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20 ago 2022

Desmanchando o Horror Cósmico: algumas notas sobre a vida

Sawabona: eu te respeito, eu te valorizo. você é importante para mim.

(provérbio sul africano)

Um estudo[1] feito na Espanha em 2022 estima a prevalência de civilizações extraterrestres malignas com base nas invasões de guerra que ocorreram no nosso planeta nos últimos 100 anos. Para além de inventiva, a metodologia de Alberto Caballero parte de uma interdisciplinaridade interessante, que me faz olhar para nossa experiência frente essas e outras invasões e pensar que talvez elas possam nos dizer algo sobre a vida.


Sobre a pergunta: “Se existirem civilizações extraterrestres, elas serão malignas?”, penso que certamente uma perspectiva maniqueísta falharia absolutamente em respondê-la, e também não pretendo declarar aqui nenhum tipo de otimismo ingênuo, uma vez que conhecemos o ímpeto destrutivo do ser humano com sua própria espécie, mas esse ímpeto não é tudo o que conhecemos e entre nós sempre existiram aquelas e aqueles que nunca foram considerados humanos (Brasileiro, 2022) e, portanto, chegaram a outros caminhos intelectuais sobre a existência e sobre a nossa experiência no planeta Terra.


Tendo essa perspectiva como pano de fundo, um dos fatores que me parecem intrínsecos a vida como a conhecemos[2] é o de que toda forma de vida depende de outra para manter sua existência, nenhum organismo vivo pode permanecer assim sem a presença de outros, seja pelo conjunto de bactérias e parasitas micro-orgânicos que controlam a estabilidade dos corpos, seja pelo fator da reprodução[3] que implica diretamente na continuidade da vida, ou pela cadeia alimentar, uma estrutura tão elementar que foi um dos motivos para a quase extinção da vida no planeta Terra no período jurássico.


Se a vida é expansiva, mutante e prolífera, como tem se mostrado ser no planeta Terra, ela depende de um senso de cooperação para acontecer. Percebemos isso quando observamos animais que pensam de forma diferente da nossa e que não estabelecem suas relações com base em nosso tipo de intelectualidade, mas ainda assim tendem a preservar outras vidas e a contribuir para sua proteção e continuidade, como quando vemos um cachorro tentando salvar um peixe ao devolvê-lo para água, ou um búfalo que desvira uma tartaruga no chão, já que ela não conseguiria sozinha[4]. Esse senso de cooperação me parece fundamental para que a vida se mantenha, visto que ele acontece sem nenhum cálculo ético produzido pelo homo sapiens e, portanto, está para além das ideias de bondade ou maldade.


Um ponto importante que me pareceu insuficiente na pesquisa é o de que se ela cobrisse um período um pouco maior de invasões[5] chegaríamos ao colonialismo e ao continente africano, local mais invadido no planeta Terra até o momento. Considerando essa abominável experiência histórica, o que o continente africano nos ensina sobre coletividade mesmo após as invasões me parece um elemento fundamental para essa análise, tendo em vista que a partir da filosofia Ubuntu entendemos que nossa existência enquanto seres vivos está intimamente ligada com a força vital ao nosso redor, produzindo profundos vínculos e ligações de alteridade com outros animais, plantas, minerais e tudo aquilo que compõe a vida no planeta Terra.


No recente contexto do fim do apartheid na África do Sul, Ubuntu foi usada
como uma concepção operacional de justiça (Ngoenha, 2011) para buscar uma alternativa de “reconciliação” racial que percorresse outro caminho que não o da tradicional justiça punitiva do Ocidente, produzindo uma tentativa de reintegração da sociedade que visasse uma outra atitude relacional, o que reforça a existência de diferentes possibilidades ético-políticas para os efeitos de guerras e invasões e complica o método socioculturalmente mal situado dessa pesquisa, isso porque invasões e guerras não são dados da natureza, mas produtos de acúmulos históricos de conflitos sociais, econômicos, raciais e culturais baseados nas relações poder. Com isso pretendo dizer que a competição talvez seja algo mais produzido socialmente do que um elemento encontrado na natureza.


Para além disso, considerando o paradigma climático e ecológico; o devastador extrativismo capitalista e a contínua sede de poder do mundo moderno-colonial talvez não tenhamos tempo de nos tornar uma “civilização tipo 1”[6], nem tenhamos mais 259,5 anos até o fim do mundo como o conhecemos (Ferreira da Silva, 2019)[7].


