PT EN

14 abr 2022

Tempestade e a luta contra o cárcere.

Essa entrevista faz parte do livro Fala Carolinas! Mulheres na luta por vida e dignidade, uma poderosa reunião de entrevistas, ensaios e poemas de mulheres negras, indígenas e periféricas que protagonizam e narram a luta de movimentos por moradia, transporte, cultura, LGBTQI+, contra o cárcere, curandeiras, parteiras, educadoras, e na resistência das comunidades indígenas no Chile.

43 mil mulheres: Esse é o número aproximado de mulheres encarceradas no Brasil. Nós acreditamos que abordar questões específicas das prisões femininas é muito importante, mas é igualmente importante mudar a forma como pensamos o sistema prisional como um todo. Atualmente o Brasil encontra-se na terceira posição mundial, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e da China, em relação ao tamanho absoluto de sua população prisional feminina. Só o estado de São Paulo concentra 36% de toda a população prisional feminina do país, com mais de 15.480 mulheres presas. A maioria delas foi presa por venda de drogas. Algumas vezes por ser seu meio de sustento, ou por serem usuárias, e outras porque ajudam os seus companheiros, ao levar drogas para eles nas prisões. Esse aumento da taxa de encarceramento feminino aponta diretamente para a criminalização das mulheres e a manutenção da prisão no sistema capitalista, por meio da exploração da mão de obra das presas e dos maus tratos a que estão submetidas dentro de insalubres condições prisionais.

Em “Estarão as prisões obsoletas?” Angela Davis denuncia o complexo industrial prisional: Para empresas privadas, a mão de obra prisional é um pote de ouro cheio. Sem greves. Sem organização das trabalhadoras. Sem plano de saúde, seguro-desemprego ou indenização em casos de acidente. Muitas empresas agora contam com as prisões como uma importante fonte de lucro, dando ainda maior impulso ao encarceramento em massa.

Tempestade é moradora do Jaçanã, bairro da Zona Norte de São Paulo. Ela é sobrevivente do sistema, e durante o período que esteve presa trabalhou dentro do setor judiciário da penitenciária de Santana, com o intuito de se relacionar com defensores públicos e conhecer os seus direitos enquanto detenta. Hoje atua principalmente para que as presas tenham acesso a informação sobre o andamento de seus processos e os seus direitos. Ela também compõe a Frente Estadual Pelo Desencarceramento em São Paulo, que faz parte de uma articulação nacional para a abolição do sistema penal. Esta entrevista foi realizada pela Nathália Ract, em dezembro de 2019, por isso as informações descritas durante a entrevista podem ter passado por algumas modificações.

Representação da obra de Claude Monet, Impressão, Nascer do Sol feita por Tempestade.

Quando e em que lugar você fez esse quadro, Tempestade?

Tempestade: Esse quadro foi feito em Setembro de 2012, quando eu estava dentro do semiaberto. Eu usei principalmente lápis de olho, porque uma menina ruim não quis me emprestar os negócios. Daí eu fiquei tão revoltada que ela não me emprestou, manja essa fita? Porque

tem muita gente ruim dentro da cadeia. Daí eu peguei essa folha, um negócio ali e outro aqui. Não ficou do jeito que eu queria, mas ficou quase, né? Está faltando um pouco de escuro. Eu só não vou fazer de novo, porque é uma representatividade de quem não tinha nada. Usei lápis de olho, batom e um restinho de tinta óleo. Mas olha a minha cara dura de comparar isso com um Monet… Hoje eu dou risada! Foi o que deu pra fazer, e passou muito rápido, você pensa que demorou quanto tempo? Foi uns 15 minutos.

Você pode nos contar um pouco sobre você e sua história dentro da penitenciária feminina de Santana? 

Tempestade: Meu nome é Tempestade, eu tenho 68 anos, hoje. Caí em cana quando eu tinha 58 anos. Quando eu entrei eu não sabia nada e queria ir embora, só sabia que queria ir embora, e achava que era fácil ir embora. Pra mim, eu era comerciante de maconha, só comercializava maconha e não me sinto uma traficante de maconha. 

Quando entrei na cadeia eu não entendia como funciona uma relação de sentença. Eu achava que ia chegar na mesa, falar minha história e ir embora. Então eu achei que no dia da minha audiência eu iria embora. Chegou no dia da audiência eu vi que não era nada disso. Já fazia três meses que eu estava lá na Penitenciária de Santana, quando veio minha audiência, só depois de 3 meses pra vir o resultado.

Peguei 11 anos de cadeia. Principalmente pra você que não entende nada de Judiciário, eu achava que ia sair morta da cadeia, que eu não ia mais ter minha vida, e hoje, graças a Deus eu tô aqui pra contar essa história.

Foi uma história de luta interna comigo mesma, porque até vir uma sentença declarada, você vai ficar seis meses esperando aquilo. E dentro desses seis meses, a pressão psicológica comigo mesma, “eu podia não ter feito isso, eu podia tá aqui, eu podia tá lá”, era enorme. Mas eu não podia mudar nada daquilo. Quando a sentença chegou, eram onze anos. Daí eu falei: “não tem como fugir daqui?”.

Se eu fizesse um túnel eu ia cair no pavilhão 1. Se eu fizesse um túnel do outro lado eu ia cair no 3. Se eu fizesse para trás eu ia cair na cadeia da PFC. Se eu fosse trabalhar na cozinha que a remição é de 30 dias eu ia morrer, eu não ia aguentar. Aí eu fui trabalhar no judiciário da cadeia pra saber como eu ia sair de lá pela porta da frente. Descobri que eu tinha que tirar pelo menos uns 5 anos de cadeia, e isso me abalou. Mas como eu diria: sou uma pessoa de muita resistência e luta. Muito antes da cadeia eu já tinha minhas lutas na época que eu era estudante secundarista, que era contra a ditadura.

Quando você começou a participar da luta pelo desencarceramento?

Tempestade: Em 2008, quando eu comecei a trabalhar no setor judiciário dentro da cadeia, era pra saber como eu ia embora daquele lugar. Mas a pessoa, quando ela luta por igualdade social, seja isso na época que for, com a injustiça ela vai se incomodar.

Então eu comecei a minha luta pelo desencarceramento já dentro da cadeia, quando eu descobri que todo mundo ficava na merda. Era muita gente presa. Porque naquela cadeia são três mil presas, mil em cada pavilhão. 500 mulheres do lado par e 500 mulheres do lado ímpar.

Quer dizer, mil presas, não é brincadeira! Todo dia entrava presa na cadeira, e mesmo assim, o rodízio de presas que iam para o semiaberto ou ganhava uma liberdade era pouco.

A penitenciária feminina de Santana era masculina e foi desativada e colocada como feminina. E quando colocaram eles tinham que lotar ela. Então o que foi que aconteceu… A ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, tropa do Comando Geral da Polícia Militar do Estado de São Paulo), saía pelas imediações da Sé, dentro dos bairros, e fazia aquele arrastão para levar as presas direto para a penitenciária de Santana, que estava virando um Cadeião.

Quando comecei a trabalhar no judiciário passei a ver esse lado político também. Não tinha emprego para as pessoas, e os empregos que tinham as estrangeiras ocupavam. Elas sofriam um abuso maior, porque eram exploradas por não entenderem o português. E como existiam poucos empregos, as brasileiras sempre dançavam nessa.

Quando eu trabalhava na prisão, acompanhava uns trezentos processos. Eu não conseguia respostas da advogada que atuava lá. Foi então que eu descobri que ela trabalhava também na PFC (Penitenciária Feminina da Capital), que é onde prendiam as estrangeiras. Era uma penitenciária considerada modelo, principalmente por ter cursos e empregos. Daí eu fiz uma carta para a direção pedindo pra ela fazer essa advogada escolher onde ela iria atuar, ou só na PFC, ou só onde eu estava. Também questionei sobre os empregos, que já eram poucos e dados em maioria para as estrangeiras. As firmas preferem elas, porque elas eram mais submissas por causa da dificuldade com o português. Então, depois da minha carta, a advogada decidiu ficar só na PFC, levando todas as estrangeiras que estavam na mesma cadeia que eu e deixando só as brasileiras. Foi uma vitória, mais foi só o começo de muita luta. 

