As redes nas sombras
Durante anos a fio, redes de internet que operam nas sombras, às vezes saem à superfície das redes abertas para atrair adeptos. O fazem através de “comunidades” de jogadores de games violentos, por exemplo, mas não apenas ali. Também em grupos de whatsapp de turmas, em grupos de vizinhos que clamam por segurança, em páginas de desabafo de insatisfações diversas. Em todos os casos, capturam a energia condensada num ressentimento difuso, como um pássaro que não acha galho onde pousar.
As redes sombrias instrumentalizam as paixões tristes de crianças, adolescentes e adultos. Promovem uma masculinidade associada à força, à violência e ao poder sobre os demais, como uma compensação pelas ofensas e humilhações sofridas. Essas redes realizam um tipo específico de “formação sentimental”: subjetividades nas quais a compaixão é desativada.
Essa “máquina de morte” vem sendo alimentada de adeptos e nutrida para alguma finalidade futura. Assim como as redes se apropriam gratuitamente dos nossos dados e vendem para empresas comercializadoras de variados produtos, essas redes da deep web possuem agentes disponíveis para as práticas de terror. Não são “soldados disciplinados”. Eles atuam se animando mutuamente, se desafiando a fazer ações como se a vida real fosse um game em que as mortes acumulam pontos, porque os solitários encontram um ambiente de sociabilidade que suspende a censura das pulsões destrutivas e autodestrutivas, premiando com reconhecimento a quem passa ao ato. Já assistimos ao estalido de muitas dessas bombas de tempo. E, por esses episódios isolados, temos indícios da potencialidade dessas redes, como uma bala na agulha à espera do acionar do revólver engatilhado.
A pergunta do milhão é por que, de maneira bastante sincrônica, estalaram agressões em vários estados do Brasil. Mesmo para a simples explicação do “contágio” há o contra-argumento de que em outras ocasiões tal contágio não se operou. O cenário do “game” ser a escola parece se justificar pelo ambiente cotidiano dos “jogadores” e/ou pela vulnerabilidade das pessoas que ali estão (com a situação extrema de um adulto escolher como alvo as crianças de uma creche).
Que acontece nas escolas?
Na última década observamos reformas impulsadas nos sistemas educativos. Esses sistemas não foram transformados senão por meio de mudanças discretas, que pretendem acompanhar as transformações no mundo do trabalho. A finalidade é adequar as subjetividades, a hierarquia de valores, as qualidades e destrezas, e os conhecimentos às demandas que o trabalhador flexível precisa atender num mercado de trabalho em mutação.
Nessas sucessivas reformas do sistema escolar, nos encontramos com o chamado Novo Ensino Médio, que precocemente divide os estudantes entre os que terão e os que não terão condições de formação escolar para ingressar no ensino superior. Fazendo com que os das escolas públicas realizem “percursos formativos” diferenciados, com repertório de disciplinas insuficiente para encarar um vestibular. Ao mesmo tempo, propicia-se um intenso bombardeio de demandas que obrigam aos estudantes a se perguntar como se virar numa realidade de deterioração de relações de trabalho assalariado. Enquanto isso, as escolas particulares oferecem a seus alunos a lista de conteúdos que lhes permitirá concorrer por uma vaga no ensino superior.
Para isso, pretendia-se, progressivamente, que os estudantes frequentem escolas de período integral, para as quais se direcionou o grosso dos recursos. Porém, a maioria dos estudantes trabalham em contraturno e não podem frequentar essas escolas. O que faz com que as escolas de meio período, que permaneceriam durante o tempo de transição, estejam lotadas, sem recursos e com poucos professores.
O Novo Ensino Médio foi forjado com a intervenção muito ativa das grandes corporações, preocupadas em dispor de força de trabalho flexível com características adequadas à sua demanda nos diferentes territórios.
Os sistemas educativos se articulam nesta nova modalidade, deixando as atividades de ensino em condições para serem terceirizadas. A distribuição da carga horária para professores com relações de trabalho diferenciadas e estratificadas, independentemente da sua formação, aponta para uma volta de parafuso em que as aulas presenciais possam ser substituídas por aulas virtuais, e os professores possam ser contratados como trabalhadores de plataforma no futuro.
A insatisfação crescente de estudantes e professores com o Novo Ensino Médio caldeia um movimento por sua revogação dentro das escolas. O último grande movimento no ensino médio foi o das ocupações de escolas contra a reorganização escolar, que se pretendia uma preparação para o que hoje se conhece como Novo Ensino Médio.
E em casa?
Essas mudanças são pouco percebidas pelas famílias que cada vez estão mais pressionadas pela flexibilização das relações de trabalho, correndo atrás de renda. E com alívio de que o momento mais difícil da pandemia tenha acabado e os seus filhos possam voltar para a escola.
