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23 nov 2022

O Manifesto Aceleracionista de Gênero 

Morte ao gênero que nos mata! Liberdade para es cuir! Mas o gênero morre comendo o próprio rabo. O gênero já está morrendo. Seu suspiro de morte está sobre nós, mas ainda tem tempo para se salvar. Cabe a nós apressá-lo até seu fim final. Para acelerar, para dar-lhe rapidez, para fazê-lo…

Acelerar!

Gênero: Suas funções e origens

Base Material 

Antes de podermos discutir o que deve ser feito, precisamos saber o que é. E, como sempre, o lugar adequado para entender um sistema social é sua base material. As relações materiais que produzem o sistema social nos fornecem a melhor base para a compreensão do próprio sistema social.

As relações materiais são relações de produção. Ou seja, são a forma como nos relacionamos com as diversas formas de trabalhar e produzir as coisas. Toda a sociedade se baseia nessas relações de produção e elas produzem todos os nossos sistemas sociais. Gênero não é diferente.

Então, onde está a base material do gênero? O gênero é produzido principalmente pela divisão do trabalho reprodutivo. O trabalho reprodutivo é qualquer trabalho que ajude a produzir a próxima geração, incluindo sexo, nascimento, cuidar dos filhos e cuidar da casa, e o gênero é definido pela forma como esse trabalho é dividido, sendo os diferentes gêneros classes distintas que devem performar tipos específicos de tarefas relativas ao trabalho reprodutivo.

O modo como o gênero difere entre as culturas é determinado pela forma como essas tarefas são divididas entre os gêneros. As características particulares que são produzidas por isso são conhecidas como superestrutura. Assim, na medida em que o gênero é produzido por essa base material, envolve também uma amálgama de vários estereótipos, modos de vestir, de registro linguístico etc. em sua superestrutura, que diferencia como vivenciamos nosso gênero.

E isso se aplica a todas as culturas. O povo Bugi da Indonésia, em vez dos dois gêneros da nossa sociedade, tem cinco gêneros no total. As pessoas calabai e calalai têm características biológicas que foram generificadas como masculino e feminino, respectivamente, mas adotam as tarefas de trabalho reprodutivo tipicamente atribuídas a makkunrai (aproximadamente equivalente à mulher) e oroané (aproximadamente equivalente à  homem), o que lhes confere uma classe social diferente. Mais interessante, porém, são es bissu, o quinto gênero, que preenche um papel distinto dos outros quatro. Eles preenchem práticas religiosas cerimoniais especiais e dizem ser uma mistura dos outros quatro gêneros. Enquanto makkunrai e calabai assumem tarefas tipicamente femininas de trabalho reprodutivo, como cuidar do lar, e oroané e calalai assumem tarefas tipicamente masculinas, como dar apoio ao cônjuge, es bissu transcendem isso e se engajam em suas próprias tarefas.

O sistema de gênero Bugi mostra como o gênero pode ser maleável, mas também nos fornece um excelente exemplo da base material do gênero. Os cinco gêneros dos Bugi se distinguem pela forma como o trabalho reprodutivo é dividido entre o povo Bugi. Todo o resto é produzido por esta divisão.

Nossa cultura é diferente da delus, mas ambas são baseadas no mesmo tipo de divisão do trabalho reprodutivo. O que produz o gênero é como essas tarefas são divididas e tudo o mais decorre disso.

Falar de relações materiais, frequentemente, conduz a nomear as relações capitalistas como a base das coisas, mas isso não se aplica ao gênero. Enquanto gênero e capitalismo trabalham juntos e fazem parte da mesma ordem social, eles não compartilham a mesma base material. Isso não quer dizer que a base material do gênero não tenha relação com o capitalismo; o trabalho reprodutivo é necessário para produzir novos trabalhadores para a produção capitalista e a produção capitalista tende a definir qual é a natureza exata do trabalho reprodutivo masculino.

Sexo e Gênero

Já que o gênero é uma expressão dessas relações de produção e não da biologia, onde fica o sexo? Algumes pseudomarxistas afirmam que o sexo forma a base material do gênero, mas essa é uma compreensão risível do materialismo histórico que centraliza a biologia antes das relações de produção. A biologia influencia nossa realidade, mas nossos sistemas sociais encontram sua base em nossas condições materiais.

Mas sexo é algo, e se não é a base do gênero, o que é? Bem, essa formulação não está errada, está apenas invertida. O gênero é a base do sexo. Não nascemos com o sexo já dentro de nós. Temos pênis, vaginas, seios, barbas, cromossomos etc., mas essas coisas não são sexo por si só. Eles são características de nossa biologia, mas nós os agrupamos em sexos. Quando nomeamos pênis de parte masculina (O pênis) e vagina parte feminina (A vagina) estamos criando e impondo gênero ao corpo.

O que isso significa é que o sexo é a generificação de nossas características biológicas. Atribuímos gênero à nossa biologia e afirmamos que eles são inatos. Isso é usado para apresentar o sistema de classes de gênero como uma coisa natural que simplesmente existe, em vez de um sistema social que nos é imposto. Ao atribuir gênero aos nossos corpos, nós agimos como se o gênero fosse dado e não algo que criamos. Como tal, o sexo serve para reforçar e defender o gênero.

Porque o sexo não é algo inerente, mas um elemento da superestrutura de gênero, ele mudou ao longo do tempo. As primeiras pessoas só podiam generificar as características que são claramente visíveis, como os genitais. Foi somente à medida que nossa compreensão da anatomia progrediu que fomos capazes de atribuir gênero a coisas como os ovários. Mais recentemente, os cromossomos foram generificados por causa de sua relação com características que nós já generificamos. 