Foram muitas batalhas, se eu for contar tudo aqui vai ficar muito longo. Existe muita coisa errada, o povo fala que a escravidão acabou no Brasil, mas não acabou. No Brasil se você olhar dentro das cadeias, você vê que a escravidão existe, e ela é muito forte. Eu passei 5 anos dentro do sistema, quase 4 dentro do fechado. E todas as lutas que eu fiz no fechado eu não olhei pro lado pra vê se eu ia me ferrar. Porque qualquer coisa que você faça na cadeia, você pode assinar um motim e um motim significa cinco anos de cana sem direito a bosta nenhuma.

Qual trabalho você faz como militante?

Tempestade: Temos que fazer nossa própria luta porque o Estado está mais do que ruído. Muita gente me pergunta hoje como eu trabalho no desencarceramento, porque eu não ganho nada com isso. Aliás, eu ganho, porque é um trabalho de formiguinha, e me dá uma satisfação muito grande no meu ego. Então eu sou muito egoísta nesse ponto.

Eu faço um trabalho no Butantã com as detentas, durante todas as saídas temporárias e entradas. Na saída eu panfleto, abraço e choro pra caramba. Porque elas veem o meu trabalho em relação às presas. Eu faço um questionário com as presas durante a saída temporária. Geralmente

eu faço na volta, quando a pessoa está mais suave pra entrar dentro da cadeia, então eu sento ali e escrevo todo esse questionário com elas. E sempre faço uma pergunta: “Já morreu alguém da sua família e não te avisaram?” “Te levaram ou não pro enterro?” A maioria chora, e fala assim para mim: “Tempestade já morreu minha mãe, meu irmão, meu filho”. “E como você ficou sabendo?” “Fiquei sabendo através de outra visita; Fiquei sabendo através de carta, através de carta de outra pessoa, que não era nem pra mim. O sistema mesmo não me avisou, eu só fiquei sabendo tempos depois.” Isso acontece com parentes diretos, mãe, pai, filho e filha. Eu fico impressionada e me coloquei essa pergunta: “Quando vou conseguir fazer alguma coisa com esse resultado?”. Porque em 2 anos, parece que é muito, mas é pouco. São 5 saídas por ano, então praticamente eu fiz 10 saídas, ida e volta. Entãoforam 20 vezes que eu fui falar com algumas presas e tenho aquele balanço de quantas pessoas faleceram enquanto a pessoa estava dentro do sistema e não levaram por falta de gasolina, falta de escolta. Eles só avisam quando a família da presa cobra do sistema.

Depois eu levo as respostas do questionário pra NESC (Núcleo Especializado em Situações Carcerárias), que é uma secção da defensoria pública dedicada a acompanhar e resolver problemas nas cadeias. Então lá na NESC eles olham todos os questionários e fazem uma pesquisa sobre cada caso. Eles olham todos os questionários que mando pra eles e fazem uma carta pra cada presa. As cartas são despachadas lá pro Butantã. Com essa carta da defensoria pública a presa consegue ser atendida pelo advogado da FUNAP (Fundação Nacional de Amparo ao Preso) de dentro do sistema. Então isso pressiona muito eles a trabalharem. Então o que eu faço é pegar o nome das presas e a sentença, para levar no núcleo da situação carcerária. Porque lá estão os advogados responsáveis por fiscalizar, vamos dizer assim, os advogados da FUNAP e verificar se eles montam ou não os benefícios para os presos.

    Existem sistemas e sistemas. Tem sistema que advogado é advogado, e sistema que o advogado é chefe de estabelecimento. Às vezes não é diretor de presídio, mas é diretor de disciplina que bota o pé na vida do preso. Um diretor de disciplina dentro de um presídio manda mais que um diretor normal, porque é ele que assina até sua saída para ir pro médico e para você ir visitar seu parente que morreu lá nos cafundós do Judas.

Como funciona o trabalho remunerado dentro da cadeia?

Tempestade: O balanço que eu faço em relação aos trabalhos remunerados dentro da cadeia é que quem ganha com o trabalho da presa é a firma. A firma não paga condução pra presa porque ela já está ali. Se a presa atrasa um, se atrasa dois dias, a outra vez é pé na bunda, porque está cheio de gente que precisa trabalhar também. Outra coisa, a firma não paga vale alimentação porque tem a comida da cadeia, que é horrível, mas eles deixam de gastar com isso.

