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28 mar 2023

A ciência enquanto projeto patriarcal

A Lição de Anatomia do Dr. Tulp – Rembrandt

A ciência moderna projeta-se como um sistema de conhecimentos universal e não valorativo, o qual substituiu outras crenças e sistemas, por sua universalidade [abrange o universo todo], sua neutralidade valorativa [não faz juízo de valor] e pela lógica do seu método para chegar a conclusões objetivas sobre a natureza. O paradigma reducionista (ou paradigma mecânico **a crença de que todos os fenômenos do mundo e todos os seres podem ser reduzidos à uma lógica que divide tudo em partes, isolando essas partes e vendo-as, assim, desconectadas, isoladas, reduzidas a si mesmas. Assim, o ser humano moderno não entende que é a Natureza, que a Natureza faz parte do Humano e que o Humano faz parte da Natureza), ainda que seja o fluxo dominante da ciência moderna, é uma resposta particular de um grupo particular de pessoas. É um projeto especifico de homens ocidentais que tomou forma durante os séculos 15 e 17 (1401-1699) como a mais aclamada Revolução Científica. Durante os últimos anos estudiosas feministas começaram a perceber que o sistema científico dominante emergiu como uma força libertadora não da humanidade como um todo (apesar de ter se legitimado em termos de um universal aprimoramento das espécies) mas como um projeto masculino e patriarcal que acarretou na subjugação da natureza e das mulheres. Susan Harding chamou de um “projeto ocidental, burguês e masculino” (The Science Question in Feminism, 1986, Cornell University Press) e, de acordo com Evelyn Keller:

A ciência tem sido produzida por uma pequena parcela da raça humana, isto é, por homens brancos da classe média. Para os pais fundadores da ciência moderna, a crença na linguagem de gênero era explicita; eles buscavam delinear uma filosofia que merecesse ser chamada de “masculina”, que pudesse se distinguir das suas ineficazes predecessoras pelo seu poder “viril”, sua capacidade de botar a Natureza à serviço do homem e fazer dela sua escrava (Reflections on Gender and Science, 1985, Yale University Press)

Francis Bacon (1561-1626) foi o pai da ciência moderna, o originador da ciência industrial e a inspiração por trás da Royal Society de Londres. Sua contribuição para a ciência moderna e a organização desta é enorme. Do ponto de vista da natureza, das mulheres e grupos marginalizados, entretanto, o programa de Bacon não era humanamente inclusivo. Era um programa beneficiador da classe média, europeia, um empreendimento masculino conjugador do saber humano e do poder na ciência.

No método experimental de Bacon existia uma dicotomização [separação em dois extremos opostos] entre masculino e feminino, mente e matéria, objetivo e subjetivo, razão e emoção, além da dominação masculina e científica sobre a natureza, mulheres e não ocidentais. Não era um método cientifico “neutro”, “objetivo” – era uma maneira masculina de agressão contra a natureza e dominação sobre as mulheres. O teste severo de hipóteses, a partir de manipulações controladas da natureza, e a necessidade de tais manipulações para que os experimentos pudessem ser re-feitos com exatidão, são aqui formuladas em metáforas claramente sexistas. A natureza e a investigação aparecem conceitualizadas de maneiras modeladas no estupro e na tortura – as relações mais violentas e misóginas de um homem contra uma mulher – e essa modelação é alardeada como um motivo para se valorizar a ciência.

De acordo com Bacon “a natureza das coisas trai a si mesma mais prontamente sob as vexações da arte que em sua liberdade natural”. A disciplina do conhecimento científico e as invenções mecânicas por ele proporcionada, não “meramente exercem um direcionamento gentil sobre o curso da natureza; tem o poder de conquista-la e subjuga-la, de chacoalha-la à suas fundações (The Works of Francis Bacon – vol. 5, 1963, Stuttgart).

Em O Nascimento Masculino do Tempo (Tempores Partus Masculus, 1602), traduzido do latim para o inglês por Benjamin Farrington em 1951, Bacon promete criar uma “abençoada raça de heróis e superhomens” que dominaria tanto a natureza quanto a sociedade. O título é interpretado por Farrington como um indicio dessa ‘substituição da velha ciência, representada como feminina -passiva e fraca- por uma nova ciência masculina da revolução científica’, cuja qual Bacon via a si mesmo como arauto. Em Nova Atlantis (1627), a Bensalém [a tal ‘nova’ atlantis] de Bacon, era administrada pela Casa de Salomão, um instituto de pesquisa cientifica, a partir do qual cientistas homens governavam e tomavam decisões pela sociedade, e decidiam quais segredos deveriam ser revelados e quais deveriam permanecer propriedade privada do instituto.