Mas os cromossomos nem sempre foram sexuados. Meio século atrás, ninguém olhava para alguém com seios e vagina e considerava seus corpos masculinos, mesmo que seus cromossomos fossem XY. No entanto, em 1986, a corredora espanhola Maria José Martínez-Patiño falhou em um teste de cromossomo nas Olimpíadas de 1986, o que levou as pessoas a rejeitá-la como sendo do sexo masculino. Três anos antes, ela havia passado por uma verificação de sexo dizendo que era uma mulher sexuada com base em métodos mais antigos, mas, por ser XY, ela falhou em um teste de cromossomo. Em épocas anteriores, ninguém teria questionado a feminilidade de seu corpo, mas, graças a generificação dos cromossomos, seu corpo foi considerado masculino e ela foi  humilhada e excluída.

Repressão e Violência Sexual

O gênero é o primeiro sistema de classes e, como resultado, precede o Estado, mesmo em sua forma mais primitiva e básica. Isso significa que, diferentemente do capitalismo, raça, neuronormatividade e vários outros sistemas de classes, o Estado não é o principal meio pelo qual o gênero é imposto às pessoas. Isso não quer dizer que o Estado não impõe gênero, mas é suplementar, não primário. No momento em que os Estados estavam surgindo, o gênero já havia se solidificado e se tornado bastante hábil em se impor aos outros.

Então, se não é com o Estado, como o gênero é imposto? Através da violência sexual. Quando olhamos para as estatísticas sobre o tema, o que encontramos é que as taxas de violência sexual são mais altas entre as mulheres do que entre os homens e entre as pessoas cuir do que entre os homens heterossexuais. Algumas formas de violência sexual são mais altas entre mulheres heterossexuais do que mulheres cuir e algumas formas de violência sexual são mais altas entre mulheres cuir do que mulheres heterossexuais. Pessoas trans enfrentam taxas mais altas de violência sexual do que pessoas cis do mesmo gênero que elas. Isso é entristecedor por si só e o custo real disso para a vida das pessoas afetadas não deve ser ignorado. É um estado de coisas brutal e que não deve ser diminuído de forma alguma.

Essas taxas mais altas de violência sexual são principalmente contra as classes mais baixas dentro do sistema de gênero. Homens heterossexuais e cis são colocados acima de mulheres e pessoas cuir, e homens heterossexuais são menos propensos a sofrer violência sexual do que mulheres ou pessoas cuir, enquanto as mulheres tendem a ter taxas mais semelhantes às de pessoas cuir. Isso mostra que a violência sexual é usada principalmente contra aquelus relegades às classse baixas e aquelus que divergem das normas de gênero impostas.

A violência sexual desempenha o papel entre mulheres e pessoas cuir que a violência policial desempenha entre muitos outros grupos. Além disso, quando existe violência policial, ela é frequentemente carregada de conteúdo sexual quando reprime as mulheres e pessoas cuir. Entre as pessoas cuir especificamente, a violência sexual é frequentemente praticada com propósitos explicitamente correcionais. Ou seja, a violência sexual, particularmente o estupro, é, regularmente, usada contra pessoas cuir especificamente para torná-las heterossexuais e cis. Esse é o momento quando o papel da violência sexual é mais explícito, mas seu fim é sempre esse. Mesmo quando a violência sexual não é feita para esse propósito explícito, sempre serve ao propósito de impor o sistema de gênero dominante sobre a vítima.

Quando se trata de profissionais do sexo, esse efeito é bastante pronunciado. Como es trabalhadores do sexo estão realizando trabalhos ilegais em quase todo o mundo, elus não conseguem denunciar adequadamente a violência sexual contra elus à polícia e, quando o fazem, muitas vezes são preses por se envolverem em trabalho sexual. Isso significa que a violência sexual praticada contra elus pode ser feita sem interferência do Estado de maneiras que não são possíveis entre outros grupos. Além disso, descobrimos que es trabalhadories do sexo são mais propenses a serem mulheres ou cuir do que homens heterossexuais. Isso não é por acidente, mas um espaço específico para violência sexual contra mulheres e pessoas cuir, onde ela pode ser realizada com impunidade.

O gênero moderno binário

Atualmente, não existem sociedades sem gênero. Embora existam muitas variações, todas criaram uma divisão do trabalho reprodutivo que produziu um sistema de gênero. De fato, ele existe desde que pelo menos as primeiras civilizações desenvolveram os primeiros sistemas de escrita. O gênero é o primeiro sistema de poder desenvolvido pela sociedade.

Mas os sistemas de gênero são sistemas, não um sistema, e o binário de gênero moderno tem sido imposto em quase todo o mundo. Alguns sistemas de classes de gênero diferentes ainda existem, mas, em geral, o advento da ordem social liberal, como uma ordem social global em vez de regional, produziu um único sistema de gênero do qual todos os outros sistemas são vistos como perversões. Outros sistemas de gênero hoje servem como resistência dentro de um sistema global maior.

O sistema moderno é europeu, mas é aquele que se desenvolveu durante e através do colonialismo. À medida que os europeus expandiram seu poder ao redor do globo, eles entraram em contato com vários outros sistemas de gênero e, em vez de ver a diferença, viram um problema. Eles responderam a isso impondo seu próprio sistema de gênero aos vários povos que invadiram e colonizaram. Mas ao impor um sistema de gênero a outros grupos isso necessariamente transformou o sistema imposto.

Quando um sistema como esse é imposto a outra cultura, ele perde algumas características e ganha outras, como parte do processo de imposição. Como os imperialistas não podem permitir que o antigo sistema persevere, eles precisam tornar seu próprio sistema menos flexível para que o antigo sistema não suporte, forçando as pessoas a encontrar um lugar no novo sistema. A religião também acrescentou um novo significado a isso. Embora o gênero sempre tenha tido um significado religioso, a aplicação de um sistema de gênero único foi feita a serviço de e por instituições religiosas num grau maior do que antes. Os missionários cristãos impuseram o sistema colonial europeu de gênero onde quer que fossem e o vinculavam intimamente à moral religiosa cristã. Isso contribuiu para a falta de flexibilidade, porque infundiu o gênero com um zelo religioso que antes não tinha desempenhado um papel tão grande.

