Quando os britânicos colonizaram a Índia, primeiramente colonizaram suas florestas. Ignorantes da abundância dessas florestas e ignorando a riqueza dos saberes locais sobre o manejo florestal sustentável, usurparam os direitos locais, as necessidades locais, a sabedoria local, e reduziram essa fonte primária da vida à uma mina para extração de madeira. A economia de subsistência das mulheres indianas, baseada na floresta, foi substituída pela economia comercial do colonialismo britânico. Tecas de Malabar foram extraídas para a marinha real, e o sal da Índia Central e as coníferas do Himalaia foram exploradas para proveito do sistema ferroviário. Apesar das pessoas locais serem sempre responsabilizadas pelo desflorestamento, foram as demandas comerciais que mais frequentemente resultaram na destruição florestal em larga escala. Na região dos Himalaias há evidencias de que foram as necessidades do Império Britânico, e não das pessoas locais, que levaram ao rápido desmatamento das florestas. E.T. Atkinson aponta que
“as florestas foram desnudadas de boas árvores em todo lugar. A destruição de árvores de toda espécie parece ter sido contínua e intensa, atingindo seu clímax entre 1855 e 1861, quando as demandas das autoridades ferroviárias induziram numerosos especuladores à firmarem contratos para a produção de vagões de trem com cama, e à esses homens foi permitido, sem qualquer fiscalização, derrubar velhas árvores em excesso muito além do necessário, e do que seria possível exportar, de modo que, anos depois do começo regular das operações florestais, o departamento ainda se ocupava principalmente em serrar e levar ao depósito a madeira deixada para trás pelos empreiteiros” [em Himalayan Gazetteer, vol III, Allahabad, 1882]
Quando os britânicos começaram a explorar madeira indiana com propósitos militares, o fizeram predatoriamente e na ignorância, pois “o grande continente parecia resguardar inesgotáveis extensões de terra cobertas por densas selvas, mas aparentemente sua exploração minuciosa e detalhada não era uma necessidade, e nem ao menos uma possibilidade. Nos primeiros anos de nossa ocupação, a botânica das florestas, as espécies de árvores que continham e suas respectivas utilidades, eram livro fechado” [em E.P. Stebbing, The Forests of India, New Delhi, 1982]. O governo colonial e seus oficiais não levaram em conta o papel crucial das florestas no ecossistema, bem como a grande influência exercida por elas no bem estar físico de uma pátria. Em vistas da imensa profusão florestal existente, o governo por alguns anos obteve todo o requisitado sem dificuldades, ao passo que as necessidades locais também eram satisfeitas. Os primeiros administradores parecem ter se convencido de que a ordem dos fatores poderia assim seguir por tempo ilimitado. Em muitos locais as florestas eram vistas como um empecilho à agricultura e, portanto, um fator limitante à prosperidade do colonizador. A política era a agricultura extensiva e a palavra de ordem limpar as florestas para este fim. Florestas virgens do Doon Valley foram então derrubadas para a concessão de terras exclusivamente à colonos britânicos.
A introdução da floresta colonial foi estabelecida não por conta de um conhecimento superior da floresta ou do manejo cientifico desta, mas através das dominantes necessidades militar e de poder. Foi só depois de mais de meio século de destruição da floresta, causada pelos interesses comerciais britânicos, que um esforço no sentido de controlar a exploração foi feito. Em 1865 o primeiro Indian Forest Act foi aprovado pelo Conselho Legislativo Superior, que autorizou o governo à declarar florestas, terras “improdutivas” e descampados como florestas reservadas (reserved forests).
A introdução dessa legislação marca o início do que é conhecido como ‘manejo cientifico’ das florestas; que consistiu basicamente na formalização do processo de erosão tanto das florestas quanto dos direitos das populações locais à produção florestal. A Floresta Comercial, que divide com a Floresta Científica aqueles mesmos interesses estreitos, muito bem exemplificados pelo patriarcado ocidental, é reducionista em conteúdo intelectual e impacto ecológico, ao passo que socioeconomicamente gera pobreza para as pessoas cujo sustento e produtividade dependem da floresta viva. O reducionismo foi característico desse manejo florestal que separou a floresta da gestão dos recursos hídricos, da agricultura, da pecuária. Dentro do ecossistema florestal reduziu a diversidade da vida ao produto morto, madeira, e madeira querendo dizer a madeira com valor comercial, apenas. O interesse comercial tem como objetivo principal o de maximizar valores-de-troca no mercado através da extração de espécies valorizadas comercialmente – os ecossistemas florestais são então reduzidos a minas de extração de tais espécies. Ao ignorar as complexas relações em atividade dentro da comunidade florestal e entre a vida das plantas e outros recursos vitais, como solo e água, esse padrão de uso dos recursos gera instabilidade no ECOSSISTEMA e leva ao uso contraproducente da Natureza, que é um recurso vivo e autossuficiente. A destruição do ecossistema florestal e das múltiplas funções dos recursos da floresta por sua vez sangra os interesses econômicos de grupos sociais, principalmente mulheres e povos originários, que dependem da diversidade de recursos e funções da floresta para sua sobrevivência. Isso inclui estabilização do solo e da água, e a provisão de comida, forragem, combustível, fertilizantes etc.
