O texto abaixo foi apresentado em uma aula pública homónima durante a calourada do curso de filosofia da Universidade de São Paulo (USP) em 16/03/2022.
A situação atual:
Nós pensamos em começar nossa reflexão sobre deserções de gênero e Universidade fazendo as seguintes perguntas: onde estamos? e que horas são? Estamos numa Universidade que está situada no país que mais mata pessoas trans no mundo. Segundo o relatório da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), no ano de 2021 o assassinato de pessoas trans, em sua maioria travestis e mulheres trans racializadas, vem crescendo.[1] O Brasil segue sendo, pelo 13º ano consecutivo, o país que mais assassina pessoas trans no mundo. Esse aumento se dá num contexto de avanço de discursos de ódio contra pessoas trans, de políticas anti-trans, como as políticas contra o uso de linguagens não-binárias e contra a chamada “ideologia de gênero”, e também de crescimento do porte de armas pela população. Num cenário de desagregação das relações, de crise, desemprego, aumento da violência pelo Estado e pela sociedade civil, o transfeminicídio avança não só no Brasil, mas globalmente. De todos os lados, as minorias sociais e suas lutas se tornam o mal de toda situação que estamos.
Mas comecemos pelo título.
O que são deserções de gênero?
As deserções são antes de tudo fugas ativas, fluxos que escapam, abandonam um território, mas para criar outra coisa. Nesse caso, trata-se de fugir, desertar o território do sistema de gênero e suas carcaças, território mortificado que é tecido também de relações econômicas e raciais. A deserção é, assim, uma prática e é uma prática que é por natureza múltipla. Primeiro, porque para desertar é preciso várias coisas, é preciso mobilizar um conjunto de elementos que se extrai, que se arranca do sistema econômico, do sistema da linguagem, do sistema ecológico, cosmológico, político etc., dando-lhes outros usos: é preciso, nesse caso, hormônios, salto alto, silicone, binder, dildos, mas também navalhas, formações de grupo, afeto de ódio a quem nos espanca e nos violenta, e a solidariedade para nos autodefender e criar novos territórios. Segundo, porque existem várias maneiras de desertar, várias práticas que traçam as rotas de fuga diante de uma situação de dominação, humilhação, violência, enclausuramento, criminalização, patologização, caça, captura e mortes múltiplas.
Hoje é muito comum, quando a gente fala de deserções de gênero, quando falamos de pessoas trans femininas, trans masculinas, travestis, não-binárias, quando falamos de experiências que escapam do binarismo homem-mulher, é muito comum que se diga que é algo recente, coisa de “pós-moderno” ou, ainda, “identitário”, palavras que se tornaram, para além de qualquer valor analítico e crítico consistentes, jargões de depreciação e desqualificação. Contudo, existências não-binárias se fazem presente no mundo há muito tempo.[2] Não são as existências binárias que são recentes, mas é o sistema de gênero tal como o conhecemos que é recente e funciona apagando as existências que não são conforme a esse sistema, apagando-as da memória coletiva e da história oficial construída pelo Estado moderno. Esse sistema de gênero, que consiste em organizar os corpos, as populações, mas também os fluxos de dinheiro, mercadoria, de signos, moléculas químicas, conforme a divisão entre dois sexos, é algo que surge com o capitalismo e o colonialismo.
É só na modernidade que as relações são atribuídas aos órgãos como se fossem propriedades deles. A modernidade realiza uma biologização do vínculo das pessoas e delas com o mundo, seja por via da sexualização do corpo, seja por via da sua racialização. Para realizar essa biologização, certos órgãos são sexualizados, de maneira diferenciada e hierarquizada (masculino-feminimo) conforme às exigências de uma cisheterossexualidade compulsória: a imposição de uma coerência entre sexo, desejo e gênero, em que as existências sociais padrões se tornam a cisgênera e heterossexual. A partir dessa sexualização o gênero é naturalizado, ou seja, o gênero é produzido como propriedade de órgãos sexuais. E é atribuído gênero não apenas aos órgãos genitais, mas também ao que se chama “aspectos secundários”: como os pelos e o timbre da voz. Também, mais contemporaneamente, se atribui gênero às moléculas de hormônio, aos cromossomos etc. A partir dessa atribuição de gênero, atribuição feita por um conjunto de tecnologias, de práticas coletivas, todo o campo social, toda vida coletiva é organizada, as divisões sexuais do trabalho são estabelecidas (separação entre trabalho produtivo e o dito trabalho do cuidado), é realizada a divisão entre esfera de produção e esfera da reprodução cisheterossexual – que envolve não só a família, mas a escola, a saúde etc. – ao mesmo tempo que pessoas desviantes são patologizadas, criminalizadas, sujeitadas a trabalhos super precários, sobretudo trabalhos sexuais.
O sistema de gênero é de partida, portanto, transfóbico, é uma estrutura que opera de maneira transfóbica desde seu nascimento, negando outras existências que escapem ao binarismo e produzindo seus inimigos internos sobre os quais a violência é legitimada. E esse sistema é constitutivo de um certo tipo de sociedade, que tem na cisheterossexualidade compulsória não uma mera identidade (aquilo que somos), mas um regime de poder pelo qual a população e as pessoas são controladas desde seu nascimento até sua morte: no limite, se você não é funcional à reprodução, sua existência é desvalorizada e sua morte deixa de ser passível de luto.