E essa imposição veio às custas das pessoas a quem foi imposto. Enquanto, anteriormente, muitos povos das primeiras nações tinham terceiros gêneros que eram aceitos em suas sociedades e muitas vezes ocupavam posições de honra, as pessoas que hoje ainda se identificam com esses terceiros gêneros são oprimidas e marginalizadas. Essa imposição também serviu para destruir a cultura. As práticas culturais ligadas aos sistemas de gênero mais antigos não podiam mais ser praticadas e as práticas culturais europeias foram impostas a elas. Os casamentos europeus e cristãos se espalharam pelo mundo ao lado do sistema de gênero e transformaram as práticas matrimoniais locais ao longo do caminho.

Isso também foi transformado pela ascensão do capitalismo. O sistema de gênero pré-colonial estava fortemente ligado aos sistemas econômicos dominantes na Europa antes da ascensão do capitalismo. O casamento servia como meio de assegurar alianças entre as classes altas e como meio de estabilidade entre as classes baixas. O gênero era definido pelas intrigas da corte ou pelas necessidades do trabalho nos campos ou nas cidades. Mas, com o capitalismo, encontramos o gênero cada vez mais ligado ao trabalho assalariado e ao casamento transformado com ele. A parte masculina do trabalho reprodutivo foi cada vez mais direcionada à trabalhar para um patrão capitalista e a parte feminina para sustentar seu trabalho assalariado em casa. Esse efeito sobre a base material do gênero fez com que ele se transformasse, tanto nas classes trabalhadoras quanto nas características da superestrutura.

Este novo sistema tem algumas características que o definem. Nem todas elas se desenvolveram de uma só vez, mas foram impostas ao mundo todo. Elas são as seguintes:

1. Exatamente dois gêneros reconhecidos pela estrutura de poder dominante: Homem e mulher. Outros gêneros são vistos como perversão e são evitados e marginalizados.

2. Esses dois gêneros são vistos como idênticos à sua biologia e fixos desde o nascimento. Enquanto todo sistema de gênero relaciona gênero com a biologia, o sistema moderno iguala os dois. Ser homem neste sistema não está relacionado com ter um pênis, ser homem é ter um pênis. E esse gênero é imutável. Você não pode mudá-lo. Se você nasceu como um homem, você é visto como um homem, não importa o quê. Não há opções ou alternativas.

3. O casamento é um contrato econômico entre um homem e uma mulher. Homens e mulheres devem assinar um acordo para serem fiéis e permanecerem juntos e a violação disso é vista como uma quebra de contrato e, portanto, um mal.

4. O casamento é uma escolha pessoal feita por amor e não uma escolha social feita por necessidade. Longe vão os casamentos por alianças ou casamentos arranjados, na maioria das vezes. O casamento é apenas uma escolha para os dois que estão se casando.

5. No casamento, espera-se que o homem ganhe dinheiro para sustentar a mulher e que a mulher limpe a casa, cuide dos filhos, cozinhe e faça compras.

Nem todas essas características são exclusivas do sistema moderno e algumas delas são melhorias em sistemas antigos, mas elas são impostas a todos, o que destrói a cultura e a escolha individual.

Patriarcado

Como já foi referido anteriormente, o gênero é um sistema de classes, um definido pela dominação da masculinidade sobre a sociedade. É por isso que outro nome para o sistema de classes de gênero é patriarcado. O gênero como sistema social é o patriarcado e o patriarcado é o sistema de classes sociais de gênero. Dentro desse sistema de classes, encontramos três classes distintas, duas aceitas e uma subversiva.

Primeiro, temos homens. Ao dividir o trabalho reprodutivo, os homens são os encarregados de controlar o trabalho reprodutivo e os frutos desse trabalho e de se envolver em trabalho econômico para manter aquelus que realizam, principalmente, o trabalho reprodutivo. A exceção a isso são as relações sexuais nas quais os homens se envolvem diretamente com elus, mas esperam que sejam dominantes e estejam no controle. Isso serve como a base material para a masculinidade. A superestrutura é mais ampla. Descobrimos que os homens são designados para agir com força crescente e com competitividade constante. Dado seu controle do trabalho reprodutivo e dominação sobre as mulheres, esta é a classe dominante dentro do patriarcado.

As mulheres, por outro lado, são as dominadas. Elas são encarregadas de realizar a maioria das ações reprodutivas, como tarefas domésticas, preparação de alimentos para a família, criação dos filhos e outras tarefas semelhantes. Elas também devem se envolver em relações sexuais, mas têm as relações controladas pelo homem. Elas têm seu trabalho controlado e confinado por homens e têm os frutos desse trabalho comandado por homens. Isso se reflete na superestrutura ao redor delas. Espera-se que sejam subservientes e passivas, que aceitem o que vem para elas etc.

Essa dinâmica de classe do homem sobre a mulher é a principal dinâmica do patriarcado, mas ele não compreende apenas duas classes. Em vez disso, descobrimos que algumas pessoas se relacionam com o trabalho reprodutivo de maneira diferente da forma como ele é imposto à população. Este é o caso, especialmente, no que diz respeito ao sexo, quando alguém se envolve em relações sexuais que não se enquadram na dinâmica imposta pelo patriarcado. Isso inclui pessoas que são sexualmente atraídas por pessoas do mesmo gênero (gays/lésbicas), de vários gêneros (bissexuais/pansexuais) ou a nenhum gênero (assexuais). Além disso, as pessoas cujo gênero é diferente daquele que o patriarcado atribui a elas não podem ser classificadas tão claramente quanto as pessoas que aceitam o gênero atribuído. Embora possam ser pessoalmente homens ou mulheres, elus não são tratados pela sociedade da mesma maneira, então constituem uma classe social distinta. Característico disso é a desconexão do sexo e do romance em relação à reprodução da próxima geração. Embora ainda seja possível para todos esses grupos reproduzir a próxima geração, não é mais uma parte necessária do sexo e do romance.