O aluguel de um espaço dentro de uma cadeia é caríssimo. O lugar que eu trabalhei dentro do Butantã fazendo cúpula de Abajur, com um papel meio duro nós fazíamos flores, então eram flores secas, um trabalho muito bonito. E naquele lugar, o espaço era uns 4×10. O aluguel daquele espaço em 2012 era 7 mil reais. Agora me pergunta se o encanamento daquela merda funcionava? Estava tudo entupido, tudo ferrado! As presas faziam esse trampo e machucavam todos os dedos para ganhar menos que um salário mínimo. E se você ficasse doente não tinha um respaldo de nada do trabalho. Eles faziam isso porque no semiaberto a pessoa ficava menos tempo, dois anos no máximo. Eles deixam de recolher os direitos trabalhistas da presa. E quando ela egressa, cadê o dinheiro? Não tem nenhum fundo de liberdade! E se ela paga aluguel? Se a família não aceitar ela porque passou pela cadeia? Existe esse vai e vem da sociedade, não é todo mundo que acolhe preso, não! Então existe essa injustiça muito grande de soltar os presos na ladeira.

Fotografia de Nathallí Monteiro registro Roda de Conversa “Contra a política de morte: Em memória ao massacre do Carandiru” na ocupação Casa Cultural Hip Hop Jaçanã.

Qual a condição da saúde na penitenciária?

Tempestade: Então, tem muito tortura que o povo aqui fora desconhece, então a visibilidade de dentro da cadeia tem que ser maior. Porque a tortura que eu falo é de eles chegarem a desligar a geladeira para fazer economia de luz. Cozinhar menos um feijão para economizar o gás. Então fica duro quase que nem milho. Abrirem a água só por 15 minutos para uma pessoa tomar banho, e de noite desligam a água. Então quem está no semiaberto chega de noite e não pode tomar banho. E às 5 e meia da manhã já estão levantando pra ir trabalhar, às vezes numa metalúrgica. Eu já fui falar na USP, na PUC, já fui falar com estudante pra xuxu. Acredito que os estudantes deveriam lutar para fazerem estágio dentro do sistema, pois teriam a oportunidade de um aprendizado extra e dariam visibilidade para o fim de várias torturas.

Então deveriam fazer o último ano do curso dentro de um cárcere para eles entenderem o que é sofrimento humano. Agentes sociais deveriam fazer último ano de estágio dentro do cárcere, para aprenderem que auxílio não é levar documento para a detenta assinar abrindo mão do filho, para que ele seja adotado por um gringo. Estudantes de psicologia deveriam fazer o estágio dentro do cárcere, pois a parte emocional de um preso é muito fragilizada e precisa muito desse apoio. Estudantes de enfermagem deveriam fazer o mesmo. Porque dentro de um presídio

pode ter um médico, mas um médico não vai resolver o problema da presa porque o que resolve o problema dela é diagnóstico. Começa por aí, exame de sangue, exame de urina, exames que buscam respostas. Existe muita contaminação dentro da cadeia em relação a tuberculose,e outras doenças, porque fica todo mundo dentro do mesmo ar. Nós podemos ficar conversando horas sobre a saúde dentro da cadeia. 

Na cadeia as presas são obrigadas a tomar Dipirona e Paracetamol para qualquer doença, porque as doenças não são curadas com os remédio certos, e vão sendo substituídas com Dipirona e Paracetamol. Então a pessoa vai piorando, piorando… Foi o que aconteceu com um senhor. Ele ficou 28 anos preso e quando saiu do presídio morreu. Porque ele já estava em um estágio muito avançado da doença. O câncer não tinha sido diagnóstico e não estavam curando com nada!

Um dos principais livros sobre as Prisioneiras foi escrito pelo Dr. Dráuzio Varella, que toca a questão da condição das presas. O que você acha dessa figura pública?

