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31 maio 2022

A história das mães da praça de maio: era uma vez catorze mulheres 

Quando se completaram 46 anos do golpe que instaurou a ditadura militar em 24 de março de 1976. Este é um balanço de antes, durante e após o golpe de Estado. O texto foi preparado para analisar o processo e também contar sobre o surgimento de “ Las Madres”, mulheres que saíram em busca de reclamar pela vida de seus filhos. Enfrentando o horror propagado pelo Estado e o desaparecimento de seus filhos, realizando o que parecia impossível: transformar a dor em ação. 

E como o fizeram? Esse é um relato  documental de uma trajetória de 30 anos de vida vencendo a morte. Um registro das últimas décadas, e algumas questões práticas sobre ações, territórios, lutas e conquistas.  

Era uma vez um país com nome de mulher, onde a morte andava solta perseguindo sonhos, sufocando a vida. E nesse país de nome prateado, os sonhos e a vida tiveram que aprender como enfrentar os carrascos.

Essa história parece ser infinita. Como conta-lá?

Precisamos falar de um século XX problemático, que começou como grande celeiro do mundo, com trabalho para poucos, democracia para poucos, dinheiro para menos, alguma ilusão de tempos melhores, seguida de décadas infames. Surgiram logo um governo que gerou uma expectativa de mais justiça, mais democracia. A política começava a estar nas ruas, nas praças, na cabeça e no coração de cada pessoa.  

Esse governo foi derrubado em 1955 pelos poderes econômicos, políticos e militares de sempre. Pouco antes os golpistas haviam bombardeado com a aviação militar transeuntes inocentes na praça de MAIO. Mais de 300 mortos. Que reivindicavam por igualdade de oportunidades, melhor distribuição da riqueza, era uma maldição que precisavam aniquilar.  Terra alheia a quem sempre cultivava ao revés. Os ricos que alienaram os pobres, repudiaram que os pobres pudessem melhorar.

Em 1956 aquela ditadura foi pioneira : prendeu ilegalmente dezenas de pessoas acusando-as de planejar uma rebelião. Os militares ordenaram o fuzilamento nas redondezas de José León Suárez. Foi a operação massacre como definiu Rodolfo Walsh em seu livro Inolvidadle.  Os que não sabiam, nem mesmo Walsh, era que a Operação Massacre apenas começava. 

Pouco depois, em uma pequena ilha do Caribe debaixo do nariz dos Estados Unidos, ocorria uma revolução que se proclamou socialista. Os militares argentinos temeram que essa revolução fosse contagiosa, engatilharam suas armas ao redor do continente.

Iniciou-se os tempos de exílio político, censura, governos civis derrotados, os governos militares haviam se instaurado entre eles, organizações das forças armadas atuando como tropas de ocupação em seu próprio país, construindo trincheiras contra a democracia, em nome da luta contra o socialismo.               

Diante disso, crescia uma resistência de quem não se resignou ao silêncio, à censura, nem ao esquecimento. Resistiram os melhores com uma espécie de nostalgia pelo passado. E resistiam também os jovens, como que sonhando com o futuro, mas um futuro que queriam construir com suas próprias mãos.                              

Um argentino que se engajou de corpo e alma em um propósito similar ao realizado na ilha do Caribe, foi capturado e fuzilado quando tentou reproduzir algo parecido na Bolívia. Chamavam-no Che. Os que o mataram não sabiam que o estavam imortalizando. O mundo se tornava violento. Em todos os lugares milhares de jovens saíram a protestar por justiça, igualdade, repudiando a guerra e a morte, um novo mundo.                                                                                                                                    

Na Argentina as ditaduras seguiram lutando contra as resistências, apenas Cordobazo, um Rosario, a juventude se mobiliza pintando paredes e colando cartazes. A democracia permanecia presa. A violência militar seguia livre. Nasceram as organizações guerrilheiras, que  se propuseram a pegar em armas pela resistência.                                                                                                                        

