Entramos no mês de dezembro, mas a luta continua, o dia da consciência negra não se resume a 20 de novembro.
O dia da consciência negra marca uma tradição importante vinda da África: a ancestralidade. No dia 20 de novembro de 1695, Zumbi dos Palmares foi assassinado … O quilombo era, e ainda é, um símbolo de resistência à opressão, naquela época à escravidão, hoje em dia ao racismo.
Nos dias atuais, nos deparamos com uma alta taxa de analfabetismo entre a população negra, residindo em favelas e periferias com uma alta violência policial, entre outros infortúnios que a sociedade deixou de herança para nós com a escravização de nossos ancestrais. Além disso, nos deparamos ainda com a demonização de nossa cultura e de nossas crenças, a inferiorização da nossa capacidade intelectual, renegando a nossa capacidade no âmbito intelectual e científico.
O epistemicídio, termo criado pelo sociólogo Boa Ventura de Souza Santos, é um conceito que vai contrastar com o termo grego epistemologia, que é mais traduzido como teoria do conhecimento. Portanto, esse epistemicídio vai ser definido como a “morte” do conhecimento de povos não europeus. E é justamente isso que acontece com os saberes e as cosmovisões, ou melhor dizendo, com as ciências africanas. Temos o uso de ervas medicinais, um conhecimento ancestral passado pela oralidade de geração em geração, por exemplo.
Além disso, dentro do nosso sagrado temos o contato com nossa ancestralidade, temos o uso do nosso conhecimento das ervas, temos o contato histórico-cultural com o continente africano, e também resistimos ao racismo e às diversas violências infringidas ao povo negro. Nos “aquilombamos” em nossos terreiros, onde aprendemos, acima de tudo, a viver dentro de uma comunidade em que somos tudo o que somos por conta da existência dessa grande família. O Ubuntu, palavra de origem bantu, que quer dizer: “eu sou porque nós somos” que expressa esse senso de comunidade, que é tradicional das culturas africanas, que foi construída a partir dos quilombos e hoje também é construída nos nossos terreiros.
Portanto essa data consagra a lembrança da luta negra pela liberdade de existir, de ser livre e de expressar suas culturas e tradições. Que a nossa cultura seja reconhecida e que o nosso sagrado seja respeitado!
Agradeço ao Pai Nando, que tem me acompanhado meu desenvolvimento espiritual, que tem me ensinado o que é e como estar numa comunidade de origem afro, que tem me proporcionado o contato com minha ancestralidade e com meus orixás e o meu desenvolvimento, ainda em curso, com meus ancestrais e tem me propiciado o contato com essa comunidade.
Saravá aos pretos velhos e saravá a Zumbi dos Palmares
Nesse contexto, é importantíssimo a discussão, aliada à luta, sobre o protagonismo negro, tanto no âmbito cultural, científico quanto no âmbito mais diretamente político, enfim, a luta em suas várias facetas. No sentido de contribuir para o debate desta luta, apresento a seguinte transcrição do programa de rádio Repórter Unicamp, da Rádio Unicamp, que eu mesmo realizei.
No Brasil, 20 de novembro é o Dia da Consciência Negra, data criada para fortalecer a luta antirracista no país. Pesquisas estimam que mais de 4 milhões de africanos escravizados foram trazidos para o Brasil entre o final do século 19 e início do século 20. Nosso país também foi o ultimo do mundo a abolir a escravidão mercantil, o que ajuda a entender porque o racismo por aqui tam raízes tão profundas. Como afirma o professor Eneias Forlin, do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, a escravidão no Brasil foi um processo brutal, cujos efeitos repercutem até hoje.
Eneias Forlin: “A gente acha que foi nos Estados Unidos, que foi na África do Sul que as coisas foram mais terríveis, mas aqui ela foi muito brutal e eu gosto sempre de lembrar do exemplo do Darwin, quando o Darwin veio ao Brasil, ele foi à Salvador e ao Rio de Janeiro, ele ficou horrorizado com o tratamento que se dava aos escravos e ele não conseguia dormir em Salvador por causa dos gritos de horror no Pelourinho e no Rio de Janeiro, ele viu uma menina ter o seu dedinho quebrado porque ela trouxe um copo de água sujo. Então, ele ficou tão chocado que ele nunca mais quis voltar em um país escravocrata. Então você vê como foi terrível isso, mas parece que no Brasil, tudo isso é um pouco que escondido, varrido para debaixo do tapete. A sociologia hoje já trata sobre isso, a antropologia, os meios acadêmicos, mas a sociedade como um todo, fora do âmbito acadêmico. As artes, o teatro, a literatura, a poesia quase não se fala da nossa escravidão, os americanos são cheios de filmes sobre isso, livros sobre isso e nós parece que como se não existisse. Eu acho que a resistência que muitos brasileiros têm à política de cotas ou à política de integração às minorias, se bem que preto no Brasil não é minoria, é a maioria, eu acho que essa resistência vem de não enfrentar a história escravagista do Brasil. É como se nós quissesemos diminuí-la, humanizá-la, se é que é possível de algum modo humanizar algum tipo de escravidão. Mas o fato é que o próprio rancor com que se combate a política de cotas no Brasil, é no trabalho, nas universidades demonstram uma ignorância, um desconhecimento da situação historicamente desprivilegiada que as pessoas negras tiveram.”
