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12 abr 2023

Dissidência em flor: Nossa primavera será apocalíptica

Mais um ano começou e a escola onde trabalho montou os horários de aula com meu nome de registro. Isso fez com que, logo que os alunos tiveram acesso, começassem a me perguntar quem era “aquele professor”, já que me conhecem pelo meu nome mesmo. Essa situação é pequena comparada com o cansaço ao qual estamos submetidas por constantemente “ter que” instruir, visibilizar, sensibilizar, entre várias outras coisas, as pessoas ao redor.

Uma vez me perguntaram o porquê eu não corrijo quando erram o meu pronome e isso me fez pensar em duas coisas: A primeira é que de modo geral eu corrijo, quando tenho paz & necessidade o suficiente para isso, e segundo, muitas vezes não o faço porque só a ideia de andar por aí implorando para ser reconhecida no feminino e tendo uma discussão dessa a cada esquina é absurda, principalmente porque isso implica estar sempre em embate e isso é, muitas vezes, a última coisa que eu quero.

A falta de inteligibilidade que nos atinge diariamente faz parte de uma dimensão estratégica do cisheteropatriarcado: Mesmo quando anunciamos escancaradamente nossa transgeneridade e ainda assim acontece um elaborado esforço social para não lidar com nossa existência, nos colocando sempre em posição de cobrança, esforço, vigilância, tensão, etc. percebemos que estamos frente algo maior do que a sempre alegada ignorância.

Negar a nossa existência das formas mais elaboradas possíveis não pode ter outra intenção que não seja nos cansar na tentativa de minguar nosso interesse em existir da forma que somos. O índice absurdo de suicídio entre nós é um dos elementos que nos lembra que o cansaço frente a negação pode, por vezes, vencer essa discussão. É por isso que temo que abandoná-la pode não ser uma escolha, apesar de me encontrar cada vez mais junto daquelas que “não falarão mais sobre isso”.

O mundo é uma ficção política de poder.

O projeto moderno-colonial de mundo no qual vivemos fundou as bases onto-epistemológicas que limitam e estruturam nossa experiência no planeta terra até os dias de hoje. As ideias de humanidade e racionalidade, as ideias de História e tempo cronológico, as teorias raciais e a diferença sexual, etc. são todas fruto do acúmulo sociocultural e político desenvolvido no Ocidente durante alguns séculos e imposto para o resto do planeta durante as invasões coloniais. Sendo assim, sabendo que o poder das ficções políticas pode ser somático e estruturante, é importante que saibamos quais ficções vamos reiterar e quais delas precisamos urgentemente abandonar: Ao anunciar a dor, a tristeza e a precariedade das quais estamos submetidas como única possibilidade de experienciar a vida estamos reiterando e consequentemente, somatizando essas ficções. Como disse Maya Angelou: “minha missão na vida não é só sobreviver, mas prosperar”, é por isso que esse desabafo é também, de uma certa forma, uma despedida.

Jovens e crianças antiCistêmicas: Vocês são a nossa melhor chance.

Não é raro ouvirmos de travestis mais velhas que estamos cansadas. Experienciar a transgeneridade ou a não-cisgêneridade cansa, principalmente quando estamos no território que mais nos mata física e simbolicamente. Lutar pelo reconhecimento, quando esse ainda se encontra circunscrito pelas ficções de poder que instauraram nossa dor num primeiro momento, cansa ainda mais. Justamente por isso, abandonar a esperança não me parece uma opção razoável.

Somos muitas e ainda estamos em nossa primavera: Enquanto aqueles que negam a transmutação tentaram me reenquadrar, nessa situação da escola, ao mesmo tempo tive alunos trans que rapidamente, sem nem saber do ocorrido, vieram me mostrar o quanto me enxergam, o quanto nos conhecemos, mesmo sem saber nossos nomes, e é por isso que a imprevisibilidade deles, jovens e crianças trans e dissidentes, é a nossa esperança mais bonita.

Como Leda Martins bem nos mostrou, pedir a benção dos mais novos é lembrar que em outro momento eles foram os mais velhos e partindo desse ponto a chave para desviar do cansaço pode estar mais próxima do que imaginamos. Por isso, o pedido que faço as mais velhas(os) é que nos atentemos para os jovens dissidentes ao nosso redor.

Será através dos passos deles que retornaremos para a prosperidade que é nossa por direito, será através das vitórias deles que nossos sonhos e nossas ficções se materializarão. Será através da desobediência deles que textos como esse deixarão de existir e por conta dessa radicalidade abundante, encontraremos os meios para, em nossa primavera apocalíptica, poder continuar florescendo e finalmente descansar.

Por noite abissal (nic oliveira), artista antidisciplinar, uma das fundadoras da produtora Sol da Meia Noite e criadora do projeto musical tristeza poente. Vem estudando as relações entre arte e política e desenvolvendo pesquisas sobre a escuridão, a noite e a vida. outros de seus trabalhos giram em torno da feitiçaria como uma tecnologia de cura.

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