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27 jun 2023

JUNHO DE 2013: CRÍTICA DA REPRESENTAÇÃO, INTERNACIONALISMO E RUPTURA DA GOVERNABILIDADE COMO GUERRA SOCIAL NORMALIZADA. – PARTE 2

PARTE 2 – As Revoltas pós-2008: como isso vira fascista ou revolucionário? Junho de 2013 entre as revoltas mundiais

Por Agnes de Oliveira

Desde a crise de 2008, se sucedeu no mundo uma série de revoltas e motins – verdadeiros acontecimentos ou devires imperceptíveis e ilocalizáveis – que até hoje não se encerraram:

 Em 2011, Primavera árabe, Ocuppy Wall Street, Ocupação da Praça Taksim, M15 (Indignados). Junho de 2013 e as ocupações secundaristas em 2015, no Brasil. Em 2018, os coletes amarelos na França. Em 2019, as revoltas de Hong Kong, Equador, Peru, França, Chile. Em 2020, revolta nos Estados Unidos contra a violência policial, desencadeada a partir da morte de George Floyd, revoltas na Colômbia, Haiti, Peru, e diversas rebeliões em prisões de todo o mundo em decorrência da pandemia, que agravou as condições de saúde nos presídios (Brasil, Itália, Alemanha, Líbano, Tailândia, EUA, Espanha…). Em 2021, revolta na França contra a lei de segurança global, na Índia contra uma legislação que favorecia corporações do agronegócio, na Colômbia contra aumento dos impostos e reforma da saúde, no Sudão contra um golpe militar, na Tunísia contra o parlamento, em Cuba contra a escassez e crise econômica, na Nigéria contra a violência policial. Em 2022, no Cazaquistão contra o aumento do preço dos combustíveis, no Equador contra as políticas neoliberais e mineração predatória, no Sri Lanka em decorrência de uma crise da dívida, inflação e escassez de alimentos. Evidentemente, essa lista de longe dá conta do conjunto de revoltas que pululam pelo mundo.[1]

As explicações para as revoltas, motins e rupturas que acontecem e instauram novos ciclos de subjetivação política são variadas. Uma primeira explicação, em certo sentido clássica, seria associar as revoltas com as crises econômicas, que figuram como oportunidades para processos revolucionários: o ciclo de revoltas mundiais que se segue a partir de 2011 seria desencadeado como resposta à crise de 2008; as revoltas que se seguem a partir de 2018 seriam respostas a um novo ciclo de crise, que se acentuaria com a pandemia da covid-19. Ou ainda, pode-se argumentar que viveríamos numa mesma era de protestos que se iniciou a partir de 2008.[2] Em ambas as explicações, o fundamental é a crise econômica e a maneira como a crise, por sua vez, desencadeia uma crise política e uma perda cada vez maior da legitimidade dos governos. Outra explicação possível, seria remeter as revoltas não à economia e sua crise, mas a um primado da política (no sentido estrito da política representativa do Estado) e da perda de sua legitimidade: assim, Junho de 2013 seria explicado menos pela crise de 2008, do que pela perda de legitimidade política do governo e seus políticos. A crise da governabilidade tem como efeito a queda de ministros, presidentes, partidos e uma consequente reconfiguração do sistema representativo, seja por formação de novos partidos e novas eleições, seja por instauração de novas ditaduras ou elaboração de novas constituições.

Tanto a explicação econômica quanto a política encontram elementos empíricos pelos quais se justificam: revoltas desencadeadas pelo aumento dos preços dos alimentos, dos combustíveis, do transporte, do desemprego; ou revolta desencadeadas contra ditadores, reformas impopulares, decretos de leis mais repressivas, violência policial, fraude eleitoral, corrupção etc. Entretanto, por um lado, tais explicações secundarizam outros elementos ou fatores que podem desempenhar papeis igualmente importantes nas rupturas que conduzem às revoltas ou acontecimentos que bifurcam nossa História recente. A morte de George Floyd e a série de revoltas mundiais que desencadeou em vários países e continentes do mundo, colocando em questão a violência policial e o racismo do capitalismo, evidencia bem o problema. Trata-se de uma revolta antirracista que prolifera como um devir-minoritário ilocalizável, pois contamina todo campo social. Mas poderíamos aqui imaginar um conjunto de outras revoltas dessa natureza, que são devires desencadeados por práticas variáveis em tornos de pautas também variáveis. É que como, argumentam Deleuze e Guattari: “o que nos precipita num devir pode ser qualquer coisa, a mais inesperada, a mais insignificante” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p.93). 

Nesse sentido, ver as reivindicações em torno das relações econômicas ou políticas como mais gerais e as das minorias como “particulares” ou limitadas em seu alcance, é um compromisso político com formas hierárquicas de luta política. Como comentam Deleuze e Guattari:

Por modesta que seja uma reivindicação, ela apresenta sempre um ponto que a axiomática não pode suportar, quando as pessoas protestam para elas mesmas levantarem seus próprios problemas e determinar, ao menos, as condições particulares sob as quais aqueles podem receber uma solução mais geral (ater-se ao Particular como forma inovadora). Ficamos sempre estupefatos com a repetição da mesma história: a modéstia das reivindicações de minorias, no começo, ligada à impotência da axiomática para resolver o menor problema correspondente. (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p.187).

 O limite das explicações econômicas ou políticas não decorre somente do conteúdo que elas recortam, dos sujeitos políticos previamente estabelecidos e pretensamente universais que elegem (a Classe Trabalhadora ou o Povo) e do tipo de reivindicação que privilegiam. É muito evidente que as reivindicações das minorias sociais contra o racismo, o cispatriarcado, contra o etnocídio e o ecocídio, podem produzir rupturas e ultrapassar limiares que colocam problemas para os mecanismos de recuperação do capitalismo, que buscam converter ou traduzir, de maneira forçada, para os seus próprios termos os problemas qualitativos postos: um estatuto para as minorias, um ministério do meio ambiente, um ministério indígena, uma economia sustentável, uma secretaria LGBTQIA+ etc… Há ainda um outro limite de tais explicações, que é não apreenderem que as reivindicações são signo ou índices de um combate mais subterrâneo, que coexiste com as macropolíticas de demanda. É a essa diferