Na mesma semana em que Paris entra em chamas contra a reforma da previdência, com carros queimados, barricadas erguidas e curto-circuito na coleta de lixo, acontece uma das maiores revoltas de presos contra o sistema prisional e suas práticas de tortura no Rio Grande do Norte. Os ataques contra a logística do poder do outro lado do Atlântico, contudo, parecem ter ganhado entre a esquerda mais visibilidade do que a revolta de corpos pobres, encarcerados e racializados no seu próprio País. Todo mundo fala em nome dos presos: os acadêmicos da criminologia crítica, antropólogos, jornalistas, advogados, juízes, mas há uma absoluta negação de se conceder qualquer legitimidade quando os presos falam por si, e quando esse falar por si assume a forma da revolta, da insurreição ou do motim.
As formas de subjetivação e de demarcação do campo político, a partir de partilhas pelas quais se constitui um campo de ação e subjetividade que são lidos como legitimamente políticos, é acompanhada de um processo seletivo pelo qual um conjunto de ações e subjetividades são anuladas a partir da criminalização e desmoralização, o que não se faz sem o acionamento dos dispositivos de racialidade. Quando nos perguntamos “o que é uma ação legitimamente política”, por trás da pergunta há sempre um modelo, um pressuposto normativo que seleciona certas formas de performatividade social, de linguagem, corporalidade e estética pela qual se opera uma demarcação que determina as alianças passíveis de serem ou não estabelecidas, bem como as sensibilidades pelas quais se produz uma escuta política sobre as fraturas e quebras do campo social. A constituição de “sujeitos políticos” e suas identidades não se dá sem a produção de um “resto” não abarcado: isso é verdade desde a divisão clássica entre proletariado e lumpemproletariado. E é um processo como esse que pode ser identificado agora, no exato momento em que presos do RN e suas ações – muitas delas que seriam aprovadas pela esquerda (ao menos radical) se estivessem sendo feitas por outros corpos – são reduzidas ao “mundo do crime” e às facções que o povoam como formas de organizações, no interior das quais os presos seriam apenas massa de manobra. Assim, se apaga toda uma série de reivindicações que toca diretamente no funcionamento das máquinas supremacistas brancas de produção de mortes, que são as prisões brasileiras e sua administração – feita atualmente por um governo progressista. Trata-se de um verdadeiro Estado de Exceção que foi instaurado no Rio Grande do Norte, com a criação de um Gabinete de Crise, o envio das Forças Nacionais e a cogitação, inclusive, do uso da Lei de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para o envio das Forças Armadas. Nisso, já foram gastos mais de 5 milhões de reais.
Já se somam 6 dias de revoltas de presos no Rio Grande do Norte. A revolta começou no dia 14/03, com queima de ônibus, delegacias, prefeitura e outros prédios públicos e comerciais. Até agora, são pelo menos 48 cidades e mais de 259 ações. As reivindicações são sobre condições mínimas de dignidade, dentre elas o direito à própria vida no interior das máquinas necropolíticas que são os presídios brasileiros.
São reivindicações como: a) o fim das torturas – espancamento, choque elétrico, superlotação e outros procedimentos de violência; b) a realização de visitas íntimas, que foram cortadas desde 2017, de 15 em 15 dias; c) a permissão que as visitas entrem com alimentos; d) ampliação das visitas, 4 por mês, uma por semana; e) banho de sol pelo menos de 2 em 2 dias; f) alimentação melhor, pois as comidas que estão sendo fornecidas nos presídios é estragada; g) investigação do Sindicato dos Agentes Penitenciários e do Poder Judiciário do RN que têm negado o direito de presos saírem no regime semiaberto, além da garantia de condições básicas dentro dos presídios; h) investigação do Presídio Rogério Coutinho Madruga, cujas celas são contêineres, superlotadas, sem ventilação, com presos com várias doenças, como tuberculose.
Ainda no dia 14/03, a Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) suspendeu as visitas de familiares e atendimento para advogados. Ainda no dia 14/03, Flávio Dino, Ministro da Justiça do governo Lula, enviou a Força Nacional para o Estado do Rio Grande do Norte. Hoje, são mais de 1000 agentes policiais federais e de outros Estados, que compõem a Força Nacional enviada como reforço. No dia 15/03, familiares realizaram um protesto contra a tortura dentro do cárcere, e duas familiares foram presas arbitrariamente.
Diante da revolta, há um grande consenso repressivo estabelecido desde a Secretaria de Administração Prisional (Helton Edi Xavier), Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (coronel da PM Francisco Araújo), o governo do Estado (Fátima Bezerra [PT]), O Ministério da Justiça e Segurança Pública (Flávio Dino – PSB), e Poder Executivo (Lula – PT). Reduzida à “regalias”, as reivindicações dos presos e familiares contra as torturas realizadas dentro dos presídios do RN, se esfumaçam nos discursos criminalizantes que focam nas ações das “facções” e na “violência” que atingem a ordem e a infraestrutura do poder, acionando todo tipo de dispositivo de exceção que, como se sabe, busca legitimar, em nome da lei e da ordem suspensa, a produção de mortes. Trata-se de uma sobreposição de práticas de exceção, na medida em que o próprio sistema penitenciário opera cotidianamente fora da lei, na mais rígida exceção que se abate sobre corpos racializados e pobres.
Ao invés de atender as reivindicações de presos, Lula, Dino e Fátima Bezerra irão investir ainda mais no complexo-industrial-prisional: serão compradas mais viaturas, mais armamentos, e construída mais prisões. Ou seja, a guerra social continuará afogando cada vez mais a população pobre e racializada em poças de sangue dentro das prisões. O governo do PT, assim, reforça seu compromisso com o “desenvolvimentismo punitivista”, que consiste em ampliar a criminalização, encarceramento e genocídio de parcelas inteiras da população tornadas supérfluas, subvidas desartáveis.
Por outro lado, se estamos diante da maior revolta até agora do ano de 2023 por parte de um dos setores mais marginalizados socialmente e politicamente, a indiferença da esquerda, desde a institucional até seus setores mais autônomos atravessados pela branquitude, significa que a esquerda está longe de construir uma escuta política em relação a quem está no cárcere. Essa escuta política é fundamental para começar a traçar e ampliar alianças e redes de solidariedade em relação às reivindicações, tomadas da palavra e emergência de novas subjetividades políticas por parte de corpos que a esquerda pretende emancipar. As revoltas se dão, simultaneamente, à construção da Marcha da Maconha. Como dissociar a pauta pela descriminalização das drogas das revoltas que estão acontecendo no Rio Grande do Norte e das ações que o Estado Terrorista tem tomado contra presos e seus familiares? Não há como!
Por Travessias Invisíveis.
Posterior foi lançada uma versão em video:
https://www.youtube.com/watch?v=oc7ehiUka_M
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