Como Sísifo, as famílias conseguiram mal e mal empurrar a pedra da educação dos filhos ladeira acima, mesmo atravessando as aulas virtuais para se proteger do Covid. Agora, os ataques e anúncios de massacres nas escolas faz rodar novamente a pedra ladeira abaixo. Para além das razões desses ataques. Qualquer medida que inibir as agressões está sendo reclamada.
A segurança armada dentro da escola
A única medida concreta que o Estado oferece é a presença policial nas escolas. “Solução” já aplicada em Estados Unidos sem que isso iniba massacres. Desde 1999, teve 377 ataques a escolas no país do norte, 89 deles entre 2021 e 2022. Mesmo assim, é a única iniciativa concreta que o Estado propõe, seja ele federal, estadual ou municipal. O governo federal criou uma comissão interministerial para discutir o que fazer, mas já anunciou que está destinando 150 milhões de reais para policiamento dentro das escolas. Sabemos, porém, que não haveria efetivos suficientes para cumprir essa promessa. No caso do governo do estado de São Paulo, que anunciou, além do policiamento, o envio de psicólogos, está se falando num atendimento de uma hora por semana. E autoriza as escolas públicas a contratar policiais de folga. Mesmo que houvesse os recursos nas escolas para isso, não haveria efetivos suficientes.
Além do mais, estamos falando de agressores que agem sem temor a morrer. Mais, em muitas ocasiões, o suicídio é planejado como coroamento da ação. A presença policial pode ser observada por esses atacantes mais como um desafio do “game” que como um inibidor.
A questão é de que tipo de profissionais estamos falando. Não precisamos dizer que os policiais, de qualquer uma das corporações, não têm preparação para lidar em ambientes com crianças. É só ver as estatísticas da morte de crianças consideradas como danos colaterais da atividade policial. Morrem mais crianças pela letalidade das ações policiais que pelos ataques a escolas. A isso é preciso acrescentar que os suspeitos podem ser alunos da própria escola, o que torna os estudantes potenciais agressores aos olhos do policial que, armado, agirá preventivamente ante qualquer movimento que ele considerar ameaçador. De outra maneira, a presença de guardas armados dentro das escolas se assemelha ao combate às traças com artilharia antiaérea. Provavelmente, não se evitarão os ataques, com alto risco de mortes de aqueles a quem se pretende proteger. Os principais alvos serão os suspeitos de sempre segundo os critérios de abordagem que a polícia aplica seguindo manuais bem estudados: os meninos negros e pobres.
Outra amostra eloquente é a quantidade de denúncias de famílias e docentes a propósito dos abusos nas escolas geridas por policiais militares. Nada disso está sendo considerado. O policiamento dentro da escola é apresentada como solução urgente frente a uma emergência, mas sem ponderar sua eficiência. O pensador Miguel Benasayag, a propósito de outro assunto, lembra de uma breve história: um homem procura suas chaves embaixo de um farol que ilumina a calçada; não acha. “Que procura?”. “As minhas chaves” “Está seguro que foi aqui que perdeu?”. “Perdi em outro lugar, mas aqui há luz”. Bem, estamos buscando soluções onde não estão.
Não será uma coincidência?
Nos negamos a buscar as causas e só enxergamos as consequências, com a desculpa de que é preciso agir já. A urgência justifica aceitar qualquer iniciativa que nos oferecem.
Olhamos para os agressores como se fossem extraterrestres. Como se não fossem resultado da mesma sociabilidade em que estamos inseridos, e que nos leva a aceitar com facilidade o que não aceitaríamos se tivéssemos um mínimo de tempo e serenidade para refletir.
Só que o número de ataques em 2022 e no que vá de 2023 supera o dos casos registrados nos 20 anos anteriores.
Por que agora? Não será que precisam nos submeter a um tratamento de choque para que aceitemos sem resistência aquilo que estudantes e docentes vinham rejeitando? Não será que a ativação da máquina de morte é útil para impor condições de excepção dentro da escola, que impeçam o debate e as iniciativas que recusam o Novo ensino Médio?
Estamos observando que, em nome da segurança, e numa ação de pinças, estão cortando o debate sobre os rumos do sistema educativo. Criando um ambiente de terror e dando poder, no espaço escolar, a uma força que não inibe os massacres, mas sim inibe a discussão. E é no diálogo dos estudantes com docentes e funcionários, e com as famílias, que conhecem o espaço e as pessoas que pode estar a resposta para defender a escola.
Procuremos as chaves ali onde as perdemos, e não onde é fácil procurar.
Por Silvia Adoue, militante, professora da Escola Nacional Florestan Fernandez e do programa TerritoriAL da UNESP.
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