Como essa terceira classe é definida por sua diferença das duas primeiras classes, ela é denominada cuir. cuir são todes aquelus que se relacionam de forma diferente com a divisão do trabalho reprodutivo que lhes é atribuído pelo patriarcado. Por causa das diferentes relações, as pessoas cuir são inerentemente subversivas ao sistema de classes como um todo e constituem a classe revolucionária sob o patriarcado.

Essa cuiridade (queerness) é uma característica particular do sistema de gênero moderno. Outros sistemas de gênero não possuem o mesmo sistema de classes e, portanto, possuem diferentes categorias de pessoas. De fato, em lugares onde os sistemas de gênero mais antigos foram mantidos, é impreciso falar sobre cuiridade. Muitas pessoas que se identificam com gêneros de sistemas de gênero mais antigos são cuir em virtude do sistema de gênero moderno que lhes é imposto, mas muitas delas não são por causa das complexidades de estar em comunidades com esses gêneros.

Dizendo “sim” para o gênero

Classe, classe, classe. Somos dominades e controlades. Ordenades e dividides. Mas onde entramos em tudo isso? As pessoas veem classe como meramente imposta, mas isso não dá conta das maneiras como realmente interagimos com ela. A classe não é simplesmente imposta a nós. Somos participantes atives dentro dela, nós a realizamos.

Aqui podemos ouvir a análise de Judith Butler: Atos performativos, ou seja, todas as pequenas ações que você toma que constroem uma identidade, são fundamentais para entender como o gênero funciona em um nível individual. Encontramos isso nas coisas mais básicas que fazemos e dizemos: “Sou mulher”, “Não, não posso brincar com isso. É um brinquedo de menino”, “Meninos serão meninos”. Esses atos produzem uma identidade, tanto dentro de nós mesmos quanto dentro dos outros. Você se identifica como mulher ou homem e identifica outros como homens ou mulheres ao se envolver nesses atos.

Isso dificilmente é feito livremente. A violência do sistema é inerente e sistêmica. Realizamos esses atos cercados pela violência de gênero. Mas ainda os executamos. O gênero não se contenta em se impor sobre nós. Em vez disso, nos força a dizer “sim” a ele.

Isso serve como um método de controle e reprodução. O gênero não é inerente, mas se espalha ao nos atribuir a uma classe e nos forçar a dizer sim a essa classe. “Sim, eu sou um homem. É quem eu sou e quem eu sempre fui. Não posso escapar disso ou negá-lo. Eu sou um homem.” Isso não passa de uma mentira que somos forçados a repetir. Mas, repetindo-o o suficiente, passamos a acreditar. O gênero se torna natural, inevitável, eterno. Deixa de ser uma identidade imposta e se torna uma parte eterna de quem somos. Ao objetar meu gênero, você está objetanto o que é inerentemente eu.

Aqui está um dos maiores mecanismos de defesa do gênero: nós mesmos. Nós insistimos nele e rejeitamos aqueles que se afastam dele. Torna-se um ato profano para aqueles que se desviam do caminho. De fato, parece-nos que não há outra opção. Dizemos sim, porque é tudo o que podemos dizer. Torna-se inconcebível que possa ser de outra maneira.

Comunismo

O movimento comunista

Mas agora devemos falar de comunismo para entender como o gênero se relaciona com o resto da sociedade. Para isso, devemos saber o que é o comunismo.

“Chamamos de comunismo o movimento real que abole o estado atual das coisas. As condições desse movimento resultam das premissas agora existentes”.

Karl Marx, A Ideologia Alemã

O comunismo assim concebido é um movimento contra a ordem social atual, que busca a libertação des oprimides. Isso não deve ser visto como um ideal pelo qual lutamos, mas como um movimento ativo que existe nos dias atuais. Nós não encontramos o comunismo nos planos para o futuro, mas sim em um trabalhador sabotando seu local de trabalho, na esposa que foge de seu marido abusivo com seus filhos, Naxalitas se engajando em guerrilhas contra o governo indiano, manifestantes rechaçando a polícia para saquear e queimar suas cidades etc.

Dentro do movimento comunista nós encontramos todo o trabalho importante que está sendo feito nos dias atuais. O movimento comunista não é sobre um ideal distante, mas o comunismo imediato que ele produz. É uma revolta ativa contra o estado atual das coisas que está imediatamente comunizando a sociedade, não algumas teorias em uma universidade considerando o mundo de sua poltrona. Ele simplesmente afirma que o estado atual das coisas deve desaparecer e, em seguida, toma medidas para fazer-lo.

Mas esse estado de coisas deve e não pode ser concebido como apenas um sistema de classe ou um elemento da sociedade em que vivemos. O estado atual de coisas não é capitalismo ou gênero ou raça ou o Estado. Pelo contrário, é a totalidade da sociedade liberal e todos os sistemas dentro dela. Como tal, o movimento comunista encontra-se em forte contraste com o liberalismo e nos dá um contraponto às análises falidas e políticas públicas do liberalismo.

