
Na época em que foi lançada a edição em português deste livro, em 2003, eu ainda militava em organização da matriz bolchevique, na qual fiquei até por volta de 2015 (quando falamos aqui em bolchevismo, isso se refere a todo o espectro das organizações que se declaram continuadoras do partido dirigido por Lênin, quer se declarem leninistas, maoístas, guevaristas, ou de qualquer das diversas tendências do trotskismo). Nesse ambiente, entre os militantes dessas organizações, quando o livro era mencionado, a simples referência ao título já era motivo de risada. Com um riso de superioridade, o típico militante bolchevique menosprezava como uma fatal ingenuidade a proposta enunciada no título de “mudar o mundo sem tomar o poder”. Para esse militante, a ideia contida no título está associada com todos os tipos de posturas que falham em se elevar ao nível de compromisso e seriedade que atribui com exclusividade ao bolchevismo. Nessa concepção, só os bolcheviques são militantes realmente sérios e comprometidos, os demais são pessoas sem a mesma convicção e convencimento, que não estão realmente levando a sério a luta de classes, de modo que o simples pertencimento a alguma organização que proclama sua continuidade com o bolchevismo gera uma pretensão arrogante de superioridade moral sobre os demais.
Sendo assim, para os militantes daquela tradição, a ideia de “mudar o mundo sem tomar o poder” está associada com as atitudes de pessoas que não querem realmente se dedicar à militância de verdade, que não querem realmente dedicar o tempo e o esforço necessário para mudar o mundo, que sonham com ilusões pacifistas, que acreditam em utopias de transformação pessoal ética, mística, religiosa; que não sabem que o poder do capital está centralizado no Estado, não sabem que o Estado jamais vai renunciar a seu poder sobre a sociedade e vai reagir militarmente contra qualquer tentativa de dissolução; que o Estado está altamente centralizado e só pode ser combatido por um movimento igualmente centralizado, etc. Tudo isso se pensava, nos meios bolcheviques, à simples menção do título desse livro, como se isso bastasse para afastar a necessidade até mesmo de o ler e realmente saber do que se trata de fato. Chavões e clichês eram usados levianamente para exorcizar uma perspectiva teórica diferente e evitar o confronto real com tal perspectiva e o questionamento das próprias convicções. Ainda mais pelo fato de que o livro estava vagamente associado com o movimento antiglobalização do começo do século, que por sua vez estava associado com o zapatismo e os fóruns sociais mundiais (os quais, por sua vez, estavam associados à chegada ao governo dos chamados movimentos e partidos progressistas pela via eleitoral, na chamada onda rosa latino-americana, que aliás têm pouco ou nada a ver com a perspectiva do livro). O debate da época não se dava ao trabalho de verificar a veracidade dessas associações e a trajetória real do autor. Os militantes do ambiente em que eu circulava não se davam ao trabalho de verificar se as estratégias desses movimentos que eles menosprezavam tinham realmente alguma relação com o livro, e qual seria essa relação. Isso nem sequer era necessário, bastava reafirmar que a única militância real é a que está voltada para a tomada do poder, e que qualquer outra postura simplesmente não pode ser séria.
Eu abandonei a militância em organização do tipo bolchevique, já faz alguns anos, e procuro me afastar também desses vícios de pensamento, e só agora, bastante tempo depois da aparição do livro em português, eu pude me dar ao trabalho de o ler. E para minha surpresa, ele realmente não tem absolutamente nada a ver com aqueles tipos de posturas “não sérias” com as quais os bolcheviques o associam e o exorcizam. A experiência de leitura não só comprovou que, ao contrário dos estereótipos que se cultivavam sobre ele, o livro é muito sério; mas também foi uma das leituras mais agradáveis que eu já fiz. Raras vezes se encontra tamanha afinidade de pensamento e essa sensação de quase poder adivinhar cada parágrafo que vem a seguir, como se estivesse escrevendo junto com o autor.