A sociedade gerida pela ciência evoluiu bastante nos termos da Bensalém de Bacon, com a natureza sendo transformada e mutilada em Casas de Salomão modernas – laboratórios corporativos, e os programas universitários que eles patrocinam. Com as novas biotecnologias, a visão de Bacon de controle da reprodução pelo bem da produção está se realizando, enquanto que a ‘revolução verde’ e a ‘bio-revolução’ tornaram realidade o que em Nova Atlantis era apenas uma utopia.

“Nós fazemos pelo ato arvores e flores surgirem antes ou depois das suas estações, e crescerem e frutificarem mais rapidamente do que em seu curso natural. Nós fazemos elas pelo ato maior, muito mais do que sua natureza, e suas frutas maiores e mais doces e com gostos, cheiros, cores e desenhos diferentes da sua natureza”. Para Bacon, a natureza não era mais a Mãe Natureza, mas uma natureza fêmea, conquistada por uma mente agressiva de macho. Conforme Carolyn Merchant aponta em The Death of Nature: Women, Ecology and The Scientific Revolution (Harper & Row, 1980) essa transformação do conceito de natureza, de uma mãe viva e provedora para uma inerte, morta e manipulável matéria, foi especialmente adequada para a exploração imperativa ao desenvolvimento do sistema capitalista. A imagem dessa terra nutridora agia como uma restrição cultural à exploração da natureza. ‘Um sujeito não prontamente matará a mãe, enterrará suas entranhas ou mutilará seu corpo’. Mas as imagens de maestria e dominação criadas pelo projeto baconiano e a revolução científica removeram todas as restrições e funcionaram como sanções culturais para a destruição da natureza.

A remoção das suposições animistas e orgânicas sobre o cosmos constituíram na morte da natureza – o efeito mais abrangente da revolução cientifica. Porque a natureza não era antes vista como um sistema de partículas mortas e inertes movidas por forças externas, ao invés de forças inerentes, e a estrutura reducionista por si mesma podia legitimar a manipulação da natureza. Além do mais, como conceito estrutural, a ordem reducionista havia associado consigo uma estrutura de valores baseada no poder, plenamente compatível com as direções tomadas pelo capitalismo comercial (Merchant, 1980).

A ciência moderna: uma atividade conscientemente patriarcal e de gênero. Como a natureza passou a ser vista mais como uma mulher a ser estuprada, o gênero foi também recriado. A ciência enquanto empreendimento masculino, baseado na subjugação da natureza e do sexo feminino, forneceu suporte para a bipolarização do gênero. O patriarcado enquanto novo poder cientifico e tecnológico era uma necessidade política do capitalismo industrial emergente. Se por um lado a ideologia da ciência sancionou a destruição da natureza, por outro lado também legitimou a “dependência” das mulheres e a “autoridade” dos homens. Ciência e masculinidade foram associadas na dominação sobre a natureza e a feminilidade, e as ideologias da ciência e do gênero reforçaram uma a outra. A histeria de ‘caça às bruxas’, que objetivava aniquilar mulheres na Europa, foi contemporânea de 2 séculos de revolução cientifica. Esse avanço cientifico-patriarcal atingiu seu pico com o Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo (1632) de Galileu Galileu, e morreu com a emergência da Royal Society de Londres e a Paris Academy of Sciences.

Interrogar bruxas era um símbolo para a interrogar a natureza, o tribunal como modelo para sua inquisição, e tortura por meio de dispositivos mecânicos como ferramentas para o subjugar da desordem, o que era fundamental pro método cientifico enquanto poder. Para Bacon, politicas sexuais ajudaram a estruturar a natureza do método empírico que produziria uma nova forma de conhecimento e uma nova ideologia da objetividade, na aparência desprovida de presunções políticas. (Merchant, 1980).

