Araraquara – 12 de janeiro de 2023
Os acontecimentos do domingo 8 de janeiro, tanto os de Brasília como os de Araraquara, podem ser lidos como um conjunto de mensagens cifradas. A massa bolsonarista que assaltou das sedes dos três poderes da república se mobilizou de maneira coordenada e vinha se preparando durante meses nos acampamentos junto aos quarteis e nos bloqueios de estradas. Essa massa quer intervenção militar, anulação das eleições e o retorno de Jair Bolsonaro à presidência. Mas não bastaria a vontade dessa massa e nem o patrocínio de setores do agronegócio para garantir a logística. Não teriam podido sequer se aproximar à Praça dos Três Poderes sem a proteção das polícias e das forças armadas, cujos serviços de inteligência não podiam ignorar tal articulação[1].

O novo governo tinha dado sinais de que retiraria das mãos das forças armadas o controle de alguns órgãos do Estado. Assim, perderiam parte do terreno ganho durante os últimos quatro anos. A FUNAI e o IBAMA, por exemplo, entregues aos militares, foram neutralizados no seu papel fiscalizador durante o governo de Jair Bolsonaro. Os efeitos desse transpasso foram particularmente sensíveis na região amazônica, fronteira mais dinâmica do avanço do extrativismo de commodities minerais, insumos para a indústria 4.0[2]. A militarização da Amazônia brasileira a partir da ditadura iniciada em 1964 ganhou nova intensidade durante o último governo. O que liberou a mão ilegal do Estado para lançar novas áreas ao mercado de terras para uso flexível pelas cadeias de acumulação.
Já durante a transição do governo militar para o que se chamou Nova República, havia um acordo tácito a propósito do controle pelas forças armadas sobre os recursos dos territórios amazônicos e seus negócios. Mas o último mandato tornou a Amazônia um território de exceção, com áreas liberadas para a operação de milícias incendiárias associadas à grilagem e garimpo ilegal.
Houve uma operação sobre o funcionamento do Estado e seu marco legal, de desmonte do que foi consensuado na Nova República. Por esse motivo, a transição do governo de Bolsonaro- Mourão para o de Lula-Alckmin ganhou tanta relevância. E Alckmin cumpriu nessa transição um papel de garantidor do consenso do grande capital. Mas as forças armadas não participaram ativamente desse processo.
Luiz Inácio Lula da Silva deu alguns sinais de que assumiria uma posição de força nas negociações com as forças armadas[3]. Não as mencionou nos seus discursos de posse e fez uma passagem muito rápida pela revista de tropas, sendo corrigido mais de uma vez pelo chefe do cerimonial. Deu destaque para a instalação do Ministério dos Povos Indígenas, para o qual foi nomeada uma das líderes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Isto deve ter entendido como uma perda para os militares que julgavam ter recuperado a tutela direta sobre os territórios indígenas, perdida durante a transição da ditadura para o governo civil na década de 1980. Por outro lado, a nomeação de José Múcio Monteiro para o Ministério da Defesa, um civil com vínculos estreitos com as forças armadas, que já declarou que não reprimiria os acampamentos frente aos quarteis, indica que há disposição para acordos com os militares. Isto é, esses gestos de Lula indicam que quer negociar desde uma posição de força.
As forças armadas também deram sinais. Os acontecimentos do domingo 8 de janeiro em Brasília não teriam acontecido sem sua anuência. E a necessária participação direta do governo e da secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, ambos declaradamente bolsonaristas. A mensagem mafiosa é: “podemos tornar este país ingovernável”.
Por outro lado, o atual governo não podia ignorar o que se preparava. Os grupos de extrema direita preparavam algo enorme em Brasília, com dezenas de ônibus fretados desde diferentes regiões do país. O presidente Lula optou por vir para a cidade de Araraquara, no interior de São Paulo, governada por Edson Silva, do Partido dos Trabalhadores. O que justificou a sua viagem em dia feriado era uma suposta urgência, devido a desastre ocasionado pelas fortes e copiosas chuvas. Quase dez dias antes, abriu uma cratera numa avenida inundada, que engoliu um carro com seis pessoas dentro. Lula visitou a cidade acompanhado pelo ministro das Cidades e o da Integração Regional, vestidos como se tivessem que agir diretamente no desastre[4]. Foi desde esse cenário que o presidente se dirigiu ao país, para falar da destruição pelos bolsonaristas nas sedes dos três poderes, decretando intervenção civil do governo do Distrito Federal. O cenário apresentava o governo, em dia de descanso, trabalhando pela reconstrução, enquanto uma turva, com a cumplicidade do governo da capital, destruía o coração da República. Todos os gestos espetaculares.