Tempestade: Eu acho que as pessoas poderosas que têm um acesso ao sistema já deveriam lutar por dentro do sistema. Eu adoro o Doutor Drauzio Varella, acho o trabalho dele incrível, mas se ele quisesse colocar os profissionais de saúde dentro de um sistema, ele colocaria. Porque ele tem esse poder de ser um médico renomado. Se ele quiser pode fazer mutirão de saúde, por exemplo. Dentro de toda a cadeia que eu já fiquei, em 5 anos, eu vi um único mutirão da saúde sendo feito dentro da penitenciária de Santana, no ano de 2009, onde muitas pessoas passaram por um exame de mamografia. Inclusive uma amiga minha detectou um tumor e ela se curou. Ela tratou dentro da cadeia e, hoje, faz apenas um acompanhamento preventivo.

Afinal das contas, nós temos entre 166 cadeias dentro de São Paulo. É muita cadeia. Eu acho importante fazer mutirão, mas não um  aqui pra tampar peneira. O lado feminino é muito defasado, a luta por essas mães que têm bebê é difícil. É um sistema opressor que arranca o filho do peito da mãe. Depois de 6 meses de vida eles separam a mãe do filho e se a criança não tem família vai direto para o abrigo. Eu acho isso desumano. Acho que o Drauzio Varella enquanto médico deveria olhar com mais propriedade política a condição das presas. Existe uma outra

grande luta. 

Eu acredito que as pessoas podem transformar muitas coisas. A parte da saúde que acabei de dizer, um só homem, o Dr. Drauzio, por exemplo, pode conseguir coisas absurdas em questão de médicos e remédios porque ele tem acesso. Ele é um homem conhecido mundialmente que têm essa capacidade, não sei porque ele não fez isso ainda. Eu acho que o barco dele tem que aportar onde ele sempre esteve, dentro de uma cadeia, e lutar pela questão da saúde dentro do sistema.

Qual a situação de trabalho durante e depois do cárcere?

Tempestade: Vamos dizer assim, pensando o que poderia ser feito. Eu acho que cuidar da egressa é uma coisa que não fazem. Já até citei aqui, que a presa sai e fica na ladeira porque não tem dinheiro e não tem emprego.

Eu participei de uma roda de conversa com a Gabrielle Nascimento e a jornalista Regina Volpato, no SESC (Serviço Social do Comércio) em Santana, no mês de Abril de 2019. Eu falei que havia muitos empregos no comércio que poderiam abrir espaço para mulheres presas que estão saindo do sistema para trabalhar. Eu achei que tinha “estourado no nor te”, que o SESC logo me chamaria pra dizer que estavam prontos para abrir as portas das empresas. Mas eu dei uma ideia, que foi um tiro no pé (risos). Lembro que depois de Abril tinha uma fila enorme de desempregados no Anhangabaú. Foi aquela monstruosidade que todo mundo viu, a quantidade de pessoas procurando emprego em São Paulo. Quer dizer, mesmo se eu quisesse ou implorasse que o SESC reservasse emprego para as egressas, entre uma pessoa que saiu da cadeia e uma que nunca tinha passado, eles não dariam para a egressa. É uma coisa triste de se comparar, mas é verdade.

As pessoas precisam de um emprego remunerado quando saem da cadeia, para alugar uma casa e comprar alimentos e assim melhorar de vida para não retornar mais ao cárcere. E as pessoas que retornam, realmente é porque não têm chance de conseguir emprego aqui fora. É uma coisa impressionante! Outra coisa, o mundo é muito descartável, eles querem pessoas jovens para trabalhar. Dentro da cadeia além de você bombardear seu nome, acaba saindo muito defasado e acabado.

Você vai competir com uma pessoa de 20 ou 30 anos aqui fora. Já é mais difícil quando a pessoa tem estudo, porque na prisão não tem. Uma luta de empregos para egressos seria mais fácil se o governo dos estados adotassem uma portaria que, por exemplo, obriga toda empresa de trabalho terceirizado destine 50% das vagas para egressos.

Então existe as firmas avulsas, de fundo de quintal, as que vão no quintal de uma penitenciária para conseguir lucrar. Então esses direitos que não são pagos eles usam para pagar o aluguel do espaço no cadeia. Eles não se importam com quem está sofrendo. E quando ele sair da cadeia não tem uma firma que aceite seu trabalho aqui fora. Então isso é muito triste porque você percebe o retorno das pessoas para o cárcere por falta de opção.