As análises liberais reduzem a opressão a um número de sistemas de opressão que, apesar de interseccionados, estão separados. Isso torna as lutas contra eles separadas, mas aliadas. Há um movimento antirracista, um movimento feminista, um movimento de justiça econômica, etc, mas esses são apenas aliados, não o mesmo movimento. Isso forma a concepção liberal de interseccionalidade. Esta versão liberal da interseccionalidade apresenta sistemas que podem ser dominante (entre es oprimides) ou passivos (entre es privilegiades), assim um homem gay branco só experimenta verdadeiramente a opressão anti-cuir e todos os outros sistemas são silenciosos para ele.

Na verdade, os sistemas opressivos são mais do que isso. Não há ninguém intocado pela dominação dos sistemas de classes dentro da sociedade liberal. Todos, do capitalista mais poderoso ao trabalhador mais humilde, do patriarca dominador à jovem trans incerta, do administrador controlador de um asilo ao esquizofrênico forçado à tomar medicações, do gentrificador branco à família negra expulsa do apartamento da família, todos experimentam o controle desses sistemas. Ninguém fica intocado. Em vez de serem sistemas de controle passivo, são um todo totalitário ativo, uma totalidade.

Essa totalidade abrange todas as partes da sociedade, domina todos os membros da sociedade e aliena todos e tudo o que está contido nela. É inevitável e dominador. A totalidade é para onde a análise comunista, em vez da análise liberal, deve nos levar.

Encontramos problemas semelhantes na concepção liberal de política de identidade, que vê a opressão como feita por identidades específicas sobre as classes. Isso torna a identidade como a base e não como a superestrutura. O que isso significa é que a concepção liberal da libertação é respeitar sua identidade e tratá-la de forma justa. Mas, mesmo que façamos isso, nossas identidades ainda nos oprimiriam, porque não abordam as condições subjacentes que as causam. Para os liberais, despojar-se da dominação do sistema específico de opressão que vivenciamos nos liberta dele, tornando-nos iguais aos privilegiados. Mas isso deixa a totalidade intocada.

A política liberal é, em última análise, reformista, não revolução ou abolição. A política comunista nos fornece um caminho a seguir através do abolicionismo, não do reformismo. O gênero não pode ser reformado para nos libertar, deve ser abolido.

Totalidade

Ao discutir bases materiais e superestruturais, é importante reconhecer as análises existentes desses sistemas. A análise mais tradicional desses sistemas vê a base puramente em termos de relações capitalistas de produção. A base, nesta visão, é puramente a propriedade capitalista dos meios de produção. Essa relação básica então passa a impor outros sistemas de opressão dentro da ordem social liberal mais ampla. O gênero não é básico, mas um aspecto da superestrutura produzida pelas relações capitalistas de produção. Mas essa visão ignora os aspectos basais de outros sistemas de opressão. Gênero não é apenas uma identidade. É fundamentalmente uma relação de produção que produz um sistema de classes. Nem são gênero e capitalismo os únicos sistemas básicos. Encontramos aspectos basais na neuronormatividade, na supremacia branca, no Estado, etc.

No entanto, seria um erro interpretar que esses outros sistemas, sendo basais, implica que são separados. Se fizermos isso, nos depararemos com os mesmos problemas que as análises liberais da interseccionalidade criam. Quando a produção capitalista está em marcha, ela depende do trabalho reprodutivo imposto às mulheres em casa. O valor produzido no local de trabalho seria impossível sem a reprodução de novas gerações de trabalhadores e sem apoio aos trabalhadores através do trabalho reprodutivo de suas parceiras e que eles mesmos realizam. Desta forma, o trabalho reprodutivo é trabalho não pago feito para a classe capitalista tanto quanto é um sistema de classe independente para o capitalismo.

Também encontramos semelhanças entre a imposição dos sistemas cisheteronormativos e a imposição da deficiência (capacitismo). Ambas as pessoas com deficiência, tanto na forma de deficiência física quanto de neurodivergência, são socialmente definidas em termos da capacidade de participar em tralhos normais. Quando alguém é incapaz de trabalhar para um chefe da maneira que outres trabalhadories são capazes, isso se torna uma deficiência. E a cuiridade é um reflexo disso dentro das relações de produção. A cuiridade é uma falta de engajamento com o trabalho forçado de gênero, afinal. Não é uma causalidade que a cuiridade seja tão frequentemente concebida em termos de doença mental. Cisheteronormatividade e capacitismo são materialmente reflexos um do outro em diferentes partes da base.

E essa discussão não pode ignorar as relações de produção inerentes ao Estado. Em última análise, o Estado é o trabalho. Ele é tão engajado no trabalho para acabar com uma greve quanto para transformar um pano em um casaco. Mas este trabalho não é o mesmo. Policiais não são trabalhadores. Ao contrário de um trabalhador, um policial quebrando uma greve não está produzindo valor para a classe capitalista. Em vez disso, os policiais estão impondo as próprias estruturas de produção de trabalho. Esta é, em si, uma relação de produção muito diferente daquela dos trabalhadores. Elas não são independentes, mas o trabalho do Estado é o trabalho que serve para reforçar as relações de produção que produzem sistemas de classes. Ao contrário do que muitas teorias do Estado diriam, isso não é superestrutural. Isso é basal.

É claro que outros sistemas de opressão também têm elementos basais que se conectam de maneiras semelhantes. Uma visão geral completa de todas as maneiras pelas quais todos os sistemas de opressão interagem está fora do escopo deste escrito, mas não pode ser esquecida.

Essas relações de produção não são separadas. Eles podem estar funcionando de maneiras diferentes, mas formam um sistema basal singular. A opressão não é uma variedade de sistemas em interação, mas uma base totalizante singular, uma totalidade. Essa base totalizante cria o espaço para uma concepção comunista da interseccionalidade, que abandona os erros da análise liberal sem abandonar a conexão inerente entre diferentes formas de opressão.