Ao contrário dos estereótipos, pois, o livro é tão sólido teoricamente que deve afastar não só as pessoas que orbitam aquelas posições “não sérias” menosprezadas (essas pessoas realmente existem, são muitas, no entorno da militância e dos debates sobre os rumos da sociedade) como também os simpatizantes e muitos militantes de certas tendências anarquistas. Porque muitos destes, situados do outro lado da clivagem ideológica da esquerda, também alimentam uma ilusão voluntarista de que a transformação do mundo não requer estudo, basta uma postura suficientemente combativa e vanguardista (nesse aspecto, paralela e idêntica à do bolchevismo) de atacar isoladamente aspectos parciais da sociedade capitalista e suas instituições, o Estado, a igreja, a mídia, as corporações, a polícia e as prisões, as forças armadas, etc., sem nunca convergir para uma tentativa coerente, organizada e massiva de realmente superar todos esses aspectos. Muitos adeptos dessas posturas, tanto as superficiais/pacifistas “não sérias” quanto as anarquistas/voluntaristas, que se deixarem entusiasmar pelo título do livro, na suposição de que se trata da defesa de algum tipo de utopia “hippie”, vão se decepcionar ao encontrar uma discussão aprofundada justamente de alguns dos autores mais densos e complexos da tradição marxista, como o próprio Marx, Lukács, Adorno, etc.
Assim como muitos bolcheviques vão descartar o livro por julgar, deixando-se levar pelo título, que se trata de alguma ingenuidade utópica, muitos dos seus opositores anarquistas e pacifistas vão descartar pelo motivo oposto, o “excesso de teoria”, aplicando a ele o rótulo de “muito marxista”. E assim se perde o centro da proposta do livro, que é uma discussão aprofundada do problema do fetichismo (para simplificar eu costumo tratar esse conceito como sinônimo de alienação, embora essa palavra, por sua vez, tenha o inconveniente de ser confundida com engano cognitivo, sendo que na verdade se trata de uma relação social material). O fetichismo é o processo pelo qual a humanidade renuncia a um controle consciente e responsável dos diversos aspectos da sua vida e os delega a instâncias que parecem funcionar por si mesmas, como mecanismos automáticos, dotados de vida própria, tais como o mercado e o Estado. Esses mecanismos às vezes tomam até mesmo os ares de objetos metafísicos existentes desde toda a eternidade e condizentes com a suposta “natureza humana”, a qual estaria destinada a se conformar para sempre com a autoridade, a desigualdade, o individualismo, a competitividade, etc. Tais instâncias alienadas não existem por si mesmas, elas são postas em existência e em funcionamento pela nossa própria ação cotidiana. Somos nós mesmos que, a cada dia, a cada troca, cada ato de compra e venda, reproduzimos o valor do dinheiro, o respeito à propriedade privada, a legitimidade do direito e a autoridade do Estado, que são justamente os grilhões que nos acorrentam a uma vida miserável. O fetichismo tem essa propriedade de ser ao mesmo tempo microscópico e universal, reiterado pela ação cotidiana de cada indivíduo e ao mesmo tempo consolidado como uma estrutura de porte mundial. Por isso mesmo, o fim da alienação não pode se dar por meio de uma simples mudança gradual no comportamento impulsionada por alguns indivíduos “esclarecidos”, mas requer a demolição de estruturas de poder altamente consolidadas e entrincheiradas.
