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29 maio 2023

Feito açúcar na chuva 

(escrito no entardecer da sexta-feira de uma semana “daquelas”)

26/05/2023

As expectativas que a posse do governo despertou dentro e fora do Brasil, no dia 1º de janeiro, não pareciam fáceis de satisfazer. A imagem da subida da rampa do Palácio do Planalto por representantes de setores sempre humilhados e ofendidos, que entregaram a faixa presidencial ao novo governante, valia como símbolo de uma promessa de que os últimos seriam os primeiros. A foto que percorreu o mundo, porém, escamoteava a composição da aliança política que havia ganho as eleições, da esquerda institucional até muitos que meses antes apoiava Jaír Messias Bolsonaro. O retrato também não dava conta de representar a proporção das forças presentes no congresso.

No discurso de posse, Luiz Inácio Lula da Silva não mencionou as forças armadas e fez desfeita no tratamento às tropas protocolarmente presentes.

Ao empossar o variado gabinete ministerial, a primeira a ser chamada foi Sonia Guajajara, para inaugurar o Ministério dos Povos Indígenas, recém criado.

Como compatibilizar interesses tão contraditórios como a reivindicação das demarcações de terras indígenas com a cobiça despertada pelas demandas de commodities minerais e agrícolas, por exemplo? A retórica tratava de preencher esses abismos com palavras feito “democracia”, “desenvolvimento” e “sustentabilidade”[1]. Não demorou mais que uma semana para que as forças armadas, ignoradas no dia 1º de janeiro, reclamassem sua parte, pela ação vicária dos invasores na Praça dos Três Poderes, cuidadosamente convocados e acolhidos nos quartéis, para a demonstração de força que operava como ameaça velada dos militares, que não queriam perder o terreno conquistado durante o mandato do presidente anterior[2]. As negociações entre governo e militares tiveram lugar a portas fechadas e não pretendiam resguardar os atores do espetáculo de 8 de janeiro, centenas dos quais já estão respondendo processos judiciais. E já está formada a Comissão Parlamentar de Inquérito que ameaça descobrir os incitadores no seio das instituições.

Mas todas as contradições represadas desde janeiro parecem ter se soltado em avalanche durante a última semana, a pouco mais de cinco meses da instalação do novo governo. O núcleo de Lula sabia muito bem que deveria encará-las cedo ou tarde. Tentou se adiantar para negociar em algumas frentes e ganhar tempo com outras. Mas a direita é mais hábil nas escaramuças institucional e, nos últimos tempos, nas “guerrilhas” que se desenrolam na capilaridade das ruas e das redes de confiança, virtuais ou não. Falta audácia ao núcleo de Lula, que não faz cálculos para além das relações de forças dentro da estreita margem das instituições.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, preparou cuidadosamente um “arcabouço fiscal” para substituir o ajuste realizado em 2016 pelo presidente Michel Temer, conhecido como “teto de gastos”. Nas negociações para sua aprovação, pretendendo maior flexibilidade no manejo das contas públicas, a proposta de governo terminou abrindo mão de pontos como o de limitar o fundo para a educação, que o ajuste de Temer não contemplava. Haddad também não conseguiu compromissos que permitissem reduzir as taxas de juros, e perdeu a parada na disputa com o Banco Central[3].

A proposta de explorar petróleo na foz do rio Amazonas, celebrada de antemão por Lula, recebeu um laudo científico-técnico negativo do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, vinculado ao ministério do Meio Ambiente. Laudo este desqualificado pelo ministro de Minas e Energia, em claro conflito interministerial. Ao mesmo tempo, um conjunto de medidas que ameaçam a mata atlântica, favorecendo a mineração e o agronegócio, estão sendo ancoradas pelos parlamentares.

Um projeto de lei, apresentado por deputado da base aliada, desarmou a nova estrutura administrativa proposta pelo governo antes da posse, esvaziando de funções de peso o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério dos Povos Indígenas. O governo tentou se antecipar, nas negociações dos corredores, para que as mudanças não aparecessem como derrotas. Agora, a demarcação das Terras Indígenas sai da jurisdição do ministério a cargo de Sonia Guajajara, reivindicação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), e retorna às mãos do Ministério da Justiça. Grande parte das decisões e laudos técnicos que estavam sob controle do Ministério do Meio Ambiente distribuem-se para outras pastas, como a de Gestão e a de Agricultura. Esta última, hoje, nas mãos do agronegócio[4].