A natureza totalizante da base significa que você não pode mudar aspectos da base sem abordar a base como um todo. De fato, descobrimos que, à medida que passamos de ordens sociais anteriores para a ordem social liberal atual, o gênero se transformou para corresponder ao novo tipo de sociedade que foi produzido. Isso porque o trabalho reprodutivo está entrelaçado com todas as outras relações materiais. Mudar as relações de produção para a atividade econômica muda, necessariamente, a divisão do trabalho reprodutivo. A base funciona organicamente como um sistema singular. Há uma base, um sistema. Isto é o que significa para uma sociedade ser uma totalidade.

Comunismo de gênero

Em sua base, o aceleracionismo de gênero está usando o próprio processo de decadência do gênero para destruir o sistema de classes de gênero. É o abolicionismo de classe aplicado ao gênero, a reforma revolucionária da sociedade para acabar com o próprio gênero. Isso não pode ser feito separado da abolição de toda a sociedade atual. A totalidade exige que a vejamos como o mesmo sistema que os outros sistemas de opressão.

Por isso, não podemos nos engajar na abolição de gênero sem abolir todas as formas de classe. Para acabar com o gênero, então é preciso acabar com o capitalismo, a raça, a neuronormatividade e o Estado. Essas coisas são um sistema. Elas formam uma única ordem social liberal que não pode continuar. Nosso objetivo não é apenas o fim de uma parte, mas o fim da própria sociedade de classes.

Este é o processo do movimento comunista. Como tal, o aceleracionismo de gênero é comunismo de gênero, e como a aceleração de gênero é o caminho para abolir o gênero, o comunismo de gênero é aceleracionismo de gênero.

Muitas pessoas temem que, através da abolição do gênero, nossas próprias identidades de gênero sejam tiradas de nós. Que, ao abolir o gênero, vamos forçar você a parar de se identificar com seu gênero, por mais que você goste dessa identidade.

Em alguns casos como esse é elucidativo fazer uma analogia. Para isso, vamos falar sobre padeires. Quando alguém se envolve com o sistema capitalista assando pão, elu tende a formar uma identidade em torno disso. Ou seja, ter uma carreira na qual você assa pão cria a identidade de padeire. Da mesma forma, quando você se envolve com o trabalho reprodutivo de maneiras específicas, você cria identidades de gênero específicas, tanto nas maneiras como você se conforma com o gênero que lhe foi dado, quanto nas maneiras pelas quais você rejeita o gênero que lhe foi dado. Em ambos os casos, um elemento da base está criando dentro de você uma identidade. Ou seja, sua identidade, decorrente de sua posição social, é superestrutural.

Então, vamos forçar as pessoas a parar de se identificar com ser ume padeire ou ser uma mulher? A resposta curta é: “Não, estamos preocupados em mudar a base e permitir que a superestrutura aterrisse onde puder”, mas um exame mais extenso está em curso.

 O que acontece com minha identidade como padeire uma vez que o sistema capitalista de carreiras, que produziu essa identidade, é abolido? Essa é uma pergunta muito mais interessante, de qualquer maneira. Sem a imposição do trabalho caracterizado pelo capitalismo, aquelu que assa pão não é mais obrigado a permanecer nessa carreira. Esse abandono das causas basais da identidade deixa a identidade não fixada. A identidade pode persistir, por exemplo, se você realmente gosta de assar pão, pode continuar se identificando como padeire, mas não há lógica subjacente à identidade, que origina de ou reforça estruturas de poder, como identificar-se como padeire hoje . Mas, diferentemente de hoje, você pode se envolver com a panificação sem que ela se torne algo fixo a você, sem se tornar um padeiro.

Com o tempo, a identidade de padeire provavelmente desaparecerá, embora existam muitos fatores sociais que poderiam permitir que ela persistisse, mas perderia seu significado social e político. Não há necessidade de forçar o abandono da identidade de padeire para acabar com o sistema de carreira que a produziu.

Dessa forma, não há necessidade ou desejo de forçar as pessoas a deixarem de se identificar com seu gênero. O fim do gênero como sistema de poder é nosso objetivo, e o fim das identidades de gênero é um resultado eventual, se é que vai acontecer, não é algo importante ou pelo qual devemos nos esforçar.

Sem futuro

Ligada a todas as partes do presente estado de coisas está a necessidade de crescimento contínuo. Os Estados e a supremacia branca empurram sempre para fora, e muitas vezes para dentro, através da expansão imperialista e colonial. O capitalismo busca a expansão infinita do capital. E o gênero? O propósito final que busca é a expansão contínua de pessoas. O trabalho reprodutivo ao redor de tudo serve para o crescimento populacional infinito.

Esse crescimento insustentável é característico do estado atual das coisas e conecta todos os sistemas de opressão dentro dele. Todo tipo de comunismo deve, em última análise, desafiar essa necessidade de crescer e expandir. O socialismo destrói a necessidade de crescimento econômico, a anarquia a necessidade de crescimento do Estado, a cuiridade, em última análise, desacopla amor e reprodução. Já não estamos todos constrangidos a papéis que nos obrigam a reproduzir continuamente e, em vez disso, podemos viver livres para escolher se queremos ou não.

Ao destruir a necessidade de crescimento e acabar com a reprodução sem fim, a cuiridade e o comunismo em geral abolem o futuro como o conhecemos. Aqui encontramos o fim mais radical da cuiridade. Através da cuiridade nos libertamos da necessidade de crescer e, por sua vez, dizemos “não” ao futuro. E, com este “não” radical, podemos imaginar outros mundos.

Crepúsculo do Gênero

Dizendo “não” ao gênero

“Não.” Nem todo mundo diz sim ao gênero. “Eu rejeito.” Estas pessoas escolheram um caminho diferente, uma vida diferente. “Eu não sou.” Isso forma uma identidade diferente.