A emancipação desses grilhões do fetichismo não é, porém, como se poderia pensar à primeira vista, um ato de afirmação de uma humanidade positiva que se liberta. O autor tem o cuidado de não cair no tipo da narrativa que afirma a existência de uma essência humana a ser emancipada, mas ao contrário, mostra a emancipação como um ato de negação, voltado contra as forças que negam a nossa realização. A humanidade não têm nenhum valor positivo intrínseco a ser resgatado ou “salvo”; ao contrário, somos todos seres negativos, mutilados pela vigência de forças fetichistas, seres que vivem em um estado negativo de restrição do seu potencial individual e coletivo, que para poder vir a ser algo, temos que lutar contra aquilo que nos nega. A potência do vir a ser a partir da negatividade e a recusa de identidades rígidas, em busca de um indivíduo social em permanente autotransformação, é um dos principais méritos teóricos e metodológicos do livro. Ressaltar o nosso estado de negatividade é importante, porque disso resulta a conclusão de que não há nenhum setor da humanidade que tenha o privilégio de não ser negativo e que, se colocando de fora das relações fetichistas, possa nos guiar para fora da realidade fetichizada. Não há nenhum sujeito revolucionário predestinado, nenhuma classe de indivíduos já pronta e acabada para a revolução, nem muito menos uma sua representação na forma de um partido, nem mesmo um lugar privilegiado para a teoria, como supostos guias para a emancipação. Somos todos seres negativados/restringidos no nosso potencial e precisamos todos nos emancipar coletivamente, sem hierarquias e pontos de apoio parciais ilusórios.
A luta contra uma totalidade de relações fetichistas só pode ser vencida caso se mantenha essa aspiração a uma totalização, que substitua o que existe hoje, o controle inconsciente, irracional e automático sobre o agir humano exercido pelas forças alienadas; por um controle consciente exercido pelos próprios homens, ou seja, por toda a humanidade. Já que não há sujeito revolucionário privilegiado, não há também nenhum ponto de vista da totalidade, um ponto de vista teórico privilegiado, deduzido reflexivamente e dado a priori, ou seja, não há uma verdade teórica descoberta com antecedência que possa servir como chave para abrir a porta da transformação da realidade; mas apenas uma aspiração à totalidade, na combinação entre teoria e prática. A aspiração à totalização decorre do caráter totalizante da própria alienação/fetichismo, um fenômeno universal, que, por sua vez, exclui a possibilidade de que se possa mudar a realidade a partir de esferas parciais, como a do poder político. O controle político sobre o Estado, por si mesmo, sem que se supere também o mercado e o trabalho subordinado, não significa nada como suposto instrumento de transformação, porque na base do agir humano, nas relações de produção, continuaria vigente a subordinação às forças fetichistas do mercado e do dinheiro. E tais forças só podem ser destruídas por uma ação coletiva, consciente e organizada, que por sua vez dispensa a própria existência do Estado.
Essa exigência de uma superação combinada e simultânea do Estado, do mercado e do trabalho subordinado, como pré requisito da emancipação, é o tema de outro grande livro do mesmo período, o Para Além do Capital, do Mészáros, autor que partiu de uma matriz teórica completamente diferente, mas que chega a conclusões políticas semelhantes. Conclusões que os marxistas se recusam teimosamente a vislumbrar e assumir, aferrados fanaticamente aos seus mitos bolcheviques.
Mas prossigamos com o livro em questão, que procura mostrar que a autoatividade do indivíduo social (não uma soma de seres egoístas a serem conciliados ou administrados de alguma forma), assumindo o controle sobre sua vida, em todos os aspectos, é a via para se romper com o fetichismo, e isso pressupõe que se supere o fetiche do Estado e da política como suposta via para resolução de problemas. A situação de negatividade em que nos encontramos, como seres em luta contra aquilo que nos nega, é o ponto de partida para uma visão aberta da história e do processo emancipatório. O percurso do livro é o de demarcar na própria fonte do marxismo, na diferença entre posições expressas por Marx e por Engels, o nascimento de uma abordagem que substitui a negatividade por uma afirmação positiva de identidades. A afirmação de uma concepção rígida de identidade, procedimento adotado por Engels para tentar facilitar a difusão do marxismo, acabou difundindo uma concepção mecânica, que separa rigidamente sujeito e objeto, e por sua vez