Talvez o início dessa história deva ser narrada, entre, 1972.  Em 22 de agosto em Trelew, em uma nova versão da Operação Massacre. Ali haviam detido membros de várias organizações guerrilheiras. Encurralados, baleados, indefesos, com um falso pretexto de fuga, executados. Mataram 16. Três militantes sobreviveram por um milagre e contaram o que haviam passado. Talvez naquele momento, quando o crime era evidente, as estratégias militares começavam a desenhar a repressão do futuro : matar misteriosamente.                                                                                              

As mobilizações protagonizadas fundamentalmente pela juventude se empenhavam em ser gigantescas. A trincheira militar não suportou a corrente gerada por tantos sonhos, e em 1973 a vida parecia caminhar. Uma multidão obrigou a liberar os presos políticos. A ilusão não durou muito. Iniciou-se uma dança alucinada.     Cámpora ganhou as eleições. Voltava Perón. Em Ezeiza os “patos” da direita peronista perseguiam as comunas jovens. Perón apoio a  esses grupos contra a juventude, Cayo Campora. Assumiu Lastiri que era genro de José López Rega. López Rega era ex-policial, militante nazi, secretário privado de Perón, ministro de Bienestar Social, e astrólogo esotérico. Como se sua bruxaria funcionasse, concentrou cada vez mais poder.                                                                                       

Lastiri chamou novas eleições que ganhou Perón. Oito meses depois, morreu Perón e assumiu sua esposa Isabel. A sociedade observava aturdida, mentiras o sistema da morte se instalava ao redor de López Rega, que organizou carrascos policiais, militares e “patos” da direita, para criar um monstro que se chamava tríplice A. Aliança anticomunista Argentina.                                                                                 

A tríplice A era um esquadrão da morte, um grupo paramilitar com passe livre para matar. Estudantes, intelectuais, sacerdotes, artistas, sindicalistas, operários :  a sucessão de fuzilamento se tornou cotidiana, o terror se empenhava a ser cotidiano. A lista era macabra. Centenas de vítimas. Para recordar algumas : Rodolfo Ortega Peña, deputado nacional e advogado de presos políticos. Carlos Mujica, sacerdote do terceiro mundo, Silvio Frondizi, um dos principais intelectuais que dirigiu a esquerda argentina, Julio Troxler, que havia sobrevivido aos fuzilamentos de 1956. Atilio López, um dos dirigentes do Cordobazo, que durante a breve etapa camponerista foi vice governador de Cordobá.                                                   

Os bombardeios na praça de Maio e o extermínio nos bairros eram apenas premonições. Os fuzilamentos de Trelew se tornaram regulares. A tríplice A foi o aperfeiçoamento do esquadrão da morte. Por um instante imaginemos 

Imaginemos por um momento  que haviam milhares de massacres como os de  José León Suárez. Imaginemos que haviam a toda hora fuzilamentos como os Trelew. E milhares de tríplices A matando pelas ruas com absoluta impunidade. Isso foi a ditadura militar, quando militares deram um golpe de Estado para impor uma máquina de matar corriqueira e infinita que durou exatamente trinta anos. Deram-lhe um nome que seria cômico, se não fosse patético. Processo de REORGANIZAÇÃO NACIONAL.                                                                                                

O comunicado número um que emitiram dizia o seguinte :                                                       

“ Informamos à população que, a partir de hoje, esse país se encontra sob o controle operacional da Junta de Comandantes Generais de das forças da FF.AA. Recomenda-se a todos os cidadãos estrito cumprimento  das disposições e diretrizes que emanam das autoridades militares, de segurança ou da polícia, bem como extremo cuidado para evitar  ações e atitudes individuais ou de grupos que possam exigir intervenção pessoal das operações…”

Mais do que nunca, a morte andava solta perseguindo os sonhos, acorrentando a vida. Mas dessa vez, indo além, inventaram uma espécie de ato de magia superior a de López Rega. A magia mais perversa que alguém poderia imaginar. 

Nada além de bombardeios, fuzilamentos, cárcere, homicídios mafiosos à luz do dia. Os perseguidos, as vítimas, tudo tendia a desaparecer. Sem rastros ou notícias  sequestrados e esfumaçados da noite para o dia. Os militares acreditavam que se não havia corpo, não havia crime, sem provas, ou qualquer evidência, nada podia ser feito.

