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29 ago 2022

Resenha de “O despertar de tudo: Uma nova história da humanidade”

Apresentamos a seguir uma leitura de “The Dawn of Everything – A New History of Humanity” (A Aurora de Tudo – Uma Nova História da Humanidade), de David Graeber e David Wengrow. O primeiro autor, antropólogo e militante anarquista, faleceu poucas semanas depois de concluir o livro, no qual trabalhou durante 10 anos com o segundo, que é arqueólogo, em trocas diárias de e-mails. Conforme eles explicam, os dois começaram com um propósito inicial de revisitar e talvez reformular as concepções sobre a origem da desigualdade. O avanço da pesquisa, porém, levou-os a concluir que tal resposta não pode ser encontrada, e se mostra mais viável mudar de pergunta, e discutir porque os seres humanos pararam de experimentar com suas formas de vida e se fixaram em estruturas hierárquicas e opressivas. 

De saída, isso implica abandonar a ideia de comunismo primitivo, como os marxistas o chamam, ou de “paraíso perdido”, conforme os autores apresentam no livro. Os dois se debruçaram sobre um manancial enorme de evidências arqueológicas que se acumularam nas últimas décadas, relacionadas ao período da passagem das sociedades sem classe para as de classe, mas que não vinham sendo conectadas para formar uma visão articulada e coerente. Num livro de 700 páginas, mais de 200 são ocupadas com notas de rodapé, que indicam o porte colossal da pesquisa que foi realizada e sintetizada. Com essa imensa bagagem de informações como alicerce, o livro assim construído acaba servindo como uma verdadeira arma de destruição em massa, para estraçalhar velhas concepções que predominam no debate sobre a história humana, tanto na direita como na esquerda, há mais de dois séculos. 

A visão predominante da história traça uma trajetória evolucionária de desenvolvimento linear da sociedade, que se desdobra em uma série de etapas fixas, que seriam obrigatórias para todos os povos. Segundo essa concepção, predominante tanto na academia como no senso comum, alguns povos são “primitivos” ainda hoje, porque supostamente ainda estão nas etapas iniciais de desenvolvimento, e outros são “civilizados”, porque já percorreram um número maior de etapas. 

 No plano econômico, essas etapas envolvem a passagem de uma fase inicial em que prevalecem a caça e a coleta para uma em que prevalecem a agricultura e a pecuária; no plano geográfico, isso significou a passagem do nomadismo para o sedentarismo e a vida urbana; no plano social, a passagem de sociedades igualitárias para sociedades divididas em classes; e no plano político, a passagem de sociedades sem chefias e funções claramente definidas para sociedades com Estado, reis e nobres, sacerdotes e escribas, soldados e burocratas. Conforme as evidências empilhadas pelos autores, tudo isso é falso. São falsas as inúmeras narrativas que reproduzem a lenda bíblica do pecado original, de que os homens viviam num idílio paradisíaco, mas o conhecimento da técnica desencadeou a maldição da perda da inocência e os paradoxos da civilização, em que abundância e miséria, sofisticação e violência, caminham lado a lado, como se fôssemos hamsters que entraram numa roda e não podem mais sair. Também são falsas todas as suposições do homem primordial como um bom selvagem, puro e inocente, e igualmente falsas as ideias do homem como lobo do homem, egoísta por natureza (no livro comenta-se sobre um dos grandes sucessos editoriais do século XVIII, um relato de uma mulher europeia que viveu entre os nativos peruanos, no qual ela explica que eles não eram nem anjos nem demônios, nem sábios nem bestas ferozes, nem seres especiais com algum tipo de relação mágica com a natureza e o universo, nem seres sub-humanos incapazes de sentir e pensar; eram seres humanos como nós, com as mesmas contradições). E são falsas as concepções de que a humanidade antiga arrastava uma existência de escassez e luta dura pela sobrevivência, e inversamente, as concepções de que se vivia no puro ócio e despreocupação. 

