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23 jun 2023

JUNHO DE 2013: CRÍTICA DA REPRESENTAÇÃO, INTERNACIONALISMO E RUPTURA DA GOVERNABILIDADE COMO GUERRA SOCIAL NORMALIZADA. – PARTE 1

Por Agnes de Oliveira

O presente texto busca realizar uma análise de Junho de 2013, entendo como um acontecimento que ultrapassa a efetivação da revolta popular num período de tempo determinado. Consideramos, portanto, Junho como um bloco de devir-revolucionário que perpassou o tecido social e insiste até os dia de hoje. Tal bloco abarca não só Junho de 2013 e a luta contra o aumento da tarifa, mas também a luta contra a copa, a olímpiada, o genocídio negro e indígena, a radicalização da ruptura com a norma de gênero (como as ações do coletivo Coiote), as campanhas “cadê o Amarildo?” e “Liberdade para Rafael Braga”, até as Ocupações Secundaristas.

A primeira parte do texto busca abordar Junho de 2013 como um acontecimento que estabeleceu, em ato, uma crítica da representação e de funções como vanguarda e liderança, entendidas não meramente como princípios formais de regulação da organização política, mas também como operadores coletivos existenciais, pondo o seguinte problema: como habitar e estar juntes na revolta como um campo objetivo problemático, comum e instável de transformação? Além disso, passaremos por uma reflexão sobre a questão dos limites da política da demanda e sobre a “perda de controle” para além de uma tática de revolta popular.

A segunda parte busca inscrever Junho de 2013 no interior de uma série de revoltas mundiais que eclodem pós-2008 e chegam até os nossos dias, produzindo um tempo de crise das governabilidades, explicitando a guerra civil permanente como infraestrutura das formas de governo social no capitalismo cispatriarcal e colonial. Nessa parte, trata-se de estabelecer um diálogo crítico com as explicações ora puramente econômicas (a revolta como resultado da crise econômica), ora política (a revolta como manifestação da crise política e da democracia representativa). Também refletiremos sobre a maneira como tais explicações visam dar conta da natureza das revoltas contemporâneas, seja a partir de uma análise de suas ambiguidades (a presença tanto da esquerda, quanto da direita e, em menor grau, da extrema-direita), seja na sua conjunção de pautas e identidades muito distintas, e o que isso nos diz da relação entre devir-revolucionário e devir-minoritário.

Por fim, a terceira parte busca inscrever Junho de 2013 na máquina de guerra brasileira, argumentando que a quebra da governabilidade é também uma quebra com o automatismo da guerra civil permanente cristalizada na forma-governo. A partir disso, iremos mostrar os limites das análises da esquerda institucional que localiza em Junho de 2013 a gênese da extrema-direita e do bolsonarismo. Contra isso, dizemos: a extrema-direita nada mais é que a consequência irresistível da tendência de aceleração suicidária própria da reprodução da máquina de guerra do cispatriarcado do dinheiro. A extrema-direita é assim a duplicação subjetiva – a elavação a enésimo grau – da potência de destruição da máquina de guerra relamente existente, tenedo como base econômico-política a militarização social e a guerra contra o crime e às drogas, que acionam o racismo e o cispatriarcado para a produção de mortes,  bem como a repressão de qualquer revolta social que nos convoque a produzir outros mundos possíveis e interrompa o automatismo da máquina social.

PARTE 1 –  A Revolta como Acontecimento e a crítica da representação

Isso me traz a evocação de um bando de pássaros migratórios: este tem sua estrutura própria, sua representação no espaço, seu papel, sua trajetória, determinados sem a reunião de um comitê central e sem a elaboração de uma linha justa! – Félix Guattari

A insurreição não esperará que todo o mundo se torne insurrecto – Comitê Invisível

