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21 dez 2022

Resenha do livro Trabalho Cativo  – Exploração de Trabalhadores Encarcerados

A Faculdade de Direito da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, realizou uma pesquisa sobre as condições de trabalho nas prisões daquele país, onde o trabalho forçado é uma das formas de penas impostas aos condenados do sistema judicial. O relatório dessa pesquisa foi publicado como livro, com o título em inglês de “Captive Labour – Exploitation of Incarcerated Workers” (Trabalho Cativo – Exploração de Trabalhadores Encarcerados), o qual comentamos a seguir.

 O texto não parte da perspectiva do abolicionismo penal, é muito mais moderado, e defende apenas uma humanização do sistema prisional para fins de ressocialização. Ou seja, os autores não se opõem a que as pessoas estejam encarceradas e que nessa condição trabalhem. Eles apenas recomendam que esse trabalho deve ser voluntário, não pode ser imposto arbitrariamente pelas autoridades carcerárias, não pode ser perigoso ou insalubre, deve ser precedido do devido treinamento, habilitar o preso a exercer a função quando sair do sistema penal e ser devidamente remunerado e protegido pela legislação trabalhista. Esse é o teor aproximado das recomendações de reforma legal que eles fazem ao final. Mesmo sendo moderadas, existe um abismo entre essas recomendações para o tipo de sistema penal que os autores defendem e o sistema que realmente existe e que eles descrevem no livro. 

Normalmente se diz que os Estados Unidos possuem a maior população carcerária do mundo, mas os autores não trazem essa estatística nem fazem esse comparativo, apenas citam uma cifra em torno de 2 milhões de pessoas submetidas ao sistema prisional no país, entre o regime fechado e a liberdade condicional. Desse total, cerca de 800 mil estão em estados que admitem o trabalho forçado como parte da pena das pessoas encarceradas, e cada um desses estados o regulamenta a sua maneira, conforme o caos legislativo do país, em que cada estado funciona como uma espécie de mini-república autônoma, em particular nessa área do direito penal. 

O quadro que surge desse relatório é de uma espécie de Gulag em plena “terra da liberdade”, operado pelos governos estaduais e locais para reduzir custos. Um preso da Califórnia diz textualmente que se sente “como em um regime comunista” (p. 54). Não se trata obviamente de comunismo, mas apenas da forma mais recente de gestão do Estado capitalista, a economia de verbas no serviço público por meio do trabalho forçado de pessoas condenadas. A maior parte dessa força de trabalho encarcerada trabalha para os governos estaduais e locais, sendo que um contingente de presos é empregado na própria manutenção das instalações prisionais, fazendo faxina, lavanderia, plantando alimentos, enfermaria, livraria, etc. Outra parte dos trabalhadores encarcerados desempenha essas mesmas funções em outras instalações públicas, como hospitais, escolas, tribunais, prefeituras, etc. E além dessas funções, os trabalhadores encarcerados são usados em serviços perigosos ou degradantes, como combate a incêndio, limpeza de entulhos depois de terremotos, furacões, desastres em geral, além de demolições, coleta de lixo, manipulação de resíduos perigosos, etc. Vários governos contam explicitamente com o trabalho gratuito de pessoas encarceradas para suprir a ausência de verbas para os serviços públicos, depauperados pelas políticas de austeridade. Ou seja, os governos deixam de contratar garis, zeladores, bombeiros, motoristas, operadores de tratores e máquinas, serventes, auxiliares de serviços gerais, etc., para contar com o serviço gratuito de trabalhadores encarcerados. 

Em alguns estados o trabalho dos presos é pago, mas a uma razão de poucos centavos por hora, que ainda por cima estão sujeitos a tantos descontos, que mesmo nesses casos é justo dizer que se trata de trabalho gratuito. Além de prestar serviços gratuitos ao público, os presos são usados para gerar lucros para o sistema prisional, principalmente cultivando produtos agrícolas e pecuários que são vendidos depois como matéria prima para cadeias de supermercados e lanchonetes famosas. Há também uma minoria que presta serviços variados diretamente para empresas privadas, sendo o caso mais bizarro o de presos que faziam telemarketing vendendo pacotes de viagem para Cancún, um típico paraíso tropical que eles mesmos jamais terão condições de visitar. 

A ideia de que o trabalho dos presos possa servir como medida educativa e forma de ressocialização é descartada quando se observa que as habilidades adquiridas no trabalho prisional não podem ser aproveitadas para que o preso possa se reintegrar ao mercado de trabalho uma vez cumprida a pena, conforme comentaremos mais adiante. Outra evidência de que a função do trabalho prisional não é a ressocialização, mas a punição e a exploração, é o fato de que os deficientes físicos encarcerados, caso queiram trabalhar (em alguns estados o trabalho dos presos conta para redução da pena e/ou obtenção de liberdade condicional), não encontram instalações adequadas para isso. Não apenas está descartada a função de ressocialização, como há detalhes que tornam explícito o objetivo de usar a prisão para torturar e humilhar certas partes da população. 