Esse era o terrorismo de Estado. As forças armadas se dedicaram à morte clandestina, mentiram em público com suas famílias, iam à missa, comungava e sorriam.  Em seus discursos falavam de paz, ordem e progresso enquanto executavam prisões arbitrárias, sequestros de gente indefesa, propagando o absoluto desaparecimento da justiça.

Existem bibliotecas inteiras que se podem consultar para entender o que aconteceu, mas também uma carta. Apenas um ano depois do golpe Rodolfo Walsh escreveu clandestinamente sua carta aberta à junta militar, onde explicou que nada se atrevia a dizer. 

Falava de um lago cordobés convertido em cemitério clandestino. De pessoas arremessadas desde aviões militares ao Rio de La Plata, cujos cadáveres afloraram nas encostas uruguayas. Denunciava um sistema de tortura absoluta, atemporal, metafísica, aplicada tanto com metodos medievais como o “cavalete”, como com a tecnologia de armas eletricas, tudo para desmembrar a susbtancia humana. Falava das guarnições e delegacias convertidas em campos de concentração, das mente transtornadas dos militares que torturavam. Dizia que apenas um ano após o golpe e meio a censura e o terror :

“ Quinze mil desaparecidos, dez mil presos, quatro mil mortos, dezenas de milhares de desabrigados são o rosto nu desse horror”

 Há ainda outros parágrafos que cada dia se compreende melhor. Dizia dos militares :

“Estes fatos, que perturbam a consciência de um mundo civilizado, não são o maior engasgo de sofrimentos que tem atravessado e traído o povo argentino, nem as piores violações dos direitos humanos que os acometem.. Dentro da política econômica desse governo deve-se buscar uma explicação para seus crimes de uma atrocidade maior, a que castiga milhares de seres humanos a uma miséria generalizada.”

Aí estava a chave para entender a violação : a miséria planejada.

Walsh fechou essa carta no dia 24 de março de 1977, distribuiu várias cópias e um dia depois foi sequestrado por militares. Nunca mais se soube dele. Outro desaparecido sem rastros.

Dentro dessa noite, haverá um parto

em meio à obscuridade, uma celebração.  

nasce uma história.

Muitas mães e pais saíram em busca de seus filhos. Saíram de suas casas, saíram do útero de sua rotina habitual para enfrentar o aparato repressivo mais imponente da história do país.  Levavam impressas em sua pele a desesperança e o amor, e dali nascia a coragem. Recorriam a hospitais, caminhavam a esmo, se atreveram a ir a delegacias e quartéis. Buscaram  nos necrotérios. Nada se sabia. Imperava o silêncio. Os dias se arrastavam na esperança de uma única notícia. As noites eram de frustração e insones.  

Os homens voltavam aos poucos a seus trabalhos mundanos. 

A maioria das mães eram donas de casa : tinham intacto o tempo e a sensação de que não havia outra coisa a fazer além de dedicar cada hora, cada minuto e cada segundo de sua vida na busca do paradeiro de seus filhos.

Estavam sozinhas, movendo-se, perguntando-se inútilmente, aturdidas por tanto silêncio. Aos poucos o luto foi se transformando , se reconhecendo e se empenhando a escavar caminhos, encontrando outras mulheres que compartilhavam do mesmo sentimento, cada uma sua forma levava estampado no olhar : desesperança e incredulidade. 

Esse foi o primeiro passo contra o isolamento. Começaram a encontrar-se, a conversar, acolheram-se. Estar juntas foi um modo de escapar do horror da perda inconclusiva. Mas foi muito mais que isso.

Um dia essas mulheres se descobrem a si mesmas violadas por uma orla militar, que as recomendava terapia, paciência, as desnorteavam com rumores, falsas notícias, insinuações e nada faziam para buscar seus filhos desaparecidos.

uma dessas mulheres ergueu a voz e disse : BASTA

Temos que ir à praça de Maio, temos que fazer algo, temos que gritar o que nos aconteceu.