  1. Junho e a Ruptura Subjetiva: o irrepresentável e ingovernável na subjetividade

É comum ouvirmos que Junho de 2013 mudou a forma como as pessoas pensavam a política e a sociedade, ou que passaram a se interessar mais por política, entendida como uma esfera específica da vida coletiva. E, de fato, muitas cidades passaram a ter protestos e manifestações relativamente massivas, onde não existia de maneira regular. Num primeiro sentido, poderíamos pensar essa enunciação em termos de uma politização geral que Junho de 2013 teria provocado, e que tal politização seria produzida por uma espécie de despertar ou tomada de consciência: “o gigante acordou”. Mas, mais profundamente, Junho marca antes uma ruptura nas formas de subjetividades políticas, que se estabelece também em relação às formas tradicionais de organização e do fazer político, instaurando uma prática de luta cuja experiência está para além, no sentido que excede e escapa ao controle dos grupos que compuseram o Acontecimento que foi Junho de 2013. Essa experiência de luta poderia ser caracterizada, inclusive, como antipolítica, no sentido preciso de uma luta que destituí ou rompe com a política como poder e domínio social separado das demais esferas da vida coletiva, que seriam consideradas “não-políticas”.[1]

Assim, Junho de 2013 não poupou ninguém: as pessoas não saíram as mesmas, nem as organizações políticas, que foram arrastadas, como tomadas por uma bufada da vida, ainda que, muitas delas, assumissem uma posição reativa na revolta, buscando conservar sua “interioridade”, com suas palavras de ordem, metas programáticas, formas organizativas e subjetividades políticas, que foram abaladas diante de um processo que escapou ao controle de qualquer grupo político particular.

A partir de tal prática de ruptura, Junho instaurou uma situação instável na qual as coisas começaram objetivamente a flutuar, e que foi experienciada como uma perda de controle em relação aos próprios grupos catalisadores (em especial o Movimento Passe Livre) e demais componentes (partidos, sindicatos, entidades estudantis, movimento sociais etc.). Tal situação instável abriu um campo de virtualidade capaz de produzir novos possíveis do ponto de vista de relações, práticas, subjetividades, da maneira de estar junto e fazer sociabilidade.[2] Falo aqui em grupos catalisadores no plural, pois apesar do papel inegável do MPL de São Paulo na deflagração de Junho, ela só foi possível pelo fato do MPL funcionar como aquilo que Félix Guattari denominou de grupo analisador:[3] um grupo que, em sua ação, botou em ressonância, numa relação de transversalidade, diversas linhas de fuga ou rupturas subjetivas, que vinham se desenhando a partir da ações de grupos políticos os mais diversos e em torno das mais variadas pautas não só em São Paulo, mas em diversos territórios ocupados pelo Estado brasileiro, produzindo novos modos de existência coletiva.[4] Botar em ressonância, nesse sentido, não significa desempenhar um papel de vanguarda, mas contribuir para dar condições para o inconsciente coletivo expressar sua autonomia e potência de auto-organização, a partir da proliferação e contaminação do tecido social pela revolta.[5]

De todo modo, acredito ser possível considerarmos que a problemática objetiva posta por Junho era como habitar a instabilidade e a inconsistência aberta sem matá-la. Ou seja, produzir formações coletivas capaz de darem o máximo de expressividade à instabilidade ingovernável (uma consistência na inconsistência), ampliando sua potência de diferenciação que eclodiu a luz do dia, com sua multiplicidade de componentes em relações muito variáveis e em variação. Em primeiro lugar, não quero dizer com isso que era necessário a criação de uma (ou mais) estrutura organizativa formal, um Partido ou algo nesse sentido. Mas sim que Junho colocou a criação de maneiras de estar junto e se comunicar na revolta, no acontecimento, não para atingir uma meta ou uma reivindicação, mas para saber aumentar a valência da potência de autonomia pela brecha que foi aberta, construindo maneiras de estar junto nela, para além das diferenças formais organizativas. Para isso, o acontecimento exige assumirmos a finitude das formas de organização pré-estabelecidas.[6] Em segundo lugar, não quero dizer – muito pelo contrário! – que era necessário que fosse assumida qualquer pretensão de vanguarda, de encarnar a função de “ponta” unificadora e organizadora do processo – uma pretensão messiânica de representar o todo e organizá-lo: Quem faria isso? Qual grupo (ou grupos) encarnaria(m) essa função, a partir da qual seria possível produzir representantes com o qual o governo poderia negociar a demanda ou o desejo representado da “massa”?