As tecnologias de produção do gênero: entre o fazer viver e o fazer morrer.
Antes mesmo das pessoas nascerem já há toda uma estrutura de organização binária, muito concreta e objetiva (como algo natural), baseada na divisão sexual, que irá recebê-las e nomeá-las. E toda trajetória de vida das pessoas, toda vida cotidiana é organizada por essa estrutura que nos afeta constantemente e nos nomeia, ao mesmo tempo que se recusa ser nomeada e identificada. E essa operação estrutural é importante de mencionar, porque há um tabu quando falamos de crianças trans. Se veta, de maneira moralista, a experiência de trânsito de gênero às crianças, ao mesmo tempo que se naturaliza a cisgeneridade das crianças e adolescentes. Contudo, as crianças e adolescentes trans existem e também são submetidas à violência transfóbica. Segundo o relatório da ANTRA de 2021 sobre assassinato de pessoas trans, nos últimos anos pessoas trans são assassinadas cada vez mais jovens. O ano de 2021 se iniciou com o assassinato de uma jovem trans de 13 anos, vítima de transfeminicídio – Keron Ravach.
Portanto, a transfobia desempenha um papel importante na regulação e controle das populações, de seu nascimento, de suas relações intersubjetivas, de suas relações com seus corpos, de suas formas de aparecer publicamente[3], de habitar o mundo e de morrer. Esse controle, animado pela transfobia, se faz não só na família, mas também na escola, nas prisões, no mercado de trabalho, nas universidades, nos aparelhos midiáticos, nos aparelhos estatais, no corpo da cidade e nas diversas formas arquitetônicas que solidificam os modos de viver em coletividade e regular as relações sociais entre os corpos. Pela transfobia é realizada uma distribuição desigual da precariedade social e da exposição à morte.
E para o exercício desse controle é fundamental a produção das identidades de pessoas trans como identidades transtornadas, delirantes, criminalizáveis e patologizadas. É muito comum que as identidades de pessoas cis sejam pensadas como naturais, como conformes, havendo uma coerência natural entre sexo, desejo e gênero. É também muito comum que as pessoas cis sintam que seu gênero está em coerência com seu sexo, tendo um lastro material, uma objetividade. Enquanto as identidades de pessoas trans são apresentadas como artificais, meramente subjetivas, “delirantes”, sem “referente”, porque em incoerência com o sexo. Contudo é tudo isso que é um artifício, é a própria coerência e o sentimento de coerência que é resultado do sistema cispatriarcal, transfóbico, que produz suas formas de subjetividade, seu “eu sinto que esse sexo diz quem sou”.
E nós podemos dividir o exercício da transfobia em dois níveis:
Transfobia de Estado
O Estado não é apenas um agente omisso em relação à transfobia. A transfobia não acontece simplesmente porque o Estado se faz ausente para a população trans, porque falta “inclusão”. Na verdade, historicamente, o Estado é um importante agente de exercício da transfobia e do transfeminicidio, um agente ativo na distribuição desigual da precaridade de vida e de exposição à morte a partir de suas políticas públicas, de seus aparelhos penais, educacionais e de saúde: o Estado deveria estar no banco dos réus, ou melhor, ser submetido a uma verdadeira justiça popular. É pelo Estado que a transfobia, enquanto regime de poder, consegue produzir efeitos globais sobre todo o conjunto da população. Com sua polícia, seu aparelho jurídico, com sua medicina de Estado, o aparelho de Estado violenta as pessoas trans, as reprimem, seus agentes policiais nos caçam, nos espancam cotidianamente, extorquem e pilham, controlam nossos comportamentos, costumes etc, inviabilizando a construção de comunidades existenciais, nos negam acesso a saúde pública e a direitos básicos. Em resumo, o Estado coloca a população trans numa verdadeira zona cinzenta de exceção, fora da lei, fora do direito e alvo da polícia em seu sentido mais amplo: polícia dos fardados, mas também da família, da medicina, do aparelho jurídico. Lembremos, por exemplo, da operação policial Tarântula de 1987 contra travestis em São Paulo, uma verdadeira caça penal associada a um discurso médico de higienização urbana.
Além disso, uma das grandes dificuldades de se produzir dados sobre as violências sofridas pela população trans-travesti é, principalmente, o apagamento sistemático de suas existências realizado pelo Estado, com sua polícia e seus órgãos de segurança. No caso do assassinato de pessoas trans, por exemplo, as ocorrências desconsideram suas identidades de gênero, por destoar do padrão binário. O que inviabiliza mapear as violências que são especificamente dirigidas contra pessoas trans e suas identidades. O levantamento atual sobre assassinato de pessoas trans é feito principalmente pela ANTRA, que se utiliza da mídia e de relatos como fonte, diante da ausência de levantamentos feitos pelo Estado.