No lugar de tudo isso, o quadro que surge é de uma humanidade que, por 30 ou 40 mil anos, empregou a sua capacidade mental, que era a mesma dos homo sapiens de hoje, para desenvolver os mais variados tipos de experiências econômicas, sociais e políticas. Os seres humanos em todos os continentes experimentavam com os seus modos de vida em todos os sentidos possíveis, da alimentação à moradia, do parentesco à religião, e às vezes alternavam entre uma escolha e outra. Há sociedades que viveram durante séculos numa determinada forma, depois mudaram para outra, ou depois voltaram para a primeira, e assim por diante, numa ampla variedade de trajetórias. Há muitos casos em que a mesma tribo vivia durante uma parte do ano em estrita igualdade e coletivismo e durante as outras estações se dividia em grupos menores sob ordens de um chefe com grandes poderes. Há outros em que praticavam a agricultura e a pecuária, e depois a abandonavam em troca da caça e coleta. Há outros em que experimentavam arranjos sociais com chefes, guerreiros e sacerdotes, mas sem que essas estruturas se solidificassem em aristocracias hereditárias, com poderes que retornavam para o coletivo em regimes sazonais. 

Experimentavam com a vida urbana e rural, às vezes alternando épocas do ano em uma e em outra forma. Experimentavam regimes de casamento e divisão sexual do trabalho, sem que isso implicasse autoridade de um dos sexos sobre o outro, nem de tipo matriarcal nem patriarcal (todavia, há indícios seguros, não muito explorados no livro, de que os homens sempre tiveram um monopólio da caça e portanto um controle sobre o uso de armas, facilitando a posterior dominação sobre as mulheres e o estabelecimento do patriarcado). E experimentavam regimes de apropriação privada e coletiva de objetos e recursos, etc. Não há, segundo as provas trazidas por eles, uma sucessão automática de modos de produção, do “comunismo primitivo” para o escravismo, e daí para a servidão e o capitalismo, e nem uma determinação da história pelo “desenvolvimento das forças produtivas”, como entendem os marxistas mais mecanicistas. 

A ideia de que a economia é o centro da vida social foi projetada do capitalismo para as épocas passadas, cujas sociedades tinham, é claro, algum tipo de economia, mas tinham na verdade outras atividades como centro das preocupações, conforme comentaremos mais adiante. Outra concepção que está enraizada no pensamento acadêmico e no popular é a de que o aumento da complexidade da atividade humana implica automaticamente algum tipo de centralização e verticalização autoritária, ou seja, implica no aparecimento do Estado. As provas reunidas no livro desmentem essa concepção, ao exibir exemplos de cidades com cerca de 100 mil habitantes sem palácios reais, templos e monumentos a façanhas guerreiras, indicando que os seus habitantes organizavam coletivamente a vida sem a necessidade de governantes e aristocracias militares ou religiosas. Eles também trazem exemplos de casos em que a produção agrícola era organizada pelos próprios camponeses sem que houvesse a necessidade de burocratas investidos da autoridade para coordenar os trabalhos. E também cai por terra a ideia de que a escrita foi inventada pelas classes dominantes embrionárias para assegurar o controle sobre o excedente, pois eles encontram casos em que os registros escritos surgiam pelo motivo oposto, para garantir a distribuição igualitária de recursos entre todos os que tivessem necessidade.

 A correlação que é feita entre os conceitos de “civilização” e “cultura” com a existência do Estado, centralização administrativa e militar, divisão de classe, dominação e exploração, desaparece na medida em que se expõem sociedades que apresentavam elevado grau de desenvolvimento técnico, estético, filosófico, religioso, urbanístico, etc., sem a existência de classes sociais, Estado e centralização. Essa correlação foi criada por pensadores burgueses do século XVIII para responder às críticas dos povos originários da América, conforme veremos mais adiante, por meio de uma disjuntiva em que a humanidade tem que aceitar a inevitável desigualdade que vem com o progresso técnico ou aceitar uma vida miserável de mera subsistência às custas das dádivas da natureza. 