 Aqui, além disso, não se trata nem mesmo de pretender fornecer uma resposta ao “O que fazer?”, dado que é um problema que não pode ser respondido por nenhuma teoria organizativa, mas apenas na própria luta, que é, no fundo, problema da própria vida e dos mundos que queremos construir. Trata-se, portanto, apenas de indicar os índices das mutações abertas por Junho do ponto de vista da sociabilidade, da produção de formas de vínculos com força destituinte da ordem, onde se manifestaram e onde foram sufocados.

 Revoltas como a de Junho de 2013 não colocam meramente problemas em relação às constantes sociais e antropológicas: um transporte mais justo, uma saúde mais justa, uma sociedade menos desigual, um trabalho menos merda etc. Ou ainda, do ponto de vista organizativo: uma forma diferente – poderíamos dizer, “mais bem distribuída” – de vanguarda, de liderança, de representação etc.[7] Junho fez, ainda que momentaneamente, variar tudo isso que aparece como constantes insuperáveis, e em torno do qual se formam consensos, do que significa a sociabilidade e o fazer político, inclusive a ideia segunda a qual o que está em jogo é vencer e conquistar reivindicações.

Assim, do ponto de vista da luta, são todas estas funções – vanguarda, liderança, representação, direção etc. – que Junho de 2013, enquanto acontecimento e revolta, questionou radicalmente, havendo um processo coletivo que tendia à desmantelá-las e destituí-las não só como princípios reguladores, mas como funções existenciais de produção da experiência e prática política.[8] Isso não quer dizer que não havia direção em Junho. Como lembram Caio Martins e Leonardo Cordeiro, em Revolta popular: o limite da tática, escrito em 2014, essa direção efetivamente existiu, até certo ponto, e era almejada, segundo militantes do movimento, pelo próprio MPL (Movimento Passe Livre), não só de um ponto de vista narrativa sobre os acontecimentos, mas do ponto de vista de sua prática política, como parte de uma tática orientada para a conquista de reivindicações e que previa, em seu interior, a própria perda de controle e explosão de ações diretas.[9] Contudo, esta tática se deparava com um limite: a própria conquista da reivindicação. O que estou sugerindo é que aquilo que fez com que Junho ultrapassasse os limites dessa tática foi justamente o desinvestimento coletivo dessas funções rumo a um processo de radicalização da horizontalidade e de transgressão das inibição produzidas por relações de representação, identificação, demanda, centralização etc. [10]

Há assim uma tensão, que já foi observada: por um lado, havia uma tática que buscava a produção de uma perda do controle e explosividade, mas mantendo um polo organizado e capaz de dirigir a movimentação social, ainda que não no sentido de disciplinar, comandar, moldar etc., mas de conduzir, direcionar, dar coesão ao movimento etc., para a conquista de uma pauta determinada.[11] Por outro lado, foi produzido uma situação ou acontecimento por um grupo catalisador que ultrapassou um limiar de perda de controle que já não era recuperável por esse grupo. Isso ficou mais explícito a partir dos dias 18 e 19 de Junho, com protestos em São Paulo sendo realizados de maneira autônomo em relação ao MPL e tomando conta de diversas regiões do país.[12] Nesse momento, Junho expressa de maneira mais contundente o caráter não-numerável, imperceptível (não-representável) e não-localizável do devir produzido. Junho, assim, foi uma situação que escapou ao limite da tática do MPL. Tal limite, acredito, é o limite da própria macropolítica baseada na demanda e no reconhecimento de reivindicações, que se choca com a luta por autonomia e auto-organização.

Essa tensão acaba atravessando os próprios grupos que catalisaram a revolta: num primeiro momento, o MPL desempenhou um papel fundamental de catalisar e desencadear um devir, uma abertura que restitui as coletividades uma autonomia, uma capacidade de ressingularizar a existência coletiva e se auto-organizarem, transgredindo as leis da propriedade privada, os ditames do trabalho, o poder jurídico do aparelho de Estado etc. Quer dizer, de maneira massiva, foi possível ver a população botar fogo em carros, ônibus, depredarem e ocuparem prédios públicos, fecharem vias, saquearam, sem que sentissem culpa e, mais do que isso, sem que o medo de serem reprimidas fosse um fator inibidor! Não estamos falando, necessariamente, de parcelas da população que pertenciam às organizações formais (partidos, sindicatos, movimentos sociais). Mas sendo ou não-organizadas previamente à situação de revolta, o fato é que a situação possibilitou a expansão de novas formações coletiva na luta, bem como de subjetivação.

