, da like la, mas meio assim, foda-se né, nada concreto. Claro que é importante compartilhar um texto, um debate, aprender sobre o mundo, trocar experiências, se inspira em outras experiências, leva pro Brasil outras táticas, mas isso é muito pouco, entende? Tem muito a mais que poderia se fazer, soa ambicioso, mas existiu ne, historicamente, o internacionalismo.
Eu não sei o que poderia ser também, mas dizem que assim, na America Latina, se não é o berço da exploração, é onde parte bruta dela ta aqui, então quando olha tudo isso, vê aqui, no Uruguai, ve essa questão agora do aborto na Argentina, e que parece que alguns países caminham tanto e outros se afundam. A Colombia é um cachorrinho dos EUA, e o Brasil também não deixa de ser, enfim, eu percebo que há tanta coisa, pra aprender e mudar, e botar em prática. Isso na Argentina ou o que aconteceu no Chile. Que dá pra se imaginar que poderiamos estar avançando tão mais, mas ao mesmo tempo não, por que nestes outros países parece só dar dor de cabeça, como o Brasil que agora no cenário internacional da ate vergonha de falar que você é do Brasil. Agora é camisa verda e amarelo e bolsominion. Mas eu confesso que hoje quando penso em aprender mais disso tudo e partir pra ação eu fico até desanimada. E aqui na Colombia toda semana sai uma noticia de liderança indigena, de movimento, sendo morta, pelos militares. Então eu vejo as pessoas sendo mortas por meramente se posicionarem, elas não necessariamente estão fazendo, elas só tão pensando e falando sobre aquilo, imagina se tivessem realmente fazendo algo. Então eu tenho medo, por que a gente acaba pensando na nossa vida, na vida da nossa familia, é ameaçador demais. É muito loucura.
Aqui eu tenho conversado com muita gente da Bolívia, que é até um pouco irônicoa por que na Europa encontro mais gente da America Latina do que quanto tava ai. Mas vejo muitos relatos assim, de muitas milícias, muitas forças para militares, parece que esse processo que a gente vê no Brasil de milicianização lá já ta muito mais avançado, é muito pesado…
Essa questão dos conflitos armados , pessoas que cheguei a conhecer aqui que tiveram desaparecidos, que sabem que eles estão mortos né, mas não sabem nem como, nem quando, nem por que, é muito foda, é assustador. Confeço que o Brasil é muito perigoso e tudo mais, mas aqui não é moleza não.
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