 Era uma mulher com nome de flor.

Dentro desse grupo de mulheres que acampavam Azucena Villaflor tinham uma razão : seu lugar era a praça de Maio. Essa praça se tornaria o território de Las Madres.

Não eram uma organização, mas haviam encontrado o seu chão.

Não tinham arquibancadas, mas os bancos de uma praça.                                        

Não tinham escritórios, mas tinham as colchas bordadas e carpetes para se apoiar carregando cadernos, pastas e arquivos esquecidos.

Não tinham recepção, mas podiam ser vista de longe quando chegavam

Não tinham telefone, mas se correspondiam por bilhetes clandestinos, marcando pontos de encontro e planejando o futuro.

Ocultavam suas mensagens e as enterravam na lama, quando cruzavam com militares e policiais. Não podiam ser descobertas. Já que tinham que ser esquecidas.

Carregavam agulhas e linhas e bordavam na praça de Maio, inventavam histórias, enquanto trocava informações sigilosas sobre como agir, como enganar a impotência e se mobilizar. 

Penélope tinha esperança do regresso de seu marido. Elas tinham juntas ações de busca por seus filhos e denúncias do que estavam passando.

A primeira vez foi no sábado 30 de abril de 1977. Eram apenas 14 na praça de Maio.  Como o grupo era ainda muito pequeno, decidiram marcar novos encontros, uma das mulheres advertiu “ sexta-feira é dia das bruxas” e para evitar maus agouros, definiu-se que as reuniões aconteceriam às quinta-feiras.

A polícia começou a desconfiar. Declarou estado de sítio, proibiu-se qualquer reunião onde houvesse mais de três pessoas, por ser potencialmente subversiva. Neste caso, tinham razão, lutar pela vida é realmente subversivo. Como pássaros de uniforme, os policiais empenharam buscas ao redor dessas mulheres que bordavam e conversavam na Praça de Maio.  Ordenaram : caminhem, circulando não podem ficar vagando aqui.

Elas começaram a caminhar e a circular ao redor do monumento de Belgrano, em sentido contrário aos ponteiros do relógio : como uma rebelião contra o tempo, a cada minuto sem seus filhos. Marchavam toda quinta-feira, diante do nariz  de um dos governos ditatoriais mais terríveis da história da América latina.  A Praça agora pertenciam a Las Madres

Alguns jornalistas estrangeiros ouviram relatos dessas voltas periódicas. Consultaram os militares a respeito. Disseram que não passava de uma reunião de mulheres transtornadas, umas mães loucas que andavam buscando pessoas que não existiam em lugar nenhum. 

A sociedade civil preferia em maior parte dar se por desentendida. A censura bloqueia ouvidos, cérebros e corações. As mães loucas eram as únicas que pareciam despertar, tecendo e circulando à revelia do relógio. 

Em outubro de 1977 se somaram à peregrinação a Luján, que reuniu um milhão de jovens. O problema era como encontrar-se e reconhecer-se dentro da multidão. Alguém propôs que todos usassem um lenço da mesma cor. A cor era um sinal muito marcante, então uma das mães sugeriu “ Por que não usar as fraldas dos nossos filhos?” Não havia fraldas descartáveis e a maioria das mães conservava as de tecido, talvez, pensando em netos.

Em frente a Basílica, reclamando e rezando pelos desaparecidos. Todos os que estavam presentes puderam vê-las, identificadas com as fraldas brancas em suas cabeças. Pouco depois  aconteceu uma marcha das organizações de direitos humanos, que terminou com 300 pessoas detidas, incluindo- por erros- vários jornalistas estrangeiros. Graças a essas abordagens, o mundo voltou sua atenção para o que acontecia ali.

Nas marchas das Mães rezava-se o pai nosso e a ave maria. Os policiais não se atreviam a incomodar mulheres devotas. Entre rezas e rezas, fazendo o sinal da cruz, encaravam os uniformes, e lhes chamavam “ assassinos”, e seguiam rezando. Amém. 