O problema, portanto, me parece, posto por Junho de 2013, não foi a emergência de uma luta coletiva e revoltosa por parte de uma maioria população não-organizada que entrou em tensão como uma minoria organizada[13], não foi também simplesmente a falta de trabalho de base, mas foi: como habitar a revolta? Como construir no devir, novas formas de conexão e composição coletiva capazes de dar uma expressão imanente à revolta? Pois, aliás, não adianta haver trabalho de base, organizações previamente existentes e locais, uma multiplicidade de grupelhos, se tais organizações não desejarem a revolta e não conseguirem multiplicar suas relações de composição. Aliás, é preciso considerar que a insurreição não esperará que todo o mundo se torne insurrecto (COMITÊ INVISÍVEL, 2017, p. 187).

 Um acontecimento como Junho exige também dos grupos políticos pré-existentes assumirem a própria finitude de suas formas de organização, metas, interesses e linhas políticas específicas, para criar outras formas de articulação e vinculo coletivo na revolta. Há assim uma tensão que passa, de outro modo, entre as formas pré-existente, específicas e inteligíveis de organização política, com seus esquemas representativos, suas práticas, metas e interesses, e um plano molecular de diferenciação coletiva, de devir que emerge na revolta, que coloca em dispersão tais organizações, no interior de um plano prático em constante variação, por natureza “não organizado” previamente, que é irrepresentável por elas, modificando as relações entre as organizações, e entre as organizações e as pessoas que não fazem parte delas – o que abala e modifica, por sua vez, a existência desses próprios grupos políticos.[14] Nessa situação, nada está garantido, independentemente da quantidade de organizações políticas previamente existentes. É a própria situação “que se impõe a cada um de seus componentes porque os excede, porque o conjunto das forças na presença é mais que cada um deles” (COMITÊ INVISÍVEL, 2017, p.187). Para além das organizações pré-existentes, a situação exige uma inteligência coletiva imanente a ela, que só pode se dar pelo meio, pelas relações de afeto, de composições corporais na revolta.

Num segundo momento, a abertura produzida por tais grupos políticos começou a se fechar quando, em parte (pois houve a repressão brutal do Estado), tais grupos começam, como nos fala Félix Guattari na ocasião de um evento semelhante em 1968, a tomarem “consciência da sua responsabilidade histórica”.[15] Há, assim, um recuo diante da transposição de um “muro” social que escapa ao controle. Muitos grupos de compunham Junho começaram a se fechar, buscando “retomar o controle” perdido da subjetividade política, portando-se como representantes oficiais das pautas do movimento, e portando-se como organizações de massa.

Nesse sentido, o limite de Junho de 2013 não foi o questionamento da representação, da vanguarda, da direção, da liderança, essa foi sua maior virtude, essa foi a vidência que Junho tornou possível em relação a uma nova maneira de experienciar a luta política. O problema não foi a falta de direção, mas o seu excesso para retomar o controle da situação, inscrevendo-a no esquema político e representativo da demanda, da conquista de reivindicações. Se tornou comum, depois de Junho de 2013, uma parte da esquerda e de intelectuais especialistas em organização, avaliar junho como possuindo uma carência ou falta de direção revolucionária. Nesse sentido concordo, até certo ponto, com o argumento de Caio Martins e Leonardo Cordeiro, segundo o qual o problema foi o contrário: Junho expressou uma potência de horizontalidade e de autonomia, mas que não conseguiu ganhar uma consistência maior, efetivada em novas de vínculos coletivos capazes de sustentar uma ingovernabilidade ativa. A meu ver, isso decorre, em parte, da busca dos grupos políticos de esquerda de preservarem a si mesmos, suas metas, interesses, demandas e programas na direção da revolta – quando não simplesmente de retirar-se dela. Ao invés de criar cada vez mais outras formas de vínculos e auto-organização na revolta. Isto é, de criar formas coletivas que expressassem a autonomia da revolta, em sua multiplicidade, formas coletivas e de auto-organizações laterais, horizontais.