Rapidamente, governadores de estado, inclusive os bolsonaristas confessos, deslindaram responsabilidades da destruição. O próprio Bolsonaro, desde Orlando, onde também está o secretário de Segurança Pública de Brasília, também o fez.
As organizações e movimentos populares convocaram para manifestações “em defesa do Estado democrático” de direito e contra a anistia aos crimes cometidos durante o governo anterior. Alguns chamava a se mobilizar contra a “ultradireita fascista”, mas o problema é quem coloca o guizo no gato. Em última instância, o enfrentamento à ação direta da direita está sendo encomendado às forças de segurança do Estado, que já mostraram anuência e simpatia pelos acampamentos e bloqueios bolsonaristas e as caravanas que culminaram nos episódios do domingo 8 de janeiro em Brasília. Alexandre de Moraes está se mostrando proativo nas ordens de detenção e instauração de investigações pelos atos de destruição na capital, assim como o afastamento do governador de Brasília. Investigam-se já mais de 1500 suspeitos de participação direta e indireta (empresários patrocinadores da caravana e dos acampamentos). Mas nada se fez até agora com relação às forças armadas que protegeram os acampados na frente dos quartéis durante os últimos meses.
Os únicos que atuaram diretamente contra os bloqueios de estrada, em alguns pontos do país, foram as torcidas organizadas[5] e, num caso específico, os trabalhadores de um estaleiro no litoral de Rio de Janeiro[6]. Fora essas iniciativas, em momento algum os movimentos e organizações populares chamaram a ação direta contra a ultradireita, com o argumento de que isso seria aceitar a provocação dos fascistas e contribuir para a guerra civil aberta e o caos. Ao mesmo tempo, a figura legal do “terrorismo” vem sendo repetida até a exaustão e aplicada as formas de luta utilizadas pelos bolsonaristas que já foram utilizadas pelos movimentos populares. Isto é, legitimando uma legislação repressiva que costuma ser usada contra os próprios movimentos populares. Nessa mesma pegada, o senado de Chile, acaba de aprovar a vigilância da “infraestrutura crítica” com votos decisivos do Partido Comunista e da Frente Ampla[7]. E em Peru são reprimidas marchas de camponeses que bloqueiam estradas e querem derrubar o governo de Dina Boluarte, acusados de terrorismo e massacrados sem dor, já vão mais de 40 mortos[8].
De toda maneira, atrás dessas ações da ultradireita com uma base estendida na sociedade estão as forças armadas e suas exigências frente ao novo governo. Em fevereiro de 2022, o próprio vice-presidente Hamilton Mourão lançou o “Projeto de Nação-2035”[9]. As formas republicanas têm se demonstrado esvaziadas, e já não servem para atender as necessidades dinâmicas das cadeias de acumulação. As forças armadas se propõem a jogar um novo papel como garantes da exploração extrativa na América Latina[10]. Creio que é necessário ver os acontecimentos de domingo 8 de janeiro como parte desses reacomodamentos.
Por Silvia Adoue, militante, professora da Escola Nacional Florestan Fernandez e do programa TerritoriAL da UNESP.
[1] Ver https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/01/11/mapa-online-onibus-brasilia-ato-golpista-8-janeiro-preparacao-confronto.htm
[2] Ver o Ver o estudo de Maria Orlanda Pinassi e Gisele Sinfroni: https://blogdaboitempo.com.br/2022/10/25/em-dois-compassos-para-o-abismo/
[3] Ver: https://contrapoder.net/colunas/assume-lula-em-meio-a-grandes-expectativas-sera-possivel-satisfaze-las/
[4] Ver: https://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao/noticia/2023/01/08/lula-visita-araraquara.ghtml
[5] Ver: Ver: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2022/11/01/orientacao-para-furar-bloqueio-foi-passada-para-organizadas-que-vao-viajar.htm
[6] Ver: https://www.esquerdadiario.com.br/Trabalhadores-mostram-o-caminho-pra-enfrentar-os-bloqueios-bolsonaristas
[7] Ver: https://www.laizquierdadiario.cl/Con-votos-del-Partido-Comunista-y-el-Frente-Amplio-el-Senado-aprueba-que-FFAA-vigilen
[8] Ver: https://desinformemonos.org/masacre-en-peru-la-democracia-en-guerra-contra-los-pueblos/?fbclid=IwAR1gE7as3cAT97OoVntGjanfMA6XFHobIiUXVpC4yVSJhuFDjeToremQ0Fg
[9] Ver: https://sagres.org.br/artigos/ebooks/PROJETO%20DE%20NA%C3%87%C3%83O%20-%20Vers%C3%A3o%20Digital%2019Mai2022.pdf
[10] Ver: https://contrapoder.net/colunas/mexico-um-novo-papel-para-as-forcas-armadas/
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