Mas minha intenção com esse texto não é a de refutar totalmente a pesquisa de Caballero (até porque ela não aponta para um alarmismo sensacionalista ou para algum tipo de horror cósmico racista de H.P. Lovecraft), mas sim demonstrar que se existe algum fator que parece ser universal sobre a vida – mais do que a ideia de bondade ou maldade – é o da colaboração. Não sabemos se existe vida fora da Terra, mas a sabedoria espiralar dos povos africanos nos ensina que “eu sou, porque nós somos” e se a probabilidade de uma invasão alienígena acontecer é menor do que o impacto de um “planet-killer”[8], como apontam os resultados, esse senso de coletividade e colaboração que parece ser fundamental para que a vida floresça e se prolifere, certamente deve ser levado em consideração como um dos fatores que contribui para isso.


Talvez o que conheçamos de maligno sobre o homo sapiens tenha mais a ver com a postura daqueles que historicamente vem sendo considerados humanos e a vida em si (extraterrestre ou não) esteja mais ligada à beleza incognoscível do cosmos.

Referências:

Alberto Caballero. Estimating the prevalence of malicious extraterrestrial civilizations. Artigo submetido em 23/05/2022. Disponível em: https://arxiv.org/abs/2205.11618 na data de 31/07/2022.

Castiel Vitorino Brasileiro. Quando o sol aqui não mais brilhar: a falência da negritude. N-1 edições; Editora Hedra, São Paulo, 2022.

Denise Ferreira da Silva. Um fim para “este” mundo: entrevista de Denise Ferreira da Silva na revista Texte Zur Kunst. Entrevista concedida a Susanne Leeb e Kerstion Stakemeier e publicada originalmente em 2019. Tradução de Lori Regattieri e Tatiana Oliveira, disponível em: http://revistadr.com.br/posts/um-fim-para-este-mundo-entrevista-de-denise-ferreira-dasilva-na-revista-texte-zur-kunst/ na data de 31/7/2022. 

Severino Elias Ngoenha. Ubuntu: Novo Modelo de Justiça Glocal? In: Pensamento Engajado: ensaios sobre Filosofia Africana, Educação e Cultura Política. Maputo: Editora Educar, Universidade Pedagógica, 2011b, p. 63-74.

Palavras-chave: Vida, Cooperação, Colaboração, Ubuntu.

Notas:

[1] “Estimating the prevalence of malicious extraterrestrial civilizations”, de Alberto Caballero. Artigo submetido em 23/05/2022. Disponível em: https://arxiv.org/abs/2205.11618 na data de 31/07/2022.
[2] A noção de “vida como a conhecemos” é importante aqui porque para os pesquisadores do SETI (Active Search for Extra-Terrestrial Intelligence), é preciso filtrar as formas de busca por vida extraterrestre em planetas que tenham condições parecidas com as da Terra, isso porque a única referência de vida que conhecemos é a que acontece aqui.
[3] Aqui não me refiro apenas a reprodução por pares, mesmo aqueles organismos que se autorreproduzem estão, nesse exercício, multiplicando a vida.
[4] Esses exemplos se somam a vários outros e podem ser vistos em vídeos virais publicados nas redes sociais.
[5] O estudo considerou invasões ao redor do mundo no período de 1915 a 2019.
[6] O autor usa a escala de Kardashev para pensar sobre as civilizações que teriam controle suficiente de energia para realizar viagens interestelares. Segundo ele, a humanidade demoraria mais 259,5 anos para atingir a fase 1 indicada pela escala.
[7] Em entrevista para a revista Texte Zur Kunst, a filósofa e artista diz que: “Estou muito preocupada com a possibilidade de não conseguirmos parar o fim deste mundo onde existimos, estou preocupada com a demolição de estruturas democráticas que, apesar de limitadas e perversas, forneceram pelo menos uma âncora para reivindicações de justiça social e global […] Estou preocupada que os insetos e outras espécies estejam se extinguindo, que os rios estejam secando, que os oceanos estejam sendo sufocados por plástico, que o fracking esteja destruindo e ameaçando contaminar grandes áreas de água subterrânea […]”.
[8] Corpos celestes capazes de extinguir a vida em um planeta.

Por Noite Abissal (Nic Oliveira), artista não-disciplinar, uma das fundadoras da produtora transartística Sol da Meia Noite e criadora do projeto musical Tristeza Poente. Vem estudando as relações entre arte e política e realizando pesquisas estéticas a respeito da escuridão, do cosmos e da vida. Outros de seus trabalhos recentes giram em torno da feitiçaria como tecnologia de cura.

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