II. Ruptura da causalidade sócio-histórica: o irrepresentável e ingovernável do ponto de vista do devir da História.

Se é verdade que Junho produziu uma ruptura do ponto de vista da subjetividade política, que se concretizou na realização de ações que antes pareceriam impossíveis, com grandes ações de rua, com barricadas, queima de ônibus, carros, saques de grandes lojas, destruição de bancos, expansão de táticas de autodefesa contra a violência policial, ocupação de prédios públicos etc., produzindo, na revolta, novas formas de ações coletivas que para muitas pessoas e grupos antes pareceriam impossíveis, é verdade que a sociedade também foi afetada por essa ruptura.

 Isso quer dizer que Junho marca uma ruptura que antecede a própria divisão entre o que seria uma realidade subjetiva (individual ou de grupo) e objetiva. Por essa razão, Junho, assim como outras revoltas populares, escapa a qualquer tentativa de esgotá-lo em explicações que visem expor as cadeias de causalidade sócio-históricas que produziria aquele acontecimento, pois há uma dimensão da ruptura com as cadeias de causalidade que é incomensurável, que excede as tentativas de converter a revolta num objeto completamente determinado, em objeto de psicologia, sociologia, ciência política, ou qualquer outro saber que se pretenda explicar Junho de 2013, seja por uma espécie de “sujeito histórico” unitário e intencional, na forma de uma tomada de consciência, seja pelas condições sócio-históricas, econômicas, políticas etc., que teriam produzido Junho. Denise Ferreira da Silva, em A Dívida Impagável faz algumas observações a respeito dos limites da justiça, a partir da análise de revoltas que se espalharam em Londres, entre 6 e 10 de agosto de 2011, após um protesto em Tottenham em resposta ao assassinato de Mark Duggan, morto pela polícia em 4 de agosto.  Diante de revoltas como essa, Denise recusa resolver tais revoltas na objetividade, a partir de uma operação de causalidade. Resolver tais revoltas nesses termos, significa: calcular, medir, classificar, de modo a evitar que elas aconteçam de novo, de explicar por quê e como aconteceram: foi o racismo? A luta de classe? A violência policial? Tentar propor soluções nesses termos é buscar produzir uma Justiça mais efetiva, capaz de conter mais eficazmente o que é incomensurável, a práxis que coloca em questão os próprios limites na justiça enquanto tal.[16] Acredito, nesse sentido, que Junho de 2013 manifestava muito mais que uma demanda por um transporte mais justo, mas foi uma práxis que colocou em questão os limites da justiça enquanto tal. Em resposta a essa dimensão incomensurável e ingovernável, foi mobilizado um processo amplo de criminalização, perseguição e aprimoramento dos aparatos de vigilância e antimotim.

 A reconstrução do acontecimento, convertendo-o em fato ou objetividade inscrita numa série de causalidade, só pode ser feita posteriormente ao acontecimento, e sob o peso da violência como um esforço da ordem social de reestabelecer a causalidade social, de reconstruir as cadeias quebradas, visando normalizar e pacificar as mudanças sociais, inscrevendo-as numa temporalidade linear na qual tudo se “ajeita”. Junho pode ter sido reprimido, traído, contrariado, recuperado, objeto de todo tipo de distorção, ilusão, besteira, desmoralização, mas de maneira nenhuma ultrapassado. A contínua tentativa de repressão e sufocamento dessa virtualidade ou potência de diferença social aberta[17],  fez com que Junho também se prologasse como que por sua ausência, por sua anulação ou tentativa de supressão. Essa característica de um acontecimento como Junho de 2013 é o que faz com que ele também não possa ser reduzido a um mero fato ou momento histórico, com limites espaço-temporais bem delimitados, mas que insista em suspensão, como um problema social e objetivo não resolvido, que o capitalismo é incapaz de resolver.



[1] De maneira resumida, a antipolítica é uma prática de luta que toma a própria vida como campo de batalha. Nesse sentido, a política da antipolítica é o conflito, a ação, o acontecimento que produz ruptura no curso regular do todo social, em contraposição a política como substância, como domínio particular da vida social. Sobre isso, ver COMITÊ INVISÍVEL, 2017, p.73-74 e BASH BACK, 2020, p.171.