Já para a alternativa ciência florestal feminina, a florestania, que tem sido subjugada pela ciência masculinista, florestas não são vistas como meros depósitos de madeira, isoladas do resto do ecossistema, nem seu valor econômico é reduzido ao valor comercial de madeira. ‘Produtividade’, ‘rendimento’ e ‘valor econômico’ são definidos a partir da natureza e do trabalho feminino enquanto satisfação das necessidades básicas através de um ecossistema integrado e de um manejo pensado na utilização múltipla da natureza. Seus propósitos e medidas são portanto inteiramente diferentes dos propósitos e medidas empregados pela floresta colonial reducionista. Na mudança de um manejo florestal ecológico para o manejo reducionista todos os termos científicos foram alterados de dependentes do ecossistema para independentes do ecossistema. Enquanto para as mulheres, tribos e comunidades florestais um ecossistema complexo é produtivo em termos de água, ervas, tubérculos, forragem, fertilizantes, combustíveis, fibras e enquanto fundo gênico [genepool], para o forasteiro esses componentes são inúteis, desperdício de produtividade e dispensáveis. Duas perspectivas econômicas levam à duas noções de ‘produtividade’ e ‘valor’. A floresta tropical natural é um ecossistema altamente produtivo. Examinando as florestas dos úmidos trópicos sob uma perspectiva ecológica F.B. Golley anota “Uma grande quantidade de biomassa é geralmente característica das florestas tropicais. A quantidade de madeira, especialmente, é enorme, em média 300 toneladas por hectare, enquanto que nas florestas temperadas a média é de 150 toneladas por hectare.” [em Productivity and Mineral Cycling in Tropical Forests’ – Productivity of World Ecosystems, Washington, 1975]. No entanto, para a floresta comercial reducionista a produtividade geral é subordinada ao uso industrial, e a imensa biomassa às espécies que podem ser lucrativas nos mercados – biomassas comerciais e industriais prevalecem; todo o resto é descarte. Conforme diz James A. Bethel, consultor internacional de manejo florestal, referindo-se à grande disponibilidade de biomassa típica das florestas dos úmidos trópicos:
“É preciso dizer que, do ponto de vista das necessidades materiais da indústria, isto é relativamente desimportante. A pergunta que importa é ‘quanto dessa biomassa é de árvores ou partes de árvores das espécies preferidas que podem ser lucrativas comercialmente’ … Pelos padrões de utilização hoje vigentes, a maioria das árvores dessa floresta tropical úmida são, de um ponto de vista industrial, mero mato.” [em Forest Management, June 1984]
O ‘ponto de vista das necessidades materiais da indústria’ é o ponto de vista do capitalismo e da floresta patriarcal reducionista, que transforma a diversidade da vida e a democracia da floresta em madeira morta comercialmente útil e só por isso valorizada, ao passo que o mato ecologicamente valioso é caracterizado como lixo. Esse lixo, no entanto, é a prosperidade da biomassa a manter as águas da natureza e o ciclo dos nutrientes, assim satisfazendo as necessidades de comida, combustível, forragem, fertilizantes, fibras e a medicina das comunidades do campo.
Já que é trabalho das mulheres indianas proteger e conservar a vida da Natureza no manejo florestal e na agricultura, e, através desse trabalho de conservação, sustentar a vida humana com a certeza da provisão de água e comida, a destruição da integridade dos ecossistemas florestais é mais vividamente e concretamente sentida por essas mulheres do campo. Para elas o cultivo da floresta é casado com a produção de alimentos; isto é essencial para prover suprimentos perenes e estáveis de água pra beber e água pra irrigar, e diretamente prover-se a fertilidade, seja por meio da adubação verde ou da matéria orgânica ciclada pelos animais. A sua agricultura em regiões como a do Himalaia é trabalho na e com a floresta, e no entanto suas técnicas não são levadas em conta nem pela Engenharia Florestal nem pela Agricultura.