A Royal Society de Londres, inspirada pela filosofia de Bacon, claramente foi vista por seus organizadores como um projeto masculino. Em 1664, Henry Oldenberg, Secretário dessa sociedade, anunciou que a intenção da sociedade era “criar uma filosofia masculina… através da qual a Mente do Homem possa se enobrecer com o conhecimento das Verdades sólidas”. E para Joseph Glanvill, o intuito masculino da ciência era saber ‘as maneiras de escravizar a Natureza, e fazê-la servir a nossos propósitos, assim alcançando o Império do Homem sobre a Natureza. A ‘des-maternação’ da natureza através da moderna ciência e do casamento do conhecimento com o poder foi simultaneamente origem da subjugação da mulher e de pessoas não europeias. Robert Boyle, o cientista que era também diretor da New England Company [sociedade missionária protestante de Londres], viu a ascensão do projeto reducionista como um instrumento de poder não só em relação às mulheres mas também em relação aos povos originários dos lugares invadidos pela Inglaterra, como a América. [N. T. é bom lembrar que a própria Royal Society de Londres também auxiliou a coroa inglesa em seu projeto de catequização/imposição da cultura inglesa aos povos não europeus cujos territórios foram invadidos pelos ingleses, e embora a autora não mencione no texto, esse tal Robert Boyle foi também um dos fundadores dessa ‘Sociedade Real’] Ele explicitamente declarou suas intenções de livrar os indígenas de suas noções ridículas sobre o funcionamento da Natureza. Ele atacava a percepção desses povos da Natureza como ‘um tipo de deusa’, e argumentou que essa veneração pelo que eles chamavam de natureza, essa veneração imbuída nos homens, havia sido um impedimento desencorajador ao império do homem sobre as criaturas inferiores de Deus.

Hoje, com uma nova consciência ecológica, ecologistas ao redor do mundo olham para as crenças dos povos nativos da América e de outras culturas indígenas como uma fonte importante para aprender a viver em harmonia com a natureza. Existem muitas pessoas hoje em dia, na ecologia e nos movimentos feministas, que veem a irracionalidade do impulso de Boyle pelo império do homem branco sobre a natureza, sobre outras pessoas, e que veem racionalidade nas palavras do chefe indígena Smohalla, do povo Wanapum quando ele clama: “Você me fala pra arar a terra: devo eu pegar a faca e dilacerar o seio da minha mãe? Você me fala pra cortar a grama/o capim/a relva/as gramíneas*[N.T. Todas traduções possíveis para a palavra grass] e fazer feno e vender e ser rico como homem branco; mas como posso ousar cortar o cabelo da minha mãe?”.* [N.T. Existem relatos de que o povo Wanapum, povo originário de uma parte desse território hoje conhecido como Estados Unidos da América, chamava-o de Yuyunipitquana, isto é, montanha que grita)

A carta do chefe Seathl (1854), que se tornou uma grande inspiração para o movimento ecológico, declara: “Isto sabemos: a terra não pertence ao homem; o homem pertence à terra. Isto sabemos: todas as coisas estão ligadas como o sangue que une uma família. Há uma ligação em tudo. O que recair sobre a terra recairá sobre os filhos da terra. O homem não tramou o tecido da vida; ele é simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizer ao tecido, fará a si mesmo.” [N.T. Outro trecho traduzido dessa carta que Seathl escreveu como resposta à proposta do presidente dos eua de comprar as terras habitadas por seu povo: Sabemos que o homem branco não compreende nossos costumes. Uma porção da terra, para ele, tem o mesmo significado que qualquer outra, pois é um forasteiro que vem à noite e extrai da terra aquilo de que necessita. A terra não é sua irmã, mas sua inimiga, e quando ele a conquista, prossegue seu caminho. Deixa para trás os túmulos de seus antepassados e não se incomoda. Rapta da terra aquilo que seria de seus filhos e não se importa. A sepultura de seu pai e os direitos de seus filhos são esquecidos. Trata sua mãe, a terra, e seu irmão, o céu, como coisas que possam ser compradas, saqueadas, vendidas como carneiros ou enfeites coloridos. Seu apetite devorará a terra, deixando somente um deserto.

As alternativas ecológicas e feministas à ciência reducionista claramente não são as primeiras tentativas de criar uma ciência da natureza não generificada. O período dessa ‘revolução científica’ estava cheio de alternativas ao projeto masculino da ciência reducionista, e também estava cheio de contendas entre ciência generificada e não-generificada. 