[2] Perder o controle fazia parte também de uma tática que foi repetida diversas vezes até 2013. Vjea, por exemplo, o texto Revolta popular: o limite da tática, escrito por Caio Martins e Leonardo Cordeiro em 2014.  Disponível em: https://passapalavra.info/2014/05/95701/

[3] Um grupo-sujeito e analisador é aquele que produz uma ruptura subjetiva na qual a coletividade ou o inconsciente coletivo podem se expressar recuperando uma autonomia para além de leis aparentemente objetivas ou determinações extrínsecas por parte de outros grupos: seja o Estado, um partido, um sindicato etc. Se o MPL e outros grupos desempenharam esse papel, foi justamente por ter aberto a possibilidade de uma auto-organização no fora, no meio, para além das distinções formais e organizativas dos grupos, aceitando sua finitude e não se opondo ao seu fora e a multiplicidade de pessoas e outros grupos que o constitui. Ou seja, um grupo-analisador é aquele que produz a emergência de um não-sentido na História, a ruptura com as determinações exteriores, rumo a um para-além que é experenciado como “perda de controle” em relação a capacidade de autopreservação do grupo político. Sobre isso, ver GUATTARI, F., 2014, p.123..

[4] O dossiê 2013: as redes contam as ruas, elaborado pela Escola de Ativismo mostra bem desde Janeiro de 2013 havia uma multiplicidade de lutas e pautas coexistindo com a pauta contra o aumento das passagens: lutas contra a violência policial, contra a copa, em defesa da Aldeia Maracanã, contra as remoções etc. Talvez o comum delas seja a capacidade de inventividade, a experiência de autonomia e auto-organização popular, produzindo uma destituição gradual do consenso político estabelecido. O que, como irei sugerir adiante, exige considerar Junho de 2013 não como um bloco monolítico de devir, mas como um devir minoritário, dada a multiplicidade de devires que nele se conectaram.

[5] Toda questão para Guattari era: como pode um grupo, um inconsciente coletivo, tomar a palavra? (GUATTARI, 2014, p.123).

[6] Dito isso, não cabe cobrar nenhuma “responsabilidade histórica” do MPL mais do que de qualquer outro grupo político.

[7] O comum de todas essas visões, seja do ponto de vista econômico, político, organizativo, social, é assumir uma posição crítica meramente distributiva: mudar as formas de distribuição seja do poder econômico ou político, sem colocar em questão seus pressupostos produtivos, suas formas de produção.

[8] Estou aqui me servindo do conceito de “operadores” ou “funções existenciais”, tal como formulado por Félix Guattari, que catalisam processos existenciais e lhes fornecem consistência e persistência. Nesse sentido, a horizontalidade, a recusa da representação, a autonomia, o apartidarismo etc., são considerados aqui menos como princípios ideais ou r de eguladores, e mais como práticas sociais ou operadores existências que produzem formas distintas de vínculos e sociabilidade coletiva, seja num grupo específico, seja no interior de um motim. E é nesse sentido que considerado um campo de virtualidade de produção de possíveis, que não pré-existem a própria prática social. Sobre isso ver, GUATTARI, F. Heterogênese. In: Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo, Ed. 34, 1992, p.30-31.

[9] Considero que Junho foi de fato uma revolta, mas também algo mais do que isso. A dimensão de acontecimento de Junho e a transposição dos limites da revolta como tática no interior de uma estratégia mais ampla conduz a uma experiência espaço-temporal que embaralha as pretensões etapistas do processo de luta social, não se confundindo com os limites empíricos do emprego das táticas: produzir uma rebelião, converter a rebelião em insurreição e passar da insurreição a um processo revolucionário etc. Junho, de certo modo, mostrou o esgotamento dessa imaginação linearizada do processo de luta social.

[10] Após o aumento da tarifa ser revogado em diversas cidades e o objetivo ter sido alcançado, começa a ser cobrado cada vez mais um posicionamento do MPL. Ao mesmo tempo, a revolta continua a despeito da reivindicação específica. Ver o levantamento que reconstitui dia-a-dia o mês de Junho em 2013: as redes contam as ruas. Disponível em: https://escoladeativismo.org.br/2013asredescontamasruas/

[11] A esse respeito não é mera retórica, e nem um fato negligenciável, que o MPL ultrapassou as formas de organização já estabelecidas, baseando-se nos princípios da autonomia, horizontalidade e apartidarismo, com coletivos locais e federados, recusando organização central e submissão a determinação externas superiores. Sobre isso, ver MPL, Não começou em Salvador, não via terminar em São Paulo. In: Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013. É possível ainda remeter essa forma de luta, não tão nova assim, a diversos momentos históricos: a experiência de autogestão na Iugoslávia na década de 1950, o Partido dos Panteras Negras, o Motim de Stonewall, Maio de 1968, o Movimento Zapatista de 1970 etc. E seria possível regressar ainda mais na memória da luta des de baixo. Contudo, há não só uma singularidade histórica do gesto, mas situações outras que nos exige uma ressingularização de nossa atenção e escuta política.