O direito de reunir-se, romper o isolamento, buscar por seus filhos, se converteu em si mesmo em um delito. Dezembro de 1977, um oficial da marinha que se sabia passar por irmão de um desaparecido organizou o sequestro e desaparecimento de três mães, duas monjas francesas e outros familiares e amigos. Assim era a coragem militar.

As mães estavam organizando uma coletânea para publicar uma solicitação em 10 de dezembro, denunciando os desaparecimentos.

Em 8 de dezembro sequestraram Esther Carega e Mary Ponce de Bianco em na igreja de Santa Cruz, junto a oito pessoas mais, incluída a monja francesa Alice Domon. Esther era paraguaya. Tinha encontrado sua filha adolescente, uma que os militares haviam liberado. As outras mães pediram que voltassem a suas casas e não se arriscassem mais. Esther não foi um único caso, decidiram seguir junto a ela até que se encontrassem cada um de seus filhos.

Dois dias depois, desapareceu a mulher com nome de flor. O terror daqueles tempos superou a tudo que podemos imaginar. Desapareciam quem buscavam os desaparecidos. Mas os militares haviam sido seletivos : sequestraram a quem todos consideravam “as três melhores mães”, Sin Azucena, teriam de fugir, esconder-se, voltar a casa. Para as mães não havia mais dúvidas : agora não só deviam buscar seus filhos e filhas, mas também suas amigas e companheiras. Buscando superar a paralisia e o terror, para seguir sua marcha.

Azucena havia parido a ideia de que as mães deviam se organizar para nunca mais estarem sozinhas em sua luta. E haviam dito algo “ Todos os desaparecidos são nossos filhos”. Assim estavam socializando a maternidade potente a cada mãe e o dia da grandeza a cada minuto de resistência.  

Chegou o mundial de 1978. O futebol encobrindo gritos e ruídos da realidade, mentiras a poucas quadras do estádio no rio continuam torturando gente na mesma proporção. O mundial foi um oxigênio para os militares: para seguir matando e seguir castigando cada vez mais pessoas com a miséria planejada.

As mães combinavam seus postos e horários de reunião. Nem sempre os jovens estavam presentes na praça, para evitar denunciar a ação. Cada uma levava um jornal debaixo do braço para despistar a vigilância, uma das utilidades atribuídas aos jornais na época.  Muitas vezes as reuniões eram interrompidas e algumas mães detidas, decidia-se então que quando uma mulher fosse presa, todas se apresentariam na delegacia e exigiam ser presas também. Os policiais viram atônitos dezenas e dezenas de mulheres aglomeradas nas delegacias exigindo ser detidas ao lado de suas companheiras. Em uma ocasião os protestos chegaram a reunir um grupo tão numeroso de mulheres que se fez necessário aprendê-las em um ônibus fretado.

Mães loucas, diziam os policiais, que não sabiam bem o que fazer : muitas vezes as liberavam para evitar o desgaste. Durante uma abordagem policial na praça, quando os policiais exigiam os documentos de uma das mulheres, todas se apresentavam. Pequenas estratégias de mobilização coletiva garantiam a permanência das mães na praça de maio.

Em 1979 chegou ao país a Comissão Internacional de Direitos Humanos, e também o  futebol. A Copa do Mundo Juvenil tinha todos esperando por Maradona, e os militares aproveitaram a oportunidade para manobrar os jornalistas e os radiadores, chamando as pessoas para a Praça de Maio, e manipularam as informações, declararam à comissão  “ os desaparecidos algo de mal haviam feito”,  “ os levaram por algum motivo”, queriam mostrar à comissão o que chamavam de a “ verdadeira imagem do país”. 

 Era a época da prata doce, a festa das multinacionais, o dólar barato, milhares de argentinos gastando no exterior, o que nunca tinha gastado no próprio país, graças à miséria organizada pelo governo.

Os jornais e as revistas não só censuravam as informações para defender seu negócio, como faziam campanha para os militares : “ Os argentinos são direitos e humanos”.  Confirmado : Nunca devemos subestimar a estupidez humana,  a capacidade de negação e o alcance da crueldade.