A intolerância religiosa e a violência policial que nas favelas e periferias do país têm como alvo prioritário o corpo negro são apenas alguns exemplos do racismo que persiste em nosso país. Segundo dados da Secretaria da Justiça e Cidadania de São Paulo, o número de denúncias de racismo envolvendo religiões de matriz africana no estado em 2022 aumentou 547 por cento em relação a 2019. Outra pesquisa, realizada pela Fundação Getúlio Vargas, aponta que apenas metade das mulheres negras com idade para trabalhar estão inseridas no mercado de trabalho, frente a 70 por cento dos homens brancos na mesma faixa etária.
Dados que permitem compreender, por outro lado, o crescimento de movimentos de resistência que lutam pela inclusão e pelo protagonismo da população negra nas últimas décadas, como é o caso do feminismo negro. Quem explica o contexto que levou à organização da luta das mulheres pretas é a professora Jaqueline Santos, do Departamento de Antropologia do IFCH.
Jaqueline Santos: “Feminismo negro é uma construção histórica de mulheres negras que fazem uma disputa sobre o campo de construção dos direitos para as mulheres, dizendo que mulher não é uma categoria universal, não existe só um tipo de mulheres, existem vários tipos de mulheres, e elas fazem essa disputa para implacar né, essa visão das diferenças entre os gêneros e para pensar as especificidades das diferentes mulheres. Demarcavam que existiam desigualdades entre raça e classe que diferenciava a realidade das mulheres, né, que ser mulher branca e ser mulher negra é diferente, do mesmo jeito que elas pautavam no movimento negro que ser mulher negra e ser homem negro era diferente, né. Então no no movimento feminista ao pautarem essa agendas, elas foram vistas como agressivas, como pessoas que tivessem desagregando o movimento. Mas elas foram para o embate e tiveram uma longa trajetória de enfrentamento, e ainda tem hoje, quando as mulheres negras se posicionam no movimento feminista, também são pautadas como agressivas, como divisionistas, mas elas conseguiram construir um convencimento de que existem diferenças entre os gêneros. Não tem como você pensar a igualdade de gênero se você não pensar essas intersecções com raça, classe e outros elementos.”
Estudante de Filosofia na Unicamp, Gabriel Silva é militante do movimento negro e escritor do site Quilombo Invisível. Ele conta um pouco da sua experiência de luta antirracista, em especial nas periferias.
Gabriel Silva: “A gente acompanhou bastante, nos últimos anos, as mobilizações contra a violência policial nas periferias de São Paulo, né, fazendo a cobertura, apoiando familiares. De uns anos né, como o início da pandemia, houve um aumento muito grande da violência policial no Estado de São Paulo, que acabou gerando também uma situação de maior mobilização, porque como teve um grande número de aumento de casos, as famílias também estavam indo às ruas, contra essa situação. A gente entende um pouco esse processo como processo de solidariedade, como processo de ajudar a repercutir esses casos, a amparar a família, a organizar a luta na quebrada, em torno dessas situações que a gente entende que essas situações vão seguir acontecendo se não houver uma mudança de postura, assim em relação à alteração de políticas de segurança pública, ao perfil racial da polícia. No Quilombo ultimamente, a gente tem esse trabalho que a gente cola nas periferias e acompanha essas lutas, mas é um site, assim né, é quilomboinvisível.com ,daí lá a gente publica reflexões, tanto reflexões mais aprofundadas, mas também entrevista com militantes antirracistas, com pessoas da quebrada.
Gabriel também é um dos fundadores do Centro de Cultura Social Vira Lata Caramelo, em Santo André, espaço que tem como objetivo mostrar que a luta antirracista não está restrita aos ambientes de militância tradicionais.
Gabriel: “É um espaço que também surge de angústias parecidas, questionando o racismo, a misoginia dentro dos próprios espaços da esquerda né, que a gente entende, muitas vezes, que a esquerda hegemônica hoje no Brasil, mesmo nos setores radicais, ela fica presa às mesmas famílias, em geral brancas, não estão abertas a uma postura de autocrítica em relação ao racismo, em relação a misoginia, e a gente partiu muito dessas angústias. O CCS visa também fortalecer essas pessoas e entende que as quebradas em São Paulo elas são negras, são afroindígenas, é pessoas que mesmo que não carreguem essa identidade, a gente sabe que são imigrantes que vieram do processo de expulsão da terra historicamente. Então o espaço visa esse fortalecimento da luta antirracista, é ajuda na formação de um repertório, tanto cultural quanto político que nos fortaleça, fortaleça nossa união, nossa coletividade, nossa confiança.”