Transfobia difusa
Mas há um outro nível de transfobia, uma transfobia mais difusa, que se exerce sobre o corpo individual e que é realizada por uma multiplicidade de instituições: que vai desde as práticas de expulsão da família, passando pelas exclusões nas escolas, nas universidades, pelo encarceramento, agressão policial, até a guerra civil molecular que é estabelecida contra pessoas trans no seio da população, que vai do olhar de repulsa e o riso, até a consumação de violência direta. Não é só o Estado que trava, a partir da transfobia, uma guerra contra sua população, mas a transfobia produz, incita uma guerra da população contra si mesma. A transfobia é uma verdadeira maquinaria de produção de pulsão de morte social. É uma transfobia exercida pela família, pela escola, pelo mercado, por parceiros, clientes, cafetões, pela sociedade civil em geral. De modo que a luta contra a transfobia é uma tarefa ao mesmo tempo dirigida contra o Estado, o mercado, mas também contra toda estrutura da vida cotidiana e das relações entre as pessoas.
Transfobia na Universidade
Quando se trata de Universidade, a situação não é diferente. Primeiro, o acesso de pessoas trans à Universidade é extremamente restrito. Por exemplo, apenas 0,2% de travestis e mulheres trans estão nas Universidades. E quando pessoas trans entram nas Universidades, encontram diversos obstáculos: falta de bolsas, ausência de cotas nos processos seletivos para pós-graduação, falta de moradia, de garantia de usar os banheiros conforme sua identidade de gênero, ausência do uso pleno de seu nome social, sem ter que ficar sendo lembrades de seu nome de registro. Além disso, existe todo um imaginário partilhado dentro da Universidade de que esse espaço não é pra gente, que pessoas trans não existem na Universidade, mas estão na prostituição. Chegamos a ouvir esse tipo de discurso na filosofia, além de tantos outros que buscam nos dizer que não somos “trans” e “travestis” de verdade. Ou que, na sua versão dentro do discurso militante, nossas pautas são “subjetivas” demais, secundarizando-as. A nossa morte vem de várias maneiras.
Mas há também muita luta e direitos conquistados. Nem todas essas lutas travadas nos esquemas e jargões militantes cristalizados pelos quais se reconhece o “fazer político”. Muitas delas travadas por coletividades, vínculos políticos muitas vezes informais, seja dentro ou fora da Universidade, mas com forças ancestrais que não só nos alertam dos perigos de querer “reinventar” a roda, mas também que nos dão um solo a partir do qual a reconquista dos que nos foi tirado pode se arriscar a dar passos mais largos: queremos muito mais. Foi a partir da luta dessas pessoas que nos antecederam que hoje, na filosofia, há plaquinhas para garantir que pessoas trans possam frequentar os banheiros conforme sua identidade de gênero, é graças à luta dessas pessoas que tivemos algum avanço na questão do nome social na filosofia.
Esse mundo, com seus universos referenciais, é pequeno diante do que podemos criar e desejar para viver de fato plenamente. A multidão desertora de gênero carrega em si também o germe de novos mundos e formas de habitar o mundo, de viver a relação social, a relação com o corpo e com toda esfera cosmológica.
Assim, esse texto não é só um diagnóstico sobre nossa situação, mas também um chamado para que pessoas trans da filosofia se juntem a nós para confabular como matar o que nos mata.
Por Agnes de Oliveira Costa, Mestranda em Filosofia, Travesti terrorista de gênero em tempo integral e militante
e Sabina Sabino, moça trans, vinte poucos anos, poeta e escritora profissionalmente amadora com terríveis excessos de estilo e forma. Estudante de filosofia e tradutora de inglês ocasionalmente. Se quiser me procurar, não vai achar, mas manda um e-mail se tiver algum trabalho pra me dar, ou quiser ver mais do que eu escrevo. gbsabino@gmail.com
[1] Baseamos os dados aqui utilizados no seguinte relatório da ANTRA: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2022/01/dossieantra2022-web.pdf
[2] A retomada da memória de existências não-binária, em conflitos com o sistema de gênero capitalista e colonial e à margem da história oficial construída a partir do eixo patológico e criminalizante do discurso e das práticas sociais médico-legais, é algo que vem crescendo cada vez mais a partir de uma história contada do ponto de vista “de baixo” e de pessoas dissidentes. À título de exemplo, recomendamos o texto “Utopias mapuche não binárias para um presente epupillan, que busca resgatar “vestígios de experiências de seus ancestrais mapuche não heterossexuais”. In: https://chaodafeira.com/catalogo/caderno124/
[3] Para além de uma precariedade social e econômica induzida pela transfobia – a partir do momento em que você entra em conflito com o sistema sexo-gênero, sua vida é precarizada, os lugares restringidos, as expulsões das esferas sociais alargadas – há um outro dado estrutural que está além da relação capital-trabalho e que toca àquilo que Butler conceitualizou como “direito de aparecer”: trata-se da negação sistemática do direito à aparição pública, ao exercício performativo de aparecer publicamente nos mais diversos espaços sociais. Ver, por exemplo, Judith Butler – “Política de gênero e o direito de aparecer”. In: Corpo em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia – https://bityli.com/sVdTO
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