O ministro de Agricultura pronunciou-se publicamente, na última segunda-feira, a favor do “marco temporal” para a demarcação das terras indígenas, contra o qual a APIB vem lutando por mais de uma década[5], e que considera 1988, quando a constituição foi sancionada, como momento em que deve ser comprovada a presença do povo no território reivindicado. Quarta-feira, tarde de noite, no congresso foi pautada a votação do “marco temporal” em caráter urgente. Algo que a luta dos povos tinha conseguido adiar uma e outra vez durante anos.

A todos esses reveses do progressismo, no campo da luta institucional, sua única instância de atuação, soma-se a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, acusado de invasão ilegal de propriedades[6]. Sendo que as ocupações de terras se reduziram desde já faz mais de uma década, priorizando a luta por políticas públicas de apoio aos assentamentos já existentes ou a homologação de processos de uma reforma agrária que, ainda que presente na letra da constituição nacional, está congelada.

As iniciativas ousadas da direita parlamentária precipitaram acontecimentos que o progressismo esperava driblar ou adiar com negociações. E são tratadas desde o campo progressista como tão inevitáveis quanto a chuva.

Lula recusa-se a reconhecer esses reveses como derrotas, argumentando que sempre tem lugar para a política, que ele confunde com negociação no campo do jogo institucional. Nos corredores, o núcleo mais próximo ao presidente admite que, para defender a ordem democrática, manter as alianças realizadas e em minoria parlamentar, será necessário abrir mão de muitos dos pontos programáticos que garantiram a eleição. Para esse núcleo, é preciso defender o que ele entende como essencial: o projeto de desenvolvimento[7]. A que se refere o governo quando fala em desenvolvimento? Certamente, não se trata do projeto industrializador, com a consequente recuperação do assalariamento, perdido em outro momento histórico. Trata-se de acrescentar valor agregado à produção de commodities. (É preciso lembrar que, a diferença de Bolívia e Argentina, Brasil exporta soja em grão e não farelo, só pra dar um exemplo.) Desenvolvimento é o que o governo Dilma Rousseff celebrava quando impulsionava a construção de infraestrutura energética e de conectividade para a extração e escoamento de commodities, com o Programa de Aceleração do Desenvolvimento. E, por último, há uma expectativa de transferência de tecnologia chinesa, já que o gigante oriental está interessado em externalizar segmentos das suas cadeias de produção menos rentáveis ou que apresentam riscos ambientais e sociais. Claro que esses segmentos só funcionarão se integrados às cadeias chinesas.

Frente a essa rendição do progressismo à dissolução das esperanças mais acalentadas, os movimentos que apostaram suas fichas à saída eleitoral ficam em compasso de espera, agora sem promessas no horizonte institucional. Tem algo de neurose nessa insistência no progressismo latino-americano. Mais em países como Brasil, onde se tropeça novamente na mesma pedra. Sabemos que o Estado brasileiro possui dispositivos de segurança que saltam feito fusíveis à mais mínima ameaça já não apenas à ordem do capitalismo dependente, mas à aceleração da espoliação, que é a pedra de toque do atual modelo de acumulação. No entanto, o progressismo teima em “ocupar os espaços” desse Estado, se apresentando como bons administradores dessa governança que garante o crescimento logarítmico dos lucros para as cadeias transnacionais e seus fundos de investimento.

As ilusões se desfazem feito açúcar sob a chuva.


[1] Ver: https://contrapoder.net/colunas/assume-lula-em-meio-a-grandes-expectativas-sera-possivel-satisfaze-las/
[2] Ver: https://desinformemonos.org/brasil-mensaje-mafioso/
[3] Ver: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2023-05/haddad-diz-que-novo-arcabouco-fiscal-vai-despolarizar-o-pais y https://www.infomoney.com.br/economia/banco-central-mantem-selic-inalterada-pela-5a-vez-seguida-em-1375-ao-ano/
[4] Ver: https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/05/24/comissao-aprova-mp-que-reestrutura-ministerios-demarcacao-de-terras-sai-dos-povos-indigenas-e-vai-para-o-ministerio-da-justica.ghtml
[5] Ver: https://cultura.uol.com.br/noticias/58924_rodaviva.html
[6] Ver: https://g1.globo.com/politica/ao-vivo/cpi-do-mst-ao-vivo.ghtml
[7] Ver: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2023/05/lula-comanda-governo-sob-cerco-e-deve-abrir-mao-de-aneis-para-manter-os-dedos-avaliam-integrantes-do-ministerio.shtml e https://sumauma.com/como-o-pt-abracou-o-centrao-e-deixou-marina-e-sonia-a-deriva/


Por Silvia Adoue, professora da Escola Nacional Florestan Fernandez e do programa TerritoriAL da UNESP.

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