Quando você é designado para a classe masculina, mas afirma em voz alta o contrário, você disse “não” ao gênero. O gênero lhe deu o que você é, mas você se afastou com desgosto. Você não é um homem, você é outra coisa. Algumas encontram conforto na feminilidade, outres em algo totalmente externo, mas qualquer que seja o caminho que você tome, você disse não ao gênero.

Da mesma forma, quando você é designado para a classe feminina, mas, novamente, afirma em voz alta o contrário, você disse “não” ao gênero. Sua aceitação da masculinidade ou algo além constitui uma rejeição, um afastamento do gênero.

Quando você se afasta de sua atribuição de gêneroe, você é transgênero.

Rachaduras no sistema

O sistema de gênero moderno é frágil. Ele soletrou sua própria destruição pela forma como se formou. Quando o sistema de gênero moderno se espalhou, ele abriu mão da flexibilidade para destruir sistemas concorrentes e se impôs a todas as culturas. Mas isso o deixa incapaz de dar conta de muitas pessoas. Muites têm grande dificuldade com o gênero que lhes é atribuído e, por não terem alternativas e seu gênero ser visto como imutável, acabam sendo subversives ao próprio sistema.

Pessoas cujo gênero não combina com o gênero de suas características biológicas não são exatamente novas. Muitos sistemas anteriores tinham classes explícitas para pessoas assim, como o sistema de gênero Bugi. São sistemas multigêneros e têm espaço para aquelus que não estão dispostos a aceitar o gênero atribuído à sua biologia.

Mas as pessoas trans não se relacionam com o sistema de gênero dessa maneira. Enquanto as pessoas com diferentes gêneros e sexos em sistemas multigêneros estão aceitando o gênero dentro de seu sistema de classes, o gênero trans o está rejeitando. O sistema de gênero moderno não tem lugar para pessoas trans, então somos subversives a ele. Como tal, as pessoas trans não são trans-históricas, mas uma característica historicamente contingente do sistema de gênero pós-colonial que foi imposto ao mundo. Nem as pessoas trans são necessariamente uma característica em todo o mundo. Dentro dos sistemas de gênero que permitem variações de gênero, muitas vezes é impreciso chamar as pessoas que atuam no contexto de seu sistema de gênero de trans por causa de como o sistema em que vivem funciona. Esses sistemas de gênero eram menos repressivos por causa de sua flexibilidade, mas são mais robustos. Por causa de sua robustez, combatê-los exigiria diferentes estratégias próprias desse sistema em particular.

Incapazes ou relutantes em aceitar nosso lugar dentro do sistema de classes de gênero, as pessoas trans são dissidentes dele, e o gênero como existe hoje não pode dar comta de nós. Outros sistemas de gênero têm sido mais flexíveis, mais capazes de dar conta de todes dentro deles. Os sistemas multigênero oferecem opções para pessoas incapazes de trabalhar com o gênero associado à sua biologia. Isso significa que as pessoas podem se encaixar no sistema mais facilmente e dá força ao sistema. Nosso sistema não faz isso, e isso é uma rachadura dentro do sistema. Ele nos fornece uma razão para dizer “não”.

Revolução

Conforme discutido anteriormente, a performatividade exige que você aceite ativamente a classe que lhe foi designada pelo gênero. Esta é uma força do gênero, porque força você a ser cúmplice de sua própria opressão, mas também é uma fraqueza. Como sua classe é baseada, em parte, na própria aceitação ativa dela, isso cria o caminho para a rejeição ativa. De fato, se um número suficiente de pessoas rejeitar o gênero atribuído a elas, o gênero não pode funcionar.

E as pessoas trans são aquelas que rejeitam seu gênero, dizendo “não” ao gênero. Este é um fenômeno moderno que é subversivo em relação ao gênero e nos apresenta um caminho a seguir. Aqui encontramos o núcleo do potencial revolucionário das pessoas cuir. Se todes dizem “não” ao gênero, todes deixam de aceitá-lo, então o gênero se perde. Encontramos estratégias semelhantes entre a resistência a outros sistemas de classes. As pessoas lutam contra o capitalismo recusando-se a trabalhar, uma greve geral contra ele. Da mesma forma, um “não” coletivo ao gênero rejeita o sistema de classes e nos permite colocá-lo de joelhos.

Isso não seria outra coisa que uma revolução. É uma reestruturação da sociedade que permite que as pessoas cuir assumam suas rédeas e a refaçam à nossa imagem. Este ato de abolição de classe por pessoas cuir, incluindo uma auto-abolição de nossa própria classe, é um ataque ousado ao gênero. Tomar conta da sociedade para transformá-la e eliminar dela a classe. Isso significa que tal revolução seria a ditadura do cuir.


Ditadura do Cuir

Poder Cuir

Frequentemente,  as pessoas não buscam a libertação das pessoas cuir, apenas nossa assimilação. A assimilação gay é o principal movimento de direitos LGBT, mas não vai longe o suficiente. Se tudo o que fazemos é assimilar, ainda estamos sujeitos ao poder e dominação do sistema de classes de gênero. Não somos livres, apenas incorporades no sistema existente de opressão e dominação.

E isso é perigoso também. A assimilação dá ao gênero a chance de escapar de seu fim final. Se o gênero puder assimilar a homossexualidade, o lesbianismo, a bissexualidade, as pessoas transgênero e todos os outros modos de cuiidade, ele se tornará flexível e acomodará as forças que o conduzem ao seu fim. Se assimilarmos, o gênero pode nunca acabar.

Mas a libertação não pode ser encontrada no contexto dos sistemas de poder existentes. Se simplesmente nos voltarmos para o Estado, para os negócios capitalistas, para o casamento patriarcal, e pedirmos que sejamos incluídes, nunca seremos livres. Fazer isso apenas perpetua o poder estatal, o poder capitalista e o poder masculino. Mas nós devemos criar poder cuir.