O que os autores procuram demonstrar é que a especialização de funções e o desenvolvimento técnico não criam necessariamente a desigualdade social, portanto não há aquela correlação entre complexidade e estruturas hierárquicas. Ainda que este tenha sido o rumo que a sociedade seguiu, outras alternativas eram sempre possíveis, essa é uma das afirmações principais do livro. O quadro da história da humanidade que surge, portanto, é muito mais variado e instigante. Durante muitos milhares de anos os seres humanos viveram vidas pautadas por preocupações outras que não a produção, em que certamente tinham que trabalhar, produzir, armazenar, processar alimentos e outros bens necessários à vida, mas isso não era o principal campo de atividade das suas vidas, a principal ocupação. Ao invés disso, a vida era dedicada às reuniões, aos festivais, aos rituais religiosos, aos cantos e danças, às obras de arte, às competições esportivas, brincadeiras e jogos,  relações sexuais e à constituição de laços amorosos, etc. Em algumas dessas sociedades havia hierarquias temporárias, que duravam por algumas estações do ano; em outras havia status diferenciados e inferiores para órfãos, estrangeiros e cativos de guerra; algumas se dedicavam sim à pilhagem e captura de prisioneiros, enquanto outras eram pacíficas. Havia enfim todos os tipos de arranjos, e o mais interessante é que havia a oscilação entre esses arranjos, um movimento de ida e volta entre formas de organização, o que indica que havia a reflexão e o debate coletivo sobre o que era melhor para a sociedade. A aparição da divisão de classes não foi uma fatalidade que resultou de algum mecanismo que teria sido posto em movimento de modo automático assim que foi gerado algum excedente; ela foi na verdade uma mudança em que deixou de acontecer aquela oscilação entre diferentes tipos de organizações e uma de tipo hierárquico se fixou. 

Conforme desenvolvem essa argumentação, os autores resgatam as contribuições dos principais pensadores da história da Antropologia, e também algumas ideias que ficaram meio esquecidas ao longo do caminho. Uma delas é a de cismogênese, a origem por separação, em que as sociedades se diferenciam umas das outras por um esforço consciente de ser diferentes e realçar as características que se opõem às de vizinhos e rivais (que são rivais não num sentido necessariamente bélico). Outra ideia interessante é a das comunidades imaginárias, segundo a qual, além do círculo imediato de uma centena ou duas de pessoas que cada indivíduo conhece diretamente ao longo da vida, toda pessoa tem também a noção de uma esfera mais ampla, uma tribo, nação ou humanidade inteira, que jamais será inteiramente conhecida em detalhe, mas é sempre reconhecida como um círculo totalizante de pertencimento, com um papel também estruturante para a personalidade.

A afirmação mais ousada e que vai causar mais indignação e contestação  talvez seja a de que as ideias tipicamente modernas e iluministas de autonomia individual, inviolabilidade da pessoa, liberdade de expressão e de pensamento, liberdade de ir e vir, etc., hoje tidas quase universalmente como parâmetro de uma sociedade avançada e democrática; foram em parte inspiradas aos pensadores europeus do século XVIII pelo debate com pensadores dos povos nativos da América do Norte. Esse debate apareceu no imenso volume de literatura etnográfica e proto-antropológica produzida por missionários, exploradores e comerciantes desde o século XVII, que era levada muito a sério pelos filósofos europeus contemporâneos e do século seguinte, que deixaram as suas impressões devidamente registradas, e que hoje se viu reduzida a uma espécie de curiosidade menor para historiadores. Mas esses relatos foram resgatados pelos autores para reacender o debate que ficou parado há mais de dois séculos entre as versões concorrentes e igualmente equivocadas do “bom selvagem” e do “homem lobo do homem”. 

Os nativos da América do Norte não eram menos inteligentes e sofisticados que os da parte sul do continente, os quais são normalmente vistos como superiores pelo fato de que desenvolveram sociedades com Estado e hierarquia. Representantes dos povos da América do Norte debateram de igual para igual com intelectuais europeus, como os jesuítas, que deixaram amplos registros desses debates, inspirando as gerações posteriores de filósofos europeus e influenciando o iluminismo nos séculos seguintes. O resultado do livro é devastador para os adeptos das versões mais preguiçosas do marxismo (que tendem a ser a maioria), pois estes, sem muita crítica, tomaram emprestada do liberalismo burguês a sua crença evolucionista no progresso, completando-a com a ideia de uma sucessão automática de modos de produção e de uma determinação da história pelo avanço das forças produtivas. Os marxistas em geral também caem vítimas da conexão entre complexidade e desigualdade, pois ela deixa uma brecha para que os militantes bolcheviques, que enxergam a si mesmos como os únicos intérpretes autorizados da complexidade, se apresentem como os gestores inquestionáveis do processo de transição. Mas isso é uma extrapolação nossa, os autores evitam a polêmica direta com o marxismo e anunciam, de maneira bastante modesta, que a sua intenção não é trazer respostas definitivas, mas fazer novas perguntas, como colocamos no início.