[12] Uma cronologia rica sobre os eventos foi feita pelo Escolas de Ativismo e pode ser acessada aqui: https://escoladeativismo.org.br/2013asredescontamasruas/

[13] Essa leitura é, por exemplo, a de Caio Martins e Leonardo Cordeiro em A revolta popular: o limite da tática (2014).

[14] Nesse sentido, estou considerando Junho de 2013 como a instauração de um plano prático semelhante ao que Deleuze e Guattari chamara de plano de consistência: um plano de variação contínua.

[15] Para contextualizar, trata-se da análise que Félix Guattari faz de maio de 1968. Guattari nos lembra que na revolta de 1968 na França, o movimento 22 de Março – do qual ele fazia parte – desempenhou um papel importante da catalisação, em março de 1968, de um acontecimento que, em maio, havia escapado completamente ao seu controle e a de qualquer um que se pretendesse ser porta-voz ou representante do movimento. Tal papel se manifestou na contaminação de diversas camadas sociais por um processo de transgressão generalizada da lei da propriedade, do individualismo, da atenuação do medo da repressão, da destituição do legalismo generalizado nas organizações de esquerda etc. Havia, assim, um certo humor, uma certa ridicularização das figuras que se pretendiam a tomar essa posição, se reduzindo a um “simulacro de representatividade” sem poder real, bem como de toda autoridade (presidente, ministros, reitores, professores, burocratas de esquerda etc.). As coisas começam a ser recuperadas quando houve uma busca por uma mínima normalização produzida a partir da produção de representantes oficiais do movimento para negociar as reivindicações. Nesse momento, o 22 de Março que havia desempenhado um papel de catalisador fecha-se na forma de um “grupúsculo”, com sua interioridade, suas metas, interesses particulares etc. Comenta: “foi o abandono dessa técnica de subversão, uma perda de humor e uma retomada do controle da parte dos grupúsculos que marcaram o declínio do verdadeiro poder do 22 de março”, e ainda: “o próprio 22 de março se transformou num grupúsculo”. Ver GUATTARI, F. Excertos de discussões: fim de junho de 1968. In: Psicanálise e Transversalidade. São Paulo, Ideias e Letras, 2004, p.282-283).

[16] “Pensar os limites da justiça exige, portanto, um plano, um procedimento, mas um que não esteja comprometido com a resolução das condições que expõe numa medida mais efetiva, numa tabela, ou numa narrativa capaz de informar ações preemptivas ou mecanismos preventivos. Conhecer os limites da justiça é simultaneamente um conhecer e um fazer: é uma práxis que desestabiliza o que veio a ser, mas que não fornece um guia para o que ainda virá-a-ser.  Sobre isso, FERREIDA DA SILVA, D. A ser anunciado: uma práxis radical ou conhecer (n)os Limites da Justiça. In: A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019.

 p.53

[17] Me inspiro aqui na afirmação de Deleuze segunda a qual uma revolução é a potência social da diferença capaz de fazer a história bifurcar. DELEUZE, G. Diferença e Repetição. São Paulo: Terra e Paz, 2018, p.275

REFERÊNCIAS:

BASH BACK! Ultraviolência queer: antologia de ensaios. São Paulo: crocodilo; n-1 edições, 2020.

COMITÊ INVISÍVEL. Motim e Destituição Agora. São Paulo: n-1, 2017.

DELEUZE, G. Diferença e Repetição. São Paulo: Terra e Paz, 2018.
GUATTARI, F. Psicanálise e Transversalidade: ensaios de analise institucional. SP: Ideias e Letras, 2004

FERREIDA DA SILVA, D. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019.
MPL, Não começou em Salvador, não via terminar em São Paulo. In: Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013.

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