A resistência negra também se faz a partir dos movimentos culturais e religiosos, que preservam a cultura e as tradições africanas e afro-diaspóricas. O sacerdote de umbanda Carlos Fernando da Silva, mais conhecido como Pai Nando, fala sobre a importância das religiões de matriz africana na luta contra o racismo no país.
Pai Nando: “Muito do que a gente tem de manifestação cultural brasileira, elas vêm dessa mescla das culturas afro indígenas né, nos terreiros de umbanda a gente tem isso mais manifestado visualmente, na na estética indígena dentro do terreiro de umbanda, na estética dos pretos-velhos trazendo a africanidade. E do terreiro sai muita coisa pro Brasil, que daí vai sair para além da culinária, vai sair o samba, o maracatu, o samba de coco, que são músicas e danças miscigenadas , de povos indígenas e povos africanos, mas que esse encontro ele se dá dentro do terreiro, porque no terreiro a gente tem os nossos tambores pra louvar nossos orixás. Então nós somos, assim, um povo muito rico na questão da musicalidade, de uma diversidade de ritmos e danças muito grande. E aí a gente tem os sambas né, que é, acho que é o maior exemplo, sim, o Brasil ele é muito conhecido internacionalmente pelo samba. E aí o samba ele vem do semba né, ele é um dos ritmos principais dentro do nosso terreiro, sempre foi tocado em momentos, assim, de descontração também, pra além do momento litúrgico religioso, o samba era tocado depois das giras, depois dos xirês, pra fazer um almoço, um café, pra brincar, né então hoje em dia você tem, além do samba, você tem o maracatu também, que já tomou outros espaços, saindo do religioso né, a gente tem alguns grupos de maracatus que são, é teatrais e não religiosos. Então assim, eu estou trazendo exemplos mais populares, mais conhecidos, mas se a gente vai mais a fundo assim, a gente vai ver que tem muita coisa da cultura popular que ela nasce dentro do espaço de terreiros e vão tomando outros espaços né. Então, o terreiro ele é um quilombo por ser um espaço, primeiramente de matriz africana, afro indígena, ser um espaço aonde você constrói uma segunda família né, então você vai chegar lá, você vai ter o seu pai, a sua mãe, os seus mais velhos, seus mais novos. Ele é um quilombo porque ele é uma reconstrução de comunidade, então você chega no terreiro e tem muitas tarefas a serem feitas e pessoas responsáveis pela execução daquelas tarefas, a gente vai ter uma roça, aonde a gente tem que plantar, tem que cuidar dos bichos, agente vai ter toda uma parte que é de música e dança, tem o conselho, né muitos terreiros possuem conselhos, que são pessoas mais velhas, seja de axé né, de tempo de casa ou de idade. Então, um terreiro além de reunir várias pessoas pra formação de uma família, né da troca de afeto, o terreiro ele também faz essa reconstrução de comunidade, onde cada um tem seus direitos e seus deveres, suas responsabilidades e todos trabalhando juntos para que aquela comunidade permaneça de pé.”
Para Pai Nando, as casas de cultura também têm grande relevância no combate ao racismo, uma ponte Brasil-África que faz uma espécie de ligação entre passado, presente e futuro.
Pai Nando: “As casas de cultura, elas centralizam a comunicação entre líderes religiosos de matriz africana, entre griôs, mestres, mestras. Elas fazem esse ponto de encontro entre essas pessoas que estão espalhadas pela cidade, o ponto de cultura ele serve de museu, de memorial, então ele guarda instrumentos, instrumentos que guardam história. Isso tudo pra além de promover festas, de ter ensaio de batucada, de dança, essas coisas né.”
Como reforça o professor Eneias Forlin, em suas várias facetas, a luta antirracista permanece fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Eneias Forlin: “É uma questão da mais plena justiça, a luta pela igualdade de condições para as pessoas pretas e negras em todos os níveis. No nível educacional, que interfere no nível profissional, no nível econômico, no nível social, ou seja, sem isso o Brasil não pode se considerar uma nação, vai ser sempre um país fraturado, fraturado pelo ódio, pelo rancor e pela ignorância.”
Asriel Santana é graduando em filosofia pela Universidade Estadual de Campinas, umbandista, desenvolve sua espiritualidade no Terreiro do Candieiro sob a orientação de Pai Nando e trabalha na Rádio Unicamp.
0 Comentários