As forças reacionárias que mantém o sistema prisional funcionando chegam ao requinte do escárnio ao usar trabalhadores encarcerados, na sua maioria negros, para fazer trabalho braçal nos mesmos campos de algodão que eram cultivados por escravos no século XIX, literalmente nos mesmos terrenos, nas mesmas fazendas. 

E não é preciso dizer que a proporção de negros no sistema prisional, que está na faixa de 50%, é muito maior do que a proporção de negros na população total do país, que é de cerca de 15%. Por falar em escravidão, os autores remetem à 13° emenda constitucional, que aboliu a escravidão em 1865, como fonte do aparato legal que organiza o trabalho encarcerado, pois a referida emenda continha uma exceção, que admitia a continuidade dos trabalhos forçados para pessoas condenadas. De lá pra cá, o sistema de trabalho prisional continuou como uma espécie de remanescente da escravidão, não só operando literalmente nas mesmas fazendas, mas reproduzindo o racismo em várias particularidades. Os negros são mais abordados pela polícia, são condenados a penas pesadas por infrações em que os brancos são absolvidos ou designados para regime aberto, recebem sentenças mais longas, e quando presos, são colocados nos serviços mais pesados e degradantes.

As mulheres, em geral, são vítimas de abusos sexuais e obrigadas a prestar “favores” aos agentes carcerários, ou suportar punições, caso se recusem a prestá-los, com a sutileza de que as mulheres negras são colocadas na faxina ou no serviço braçal, e as brancas em serviço de escritório, call center, etc. O ciclo de probreza, crime e encarceramento se reproduz perpetuamente, vitimando mais marcadamente a população negra, baseado em dispositivos legais que dão às empresas o direito de não contratarem ex-condenados, bem como impedem a estes de exercer fora da prisão os serviços que aprenderam quando presos, como o de bombeiros. O cúmulo do absurdo e da crueldade é que os mesmos presos que atuaram combatendo incêndios florestais, tripulando ambulâncias em resgates, prestando socorro em desastres de modo geral, correndo risco de morte, enfim; ao sair da prisão, estão proibidos de exercer essas mesmas funções!! 

É como se toda pena de prisão fosse na verdade perpétua, porque as portas são fechadas de uma tal maneira aos ex-presidiários, que a reincidência no crime se torna uma opção séria. O criminoso é tratado de fato como uma sub-raça, como algo menos do que humano, a quem não se aplicam as salvaguardas e proteções consagradas na letra da lei e no direito internacional. Aliás, diante do modo como os Estados Unidos tratam as pessoas confinadas no seu próprio Gulag, qualquer crítica que o país faça a regimes estrangeiros, críticas usadas inclusive como pretexto para sanções e até invasões armadas, é uma evidente e grotesca hipocrisia. 

Os Estados Unidos não respeitam os direitos humanos dos seus presos muito mais do que qualquer ditador africano ou monarquia teocrática do Oriente Médio. As instituições carcerárias estadunidenses estão desobrigadas de prover aos presos tanto o treinamento quanto os equipamentos de proteção individual, inclusive para trabalhos insalubres. As pessoas são simplesmente jogadas na função, conforme o arbítrio dos diretores e agentes carcerários, independente das profissões e habilidades que tinham antes da prisão. O resultado, obviamente, são acidentes de trabalho, que resultam em mortes, amputações, mutilações, queimaduras, contaminações, infecções, lesões e doenças com sequelas permanentes, etc.

 Durante a pandemia, trabalhadores encarcerados foram usados para fabricar álcool em gel e máscaras, que no entanto, eles próprios não eram autorizados a usar, nem mesmo quando eram colocados para trabalhar em necrotérios, funerárias e cemitérios, sendo usados como bucha de canhão na linha de frente do combate ao vírus. Existem punições, como confinamento em solitária ou privações para quem se recusar a trabalhar ou não produzir conforme o que é exigido, e como mencionado, no caso das mulheres, elas são obrigadas a se submeter a abusos sexuais dos guardas caso queiram ficar livres do trabalho ou ir para funções mais leves. 

Diante de todos esses abusos, seja em face de acidentes de trabalho, torturas e agressões, abusos sexuais, punições arbitrárias ou maus tratos em geral, os presos não conseguem ter acesso ao sistema judicial para se socorrer, pois o sistema exige que sejam esgotados antes os procedimentos administrativos de prestação de queixas, que estão a cargo, justamente, dos mesmos agentes carcerários e dirigentes que cometem e acobertam os abusos.

 O retrato que surge do sistema prisional estadunidense nesse livro é de uma máquina opressiva, racista, misógina, reacionária, usada sistematicamente para reprimir as minorias e parcelas mais pobres e vulneráveis da população, usada para economizar recursos para o Estado neoliberal e ainda gerar lucro para o capital privado. Esse sistema não tem qualquer utilidade no que se refere à sua função declarada de combater o crime ou ressocializar os criminosos, mas se constitui numa indústria à parte e num dos pilares da manutenção da sociabilidade do capital, ao lado das forças policiais e militares, como uma forma de coerção contra indivíduos marginalizados ou recalcitrantes.

Por Granamir

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