institui a pretensão de uma ação manipulatória e instrumental da realidade. Quando se perde a perspectiva da negatividade em favor de uma identidade positiva, surge a imagem de um sujeito como algo separado do objeto, um sujeito que, uma vez armado do conhecimento, poderia dobrar o objeto à sua vontade. O problema dessa pretensão manipulatória é que, quando se trata do ser social, o sujeito e o objeto são a mesma coisa. Essa concepção rígida, instrumental e manipulatória fundamenta a ilusão de que, uma vez dotado de uma teoria correta, o militante pode intervir de fora sobre a realidade, ilusão que foi a base do bolchevismo e que segue sendo o erro dos seus continuadores há mais de um século. O autor demonstra os fundamentos teóricos desse equívoco que está na base do bolchevismo, mas não se preocupa em delimitar exatamente de qual “ismo” ele próprio faz parte, nem mesmo se preocupa em se declarar marxista (como o próprio Marx, que dizia que não era marxista), outra postura também bastante saudável. Os “ismos”, na maior parte das vezes, servem como muletas psicológicas às quais as pessoas aderem para poder se acomodar em “certezas” confortáveis e assim se blindarem contra dúvidas incômodas, que são justamente as vias para o crescimento. Ou seja, mais atrapalham do que ajudam. A permanência da ilusão manipulatória de que um sujeito, colocado de fora da realidade social e armado da teoria correta, poderia manipular essa realidade como um objeto, decorre do fato de que é muito sedutor para o militante (que vê a si mesmo como um intelectual ou aspirante) imaginar que basta descobrir a teoria correta, o programa correto, a estratégia correta, para com isso mover a realidade, como se assim tivesse encontrado a alavanca para mover o mundo. E para encontrar a teoria correta, o programa correto, a estratégia correta, basta expor os erros das correntes políticas rivais. O militante assim não só se afasta justamente do rumo para o necessário entendimento da própria realidade, encarada como uma teia de relações complexas e contraditórias na qual ele mesmo está implicado, como se condena a um debate tão perpétuo quanto estéril no interior do restrito círculo das organizações militantes. A militância vira uma esfera separada, que isola os indivíduos do incômodo convívio com os demais trabalhadores, os “alienados”, num tipo de afastamento que é na verdade um dos melhores exemplos de alienação. Confinados no convívio com os seus iguais e concorrentes, os militantes se especializam num debate que gira em torno de decidir qual das suas organizações, quando tomar o poder, estará isenta de repetir os erros que resultaram nas derrotas do século XX, porque estará supostamente armada da teoria correta. A militância se transforma numa disputa para provar quem tem mais razão e quem assim, por esse motivo, terá o “direito” de tomar o poder. Sendo que o foco da transformação verdadeira está em outro lugar, que não tem a ver com a tomada do poder, mas com a destruição de toda forma de poder.
E é claro, o autor não traz nenhuma receita pronta de como mudar o mundo sem tomar o poder, porque se fizesse a tentativa de trazer essa receita estaria contradizendo o objetivo do livro, que é apenas enunciar a exigência de que se abandone o objetivo do poder como via para a transformação social. De que forma faremos a transformação que nos leve coletivamente como humanidade para fora do fetichismo é algo para seguir debatendo e experimentando na prática. Mesmo porque o capitalismo não nos dá outra escolha, nos apresentando a cada dia um desfile horrendo de iniquidades, que não pode deixar de arrancar de nós a cada dia um grito de ódio e de indignação. Um grito que é precisamente o ponto de partida do livro e também um ponto de chegada, um grito que não quer se resignar a ser puro desespero e procura ser um grito de guerra para a ação. Apesar de toda a densidade teórica, o autor se esforça para formular essa postura da recusa ativa do mundo numa forma que expresse também algum apelo existencial, emocional e poético, porque se trata justamente de uma concepção de humanidade que articula uma série de dimensões, além da nossa existência como ser econômico e político, de modo a deixar claro que existe um horizonte inesgotável de possibilidades de realização. Sem romper com essa concepção estreita de humanidade, como ser meramente econômico e político, como é pensado pelo bolchevismo, não há a necessária abertura para o horizonte ilimitado de possibilidades de realização que nos aguardam para além do fetichismo.
por Granamir
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