A floresta viva provê os meios, na forma de nutrientes e água, para o acontecer dos sistemas de produção alimentar sustentável, e o trabalho feminino na floresta visa facilitar esse processo. Quando, por exemplo, as mulheres em trabalho comunitário podam árvores, elas engrandecem a produtividade da floresta de carvalho, sob condições estáveis. Ao passo que um pé de carvalho não podado tem folhas duras demais para o gado, a poda faz as folhas macias e palatáveis, especialmente no começo da primavera. Manter a diversidade dos recursos vitais é central no uso feminino da floresta: as folhas do carvalho juntadas com uma mistura de gramíneas secas e resíduos agrícolas é oferecida ao gado no fim do outono e no inverno. Na época das monções, a grama verde se torna principal forrageira, e em outubro e novembro a palha do arroz, a palha de mandua e a palha de jangora tornam-se fornecedoras primárias de forragem. A poda ecológica nunca foi vista como estratégia de gerenciamento florestal, por usar o produto da árvore conservando-a. Ainda mais, conforme Bandyopadhyay e Moench demonstraram, podar nas circunstâncias apropriadas pode até aumentar a densidade da floresta e sua produtividade forrageira. Grupos de mulheres jovens e velhas saem juntas pra podar forragem, e a perícia se desenvolve com a participação e através do aprender-fazendo. Essas escolas informais de manejo florestal são pequenas, descentralizadas, criam e transmitem saberes sobre como preservar os recursos vitais. As escolas oficiais de manejo florestal, em contraste, são centralizadas e alienadas: especializam-se em um manejo de destruição, em como transformar um recurso vital em comodities e, subsequentemente, dinheiro.
A desapropriação dos direitos e dos recursos das pessoas locais não passou incontestável. Lutas pela floresta aconteceram ao longo do país por mais de duzentos anos como forma de resistir à colonização das florestas na Índia. O acesso e o direito das pessoas nativas à floresta foram a princípio usurpados com a introdução dos Forest Acts de 1878 e 1927. Os anos seguintes presenciaram a propagação de SATYAGRAHAS florestais através da Índia, como protesto contra as florestas reservadas para exploração exclusiva dos interesses comerciais britânicos, e sua concomitante transformação de recurso comum em comoditie. As gentes das aldeias cerimoniosamente removiam produtos florestais das florestas reservadas para assegurar seu direito à satisfação das necessidades básicas. Os SATYAGRAHAS florestais foram especialmente bem sucedidos em regiões onde a sobrevivência da população local estava intimamente ligada ao acesso às florestas, como nos Himalaias, nos Ghats Ocidentais e nas colinas da Índia Central
Esses protestos não violentos foram sistematicamente esmagados pelos britânicos; na Índia Central pessoas do povo Gond foram baleadas por participarem dos protestos; em 1930 dezenas de pessoas desarmadas foram mortas e centenas ficaram feridas na aldeia Tilari em Tehri Garhwal, quando elas se juntaram para protestar contra as Leis Florestais dos mandantes locais. Após enorme perda de vidas, os SATYAGRAHAS conseguiram reviver alguns direitos tradicionais das comunidades e aldeias à vários produtos florestais. A Política Florestal da Índia pós-colonial seguiu pela trilha colonial da comercialização e do reducionismo, e com ela seguiu a resistência das pessoas à essa negação de suas necessidades básicas, tanto através da alienação dos seus direitos quanto através da degradação ecológica. Nas regiões montanhosas do Himalaia as mulheres de Garhwal passaram a proteger as florestas da exploração comercial até mesmo à custa de suas próprias vidas, ao começarem o famoso Movimento Chipko, abraçando as árvores vivas como suas protetoras. Tendo começado no inicio dos anos 70 na região de Uttar Pradesh, a metodologia e a filosofia Chipko agora se espalham por Himachal Pradesh no norte, por Karnataka no sul, por Rajasthan no oeste, por Orissa no leste, e pelas altas terras da Índia Central.
Por Vandana Shiva – Capítulo do livro Staying alive: women, ecology and survival in India (1988), pág. 58
Tradução de Pedro Torres Busch, originalmente publicada na revista Mangue da ciência, da editora Maracaxá.
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