Bacon e Paracelso (1493-1541) são os principais expoentes das duas tendências da ciência moderna que competiam na Europa durante o século dezessete. Os paracelsos pertenciam à tradição hermética [de Hermes Trismegisto] que não dicotomizava entre mente e matéria, masculino e feminino. A escola mecânica dos baconianos criou dicotomias entre cultura e natureza, mente e matéria, masculino e feminino, e planejou uma estratégia conceitual para que a cultura, a mente e o masculino predominassem sobre a natureza, a matéria e o feminino. As duas visões da ciência eram também duas visões da natureza, do poder e das relações de gênero. Para Paracelso, o masculino não predominava sobre o feminino, um complementava o outro, e o conhecimento e o poder não vinham da dominação sobre a natureza mas sim do “coabitar com os elementos” (Keller, 1985), os quais eram eles mesmos interconectados para formar um organismo vivo. Para os paracelsos “O mundo inteiro está costurado em si mesmo: pois o mundo é uma criatura viva, em todos os lugares feminino e masculino”, e o conhecimento da natureza deriva dessa da participação dentro dessas interconexões. (Merchant, 1980).

Nesse contexto, com a formação da Royal Society e o emergir do capitalismo industrial, a disputa entre as tradições hermética e mecânica foi vencida pelo projeto masculino que era o projeto de uma classe específica. Paracelso e Bacon não meramente divergiam em suas ideologias científicas e de gênero; eles estavam também enraizados em diferentes classes políticas: Bacon comprometido com os valores da classe-média e se identificando com os capitalistas, os mercadores e o Estado em seu projeto científico, e Paracelso do lado dos camponeses numa revolta em Tirol. A ciência reducionista se tornou um agente central das mudanças políticas e econômicas nos séculos seguintes, dicotomizando as relações de classe e gênero e a relação do ser humano com a natureza. “Dado o sucesso da ciência moderna, definido em oposição a qualquer coisa feminina, o medo tanto da Natureza quanto da Mulher podia diminuir. Com uma sendo reduzida ao seu substrato mecânico e a outra à sua virtude sexual, a essência da Matéria [no original está Mater, termo em latim que significa Mãe e que no português é a raiz das palavras matéria, maternidade, etc.] podia ser tanto domesticada quanto conquistada.” (Keller, 1985). 

Por mais de três séculos, o reducionismo tem imperado como o único método/sistema científico validado, distorcendo a história dos ocidentais bem como a dos não ocidentais. Tem escondido sua ideologia por trás da projeção do objetivismo, da neutralidade e do progresso. A ideologia que esconde sua ideologia transformou plurais e complexas tradições de conhecimento em um monolito do pensar baseado em gênero e classe, e transformou essa tradição particular em uma tradição superior e universal a ser superimposta à todas as classes, gêneros e culturas onde possa auxiliar em processos de controle e subjugação. A projeção ideológica manteve a ciência reducionista moderna inacessível a críticas. As raízes “paroquiais” da ciência, a lógica patriarcal e de uma classe e cultura específicas, foram escondidas atrás de uma pretensa universalidade, e podem ser vistas apenas a partir de outras tradições – mulheres e pessoas não ocidentais. São essas tradições subjugadas que estão revelando como a ciência moderna é generificada, como atende especificamente às necessidades e impulsos da cultura ocidental dominante e como a destruição ecológica e a exploração da natureza são inerentes à sua lógica. Está se tornando cada vez mais evidente que a “neutralidade” científica tem sido um reflexo da ideologia, não da História, e a ciência é similar à todas as outras categorias construídas socialmente. 

Essa visão da ciência como um projeto social e político de homens ocidentais emerge das respostas daquelas que foram definidas na natureza e tornadas passivas e frágeis: a Mãe-Natureza, as mulheres e as culturas colonizadas.

É  a partir dessa margem que estamos começando a discernir os mecanismos econômicos, políticos e culturais que permitiram que uma ciência paroquial dominasse e como os mecanismos de poder e violência podem ser eliminados para a construção de um conhecimento não-generificado e humanamente inclusivo.

Por Vandana Shiva, em Staying Alive: women, ecology and survival in India, 1988

Tradução de Pedro Torres Busch para a revista Mangue cientifico.

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