Ao invés da questão sobre a origem da desigualdade e do Estado, que parte de um pressuposto mítico de uma igualdade perdida, eles propõem a questão de porque a humanidade parou de experimentar e começou a aceitar a subordinação da sua vida a algum princípio superior e inalterável, como a economia ou a genética. Essa pergunta é mais interessante, porque parte de um pressuposto mais promissor e ao mesmo tempo mais sóbrio, de que são os homens que fazem a história, mas não nas condições que escolheram e sim nas que herdaram, conforme a frase de Marx que os autores citam, aliás a única no livro. A visão da história que resulta dessa leitura é de que, assim como é impossível prever com exatidão o futuro, pois podemos no máximo antecipar tendências, que podem se confirmar ou não, total ou parcialmente, também é impossível reabrir o passado, no sentido de especular o como seria o mundo caso alguns personagens tivessem feito outras escolhas, algumas batalhas tivessem outro resultado, alguns eventos acidentais não tivessem acontecido, etc. Sempre eram possíveis outras escolhas, para as pessoas que estavam vivendo na época, mas depois que determinadas escolhas foram feitas, elas se “petrificam” como causa e explicação de tudo o que aconteceu a seguir. Havia alternativas, mas já não há mais; tal é a aparência paradoxal dos acontecimentos humanos quando vistos retrospectivamente na tela da história. O passado, uma vez transcorrido, projeta essa ilusão para nós que o enxergamos hoje, séculos ou milênios depois, de que não poderia ter acontecido de outra maneira, porque os acontecimentos, uma vez vistos a posteriori, parecem todos se encaixar de modo exato e necessário.

É muito fácil explicar que estamos onde estamos, porque ao longo dos séculos passados foram criados o capitalismo, o Estado, o patriarcado, o colonialismo, o racismo, etc. É muito mais difícil imaginar que, a cada momento, outras escolhas poderiam ter sido feitas, outros resultados poderiam ter surgido da luta, e outra realidade poderia ter sido deixada para nós. Essa dificuldade para imaginar um passado que era aberto cristaliza uma ilusão, porque o passado foi vivido, desde a época mais remota até as que se encerraram recentemente, pelas pessoas que lá estiveram, da mesma maneira que nós vivemos o nosso presente, ou seja, como uma realidade cheia de alternativas, em que tudo é possível. Em todas as épocas da humanidade, ao lado daquilo que aconteceu, existia também aquilo que poderia ter acontecido, porque as pessoas em todas as épocas tinham uma multiplicidade de escolhas possíveis. A todo momento a disjuntiva entre emancipação e alienação esteve colocada, embora a via da emancipação, em cada época, possa estar mais íngreme e escarpada ou mais acessível do que em outras.

Falar em emancipação e luta contra a alienação não pressupõe recuperar nenhuma “essência perdida”, porque algo assim simplesmente não existe, tal como o livro ajuda a mostrar; nem chegar a nenhum resultado predeterminado e inevitável, como algumas versões deterministas da história supõem, mas envolve tomar consciência da armadilha em que nos encontramos, como resultado da história passada, para sair dessa armadilha em algum momento do futuro. Compreender essa armadilha requer observar a história de modo mais abrangente e totalizante, o que é útil também para mostrar que não há nenhuma força moldando a sociedade além de nós mesmos seres humanos. Apesar de todas as dificuldades legadas pelo passado e pelo presente, ainda temos o futuro aberto diante de nós. O passado não pode ser reaberto, mas tem que ser entendido como algo que foi vivido de modo aberto, pois essa parece ser uma maneira de reencontrar a abertura no nosso próprio presente, uma abertura que permita pensar o futuro sem os mitos e alienações que hoje nos submetem. 

Por Granamir.

4 Comentários

  • Tarcilio disse:

    Ler o livro de 700 páginas óbvio ser conveniente; entretanto a condensação feito por Granamir dá uma visão da qualidade dos dois autores da obra.

  • Maria Luiza Stehling dos Santos disse:

    Tem esta obra traduzida para o português? Fiquei muito curiosa sobre os fatos quw trazem tamanha flexibilidade aos arranjos sociais, econômicos e políticos dos povos. E uma desconstrução enorme na minha cabeça.

  • Maria Luiza Stehling dos Santos disse:

    Fiquei muito curiosa sobre os fatos quw trazem tamanha flexibilidade aos arranjos sociais, econômicos e políticos dos povos. E uma desconstrução enorme na minha cabeça.

  • anna disse:

    acabei de ler o livro e achei seu resumo excelente, meus parabéns.

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