É muito difícil porque as pessoas têm preconceito com egressa, pensam que ela não é de confiança. Primeiro porque já passou na cadeia. Imagina se eu vou colocar uma pessoa que já assinou um roubo dentro da minha casa. Então a pessoa fica sem opções. Por que uma cadeia do fechado ou do semiaberto, não constrói essa pessoa para ter uma profissão? Eu vejo que tem no presídio masculino um trampo de ensinar marcenaria, e são poucas cadeias que fazem isso, e elas são principalmente masculinas. As cadeias femininas não têm tanta opção, deveriam colocar um ensinamento lá dentro.

Muitas mulheres falavam assim “poxa eu trabalho em uma metalúrgica, eu trabalho com uma pá na mão pra alimentar caldeira, pra derreter lá os negócios para fazer os metais novamente”. Daí ela questionava, “eu gosto de estar naquele inferno quente, porque eles não querem me dar esse emprego quando eu saio? É mais ou menos perto da minha casa.” Então eu via que as pessoas até gostariam de dar continuidade naquele trabalho e não é isso que acontece. A pessoa saiu já era, não vai trabalhar naquela firma mesmo que tenha ela aqui fora.

Como desencarcerar?

Tempestade: O desencarceramento não é só desencarcerar a pessoa que está presa, é não deixar a pessoa que está fora cair dentro do sistema. E para fazer isso, você tem que ter trabalho de cultura, você tem que ter um monte de coisa. Espero que até isso acontecer, a gente não tenha que aceitar 9 jovens e mais 9 jovens perdendo suas vidas pelo Estado. Temos que conseguir um espaço cultural dentro do bairro, para as pessoas se divertirem e terem uma possibilidade maior na vida, sem ser o tráfico, sem ser carrão, sem ser corrente grossa de ouro no pescoço. E sim qualidade de vida, saneamento básico, água, luz, um gás mais barato, porque sem comida, sem gás, sem água tratada vamos cozinhar como?

Não é só cuidar da pessoa que sai do cárcere, e sim não deixar a pessoa entrar. Deveria existir mais educação, deveriam ter muito mais escolas com empreendedorismo dentro, tanto nas estaduais quanto nas municipais. Deveria ter muito mais ensinamento sobre computadores, sobre tecnologia, e sobretudo, que possa ser uma outra alternativa de vida.

Outra coisa muito importante é a questão de garantir empregos para os egressos. Acredito que dessa forma também estaria contribuindo para o desencarceramento. Pois, ao sair de uma prisão, o emprego é a única forma de ressocialização digna de um ser humano. Comecei minha luta dentro do sistema por empregos e aqui fora continuo nessa luta.

Fé e foco na liberdade!

Mas é uma coisa que hoje eu faço, não sozinha. Por isso eu acho importante citar aqui o nome de pessoas que estão comigo nessa caminhada por conquista da liberdade: o pessoal da Amparar, que oferece apoio aos familiares dos presos (a Railda, o Fábio, a Gabriele Nascimento

e o Kric); o pessoal da Frente Pelo Desencarceramento (como o Mayumi, a Vivi e a Maria Clara); a Isadora Brandão, da Defensoria da Diversidade; a Convive (Mães em Cárcere); a Geralda e a Marcita, da Pastoral Carcerária; o pessoal da NESC, o Mateus, o Tiago e o Leonardo; e alguns amigos,como a Adelaide Lorena, a Geice, a Camila e Ana Carolina. Nooossa, é muita gente!

É vista quando há vento

E grande vaga, ela faz o ninho no rolar da fúria

E voa firma e certa, feito bala

As suas asas empresta à tempestade

Ela faz da insegurança a sua força

E do risco de morrer, seu alimento

Por isso, me parece imagem justa

Para quem vive e canta no mau tempo

A Dona do Raio e do Vento

Maria Bethânia

———

As fotos utilizadas nesta entrevista são da Frente Estadual pelo Desencarceramento de São Paulo, da Amparar e de atos em que a Tempestade participou.

0 Comentários

Deixe o seu comentário!

Seu e-mail não será divulgado

keyboard_arrow_up