Nem pode essa libertação vir através da imposição de identidades às pessoas. Não há nenhum benefício para nossa libertação e abolição do sistema de gênero impedir que alguém cuja identidade esteja enraizada em um sistema de gênero diferente ou que encontre alegria em sua identidade cuir se identifique dessa maneira. Como foi discutido anteriormente, é com a base que estamos preocupades, não com as identidades na superestrutura. O poder cuir é separado das instituições existentes. Declaramos nossa diferença, sem vergonha e orgulhoses. Não participamos de seus projetos. Não participamos de seus sistemas. Nós não aumentamos seu poder. Em seu lugar, devemos fazer o nosso!

 Isso significa criar organizações e instituições cuir. Contrapoderes ao sistema de classes patriarcal dominante. Isso nos permite fornecer às pessoas o que elas precisam para a transição, incluindo fornecer medicamentos HRT (Terapia de Reposição Hormonal), apoiar vítimas de agressão sexual, empoderar mulheres fora do sistema e, finalmente, fornecer espaços para serem diferentes, para escapar da dominação de gênero.

É importante que essas instituições não reproduzam a violência sexual que impõe o gênero. Isso é difícil, mas necessário. Não podemos permitir que abusadores sexuais ou agressoress sexuais se infiltrem em nossos espaços. O poder cuir significa segurança contra agressões e abusos sexuais. Essas coisas fortalecem e reforçam o patriarcado, então não temos lugar para elas.

Terror Rosa

O comportamento patriarcal é um ato de violência. A violência é o que ele exerce. Não podemos nos opor a isso através da passividade e da não-violência. O poder cuir precisa de violência para destruir o gênero. Uma campanha de terror contra aquelus que buscam impor o gênero e prevenir a morte do gênero, um terror rosa, é uma necessidade na revolução contra o gênero. Não encontramos aliados no estado ou na classe capitalista. Os policiais e as corporações são nossos inimigos, não nosses aliades. De fato, Pride (orgulho) encontra suas raízes em insurreições contra a polícia. Só podemos confiar nós mesmes para nossa própria libertação, não nas instituições de violência que já existem. Devemos destruir o gênero em nossos próprios termos, não nos deles. Isso significa que as organizações e instituições cuir que construímos para o poder cuir devem ser organizações militantes e armadas. Não basta fornecer um espaço fora do patriarcado, devemos nos armar para defender esses espaços e atacar as estruturas abrangentes de poder que buscam impor o gênero sobre nós. Isso significa que nossas organizações cuir devem ser, ou incluir, milícias cuir para lutar contra as estruturas de poder. Essas milícias cuir também nos fornecem uma estrutura para lutar contra a agressão sexual. As milícias cuir podem fornecer proteção e justiça onde o estado não o fará para mulheres e pessoas cuir. Isto é especialmente verdadeiro para aquelus mais vulneráveis. Es trabalhadoriess do sexo muitas vezes não podem recorrer à polícia para denunciar a agressão sexual contra elus. O trabalho delus é ilegal, então elus correm o risco de serem punidos pelo sexo que fizeram, mesmo que tenha sido estupro. De fato, muitas vezes a agressão sexual que sofrem vem da própria polícia. As milícias cuir fornecem a elus uma maneira de lidar com a agressão sexual. 

Isso também pode fornecer às pessoas cuir uma estrutura para lutar contra a malgenrização (misgendering) e o uso do nome morto (deadnaming). Quando as pessoas continuamente e conscientemente usam os pronomes e nomes errados para es outres, é uma forma de violência contra elus. Fazer isso frequentemente leva à automutilação e às vezes ao suicídio por pessoas cuir. Portanto, precisamos defender e apoiar outras pessoas cuir. Tal violência contra pessoas cuir não pode ficar sem resposta e não pode ser aceitável. Mas devemos manter as respostas proporcionais em mente. Malgenrização (misgendering) não justifica assassinato.

Bash Back

O gênero não vai cair sem luta; uma contrarrevolução irá aparecer para nos derrubar. Contra o movimento aceleracionista de gênero, desenvolver-se-ão movimentos para defender, ou mesmo regredir, o gênero. Historicamente, os movimentos revolucionários, frequentemente, são seguidos por movimentos fascistas que rejeitam o chamado para o novo mundo e buscam um rejuvenescimento do presente através do renascimento. Esses movimentos fascistas abraçam a hipermasculinidade e buscam exacerbar a dominação da masculinidade sobre a sociedade. 

Aqui encontramos nosso inimigo mais claro, e os novos movimentos fascistas do presente reagirão ao nosso aceleracionismo com reação e contrarrevolução. Aqui as milícias cuir serão necessárias para defender a revolução contra o avanço da reação. O conflito inevitavelmente se tornará sangrento e lutaremos nas ruas conforme necessário para encerrar a contrarrevolução e garantir nossa vitória. 

Esses novos movimentos não serão nossos únicos oponentes. As forças do liberalismo que defendem o estado atual das coisas nos verão como uma ameaça tanto quanto os fascistas que avançam, e sua oposição será igualmente brutal. Os policiais se oporão a nós em força, e precisaremos de força para defender nossos ganhos, proteger a revolução e avançar até a vitória.

Vitória a Todo Custo

Não podemos parar no meio do caminho ou permitir nossa derrota. Gênero significa a dominação de todes e a violência sustentada contra mulheres e pessoas cuir. Não podemos permitir nossa derrota e nossos olhos devem estar na vitória. Isso não é apenas uma escolha, é uma necessidade.

Por Vikky Storm e Eme Flores.

Tradução: Agnes de Oliveira.

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