Em 1979 aconteceu outro parto, outra celebração : As mães decidiram criar a Associação de Mães da Praça de Maio. Se todas estavam em risco, essa era uma forma de se proteger e manter a luta viva. Casualidade, destino, ação direta determinou-se que a associação fosse criada em uma data impossível de esquecer : 22 de agosto. Haviam se passado sete anos do massacre de Trelew,  mas pareciam sete séculos de dor e esquecimento.

Os militares assassinos argentinos inventaram um conflito contra os militares chilenos, que serviam de estratagemas e conflitos para permanecer no poder. E durante esses tempos foi muito próspero a fabricação de caixões, até que o Papa permitiu. Sequestros clandestinos e desaparecimentos noite adentro, e se faziam vistas grossas. Guerras abertas entre governos, vizinhos e tementes a deus. Até para o Vaticano. Amém.

 As mães continuaram se encontrando na praça e nos bares. Para que não fossem descobertas mudaram de nome. Se iam as Las Violetas, diziam ir a Las Rosas. Levavam escondidas em suas carteiras, debaixo do braço, arquivos, registros e documentos.

Receberam em 1980, graças aos apoios internacionais, Las Madres, puderam abrir uma sede, mas decidiram permanecer ocupando seu território inicial, a Praça de Maio, e nunca mais a abandonaram. 

De quinta-feira a quinta-feira, seguiram esperando um esquadrão inteiro com armas engatilhadas. Caminhavam de hora em hora por onde não pudessem ser vistas, aos poucos cercando a pirâmide de maio com sua marcha que nada podia deter. Levavam jornais enrolados. Aprenderam com seus filhos, e levavam também garrafinhas de água e bicarbonato porque as esperavam com gás lacrimogêneo. Não precisavam de gás para chorar, mas decidiram transformar o desalento em ação. 

Os militares eram a rigidez e a brutalidade. As mães eram a fluidez e a energia. Os militares e os policiais eram a  morte . Os carrascos. as mães a vida.

Se lançou um pequeno folhetim sobre as mães, que ganhou apoio popular dentro e fora da Argentina. Os militares chamaram antigas lideranças políticas para dialogar, como abrindo espaço, diante da crise econômica gerada pelo desgaste de seu próprio governo.

Mas Las Madres estavam presentes simbolizando onde a verdadeira política estava viva, e exigiam ser protagonistas. Em 1981 realizaram a retomada da Praça dando início a primeira marcha da resistência. Sozinhas, poucas, mas unidas, resistiram 24 horas seguidas. 

Viveram momentos de jejum, escondidos em igrejas e catedrais. Os jovens, sobretudo, se comoviam. Nascia o slogan “ aparição com vida”, eram como almas penadas.

Em 30 de abril de 1982, aconteceu uma manifestação de protestos em Buenos Aires contra a situação econômica, a miséria generalizada, com a política reprimindo a todos. Dois dias depois, a Praça de Maio era ocupada para aplaudir os militares que haviam invadido Malvinas, acreditavam assim que se iria chegar a um poder em uma espécie de brinde perpétuo. 

Las Madres gritaram que a guerra era outra mentira. Os militares que sequestraram covardemente, torturaram clandestinamente e assassinaram milhares de corpos lançados ao rio, não podiam da noite para o dia se tornarem patriotas impecáveis e valorosos.  

Acusaram Las Madres de serem antinacionalistas.  Elas colaram cartazes “ Las Malvinas são Argentinas. Os desaparecidos também.” muitos criticaram a postura das mães, deviam estar juntos diante da guerra, do lado dos militares. O tempo revelou quem tinha razão sobre os bravos soldados, entre eles acontecia o mesmo que tinha sido delatado por Azucena, Esther e Mary.

A derrota dos militares reacendeu a possibilidade de democracia. Se abriu uma multipartidariedade, formada por novos candidatos e partidos políticos. 

Em 1983 houveram eleições, Alfonsín chegou à presidência, e as mães realizaram uma marcha para que ninguém esquecesse os ausentes. Em seus cartazes diziam que seus filhos desaparecidos tinham lutado por justiça, liberdade e dignidade humana. 

O governo formou a CONADEP, a comissão nacional para o  desaparecimento de pessoas.  As mães desconfiaram, não quiseram integrá-la. Sempre preferiram a rua e os comícios. Criaram um jornal, a associação crescia e reclamava os desaparecidos com vida e exigia responsabilização dos culpados.

Em 1985 Alfonsín as convocou, mas não as atendeu, segundo declarações oficiais porque precisou de última hora ir a Colón.  As mães então ocuparam a Casa Rosada, e ficaram lá instaladas como forma de resistência pacífica. Essas ações mostram o racha entre discursos de direitos humanos do governo e a realidade. E revelaram como a proeminência política dos gabinetes, para os movimentos sociais, enfrentava problemas.                                                                         

Em 1985 Alfonsín conduz o julgamento  feito às Juntas, mas houve apenas duas sentenças para prisão perpétua. Os de Videla e Massera. Os outros chefes militares receberam baixas sentenças, ou foram absolvidos. As Mães protestaram : levantaram-se e deixaram o tribunal.  Eles seguiram  com  ações, passeatas, escracho para os militares na porta de suas casas, viagens e campanhas ao redor do mundo, a luta contra as leis de Ponto Final e Obediência Devido, A luta contra as rebeliões da Semana Santa e as caras pintadas.

A  marcha dos Lenços, quando cobriram a casa do governo com lenços brancos, os prêmios internacionais. Apoio a conflitos, greves, reprimidas e perseguidas. Elas estavam começando a ter uma mobilização de massa : o outro sou eu.

As Mães, além de denunciarem o que havia acontecido com seus filhos, fizeram outra coisa: mantiveram vivo os ideais pelos quais esses jovens haviam lutado e morrido. É por isso que elas sentiam que mesmo sem estar lá, seus filhos estavam presentes. Aquelas donas de casa desamparadas e assoladas pelo desespero, tinham conseguido transformar a dor em ação e reflexão.                                                           Todas essas lutas se multiplicaram ao infinito quando Menem chegou à presidência aperfeiçoando na democracia a miséria organizada,  privatizou o país, flexibilizou o Estado, massificou o desemprego, protegeu toda classe de mafiosos, assassinos e corruptos e os colocou para governar com ele. Deu salvo conduto a todos os militares que tinham sido condenados. Tudo se mantinha da mesma forma quando De La Rua subiu, as mães permaneceram ativas e novamente ocuparam a praça, nos dias 19 e 20 de dezembro, quando aquele governo tentou impor ao Estado de cerco e se dedicou a reprimir milhares e milhares de pessoas fartas de tanta decadência e mentiras. Mais uma vez as praças estavam lotadas e a repressão deixava jovens mortos.

A história recente é mais conhecida, Las Madres e sua universalidade repleta de jovens, de movimento, de conferências, de projetos. Las Madres e sua insurgente mobilização, para que escute cada palavra do que tem a dizer. A sua intervenção na luta contra as máfias, contra a miséria, contra a morte :

E cada quinta-feira, como sempre, las madres, caminhando, tecendo solidariedade, ocupando esse território da praça para que se torne um espaço seguro para todos.

Era uma vez um país com nome de mulher, onde a morte andava solta perseguindo os sonhos, acorrentando a vida. E nesse país de nome prateado, os sonhos e a vida tiveram que aprender como enfrentar os carrascos. Las Madres nos deixaram essa herança :

Cómo convertir al dolor, en acción.

como transformar a dor, em ação.

La parálisis y el miedo, en lucha.

a paralisia e o medo, em luta.

La desesperación, en coraje.

desesperança, em coragem.

Las lágrimas, en acciones.

as lágrimas, em ações. 

Para acorralar a la muerte, como el primer día:

Para acorrentar a morte, como no primeiro dia :

tejiendo luchas,

tecendo lutas

haciendo circular los sueños,

cultivando sonhos

y alumbrando la vida.

e celebrando a vida.

Por Sergio Ciancaglini, postado originalmente no dia 24/03/2022 em espanhol no portal lavaca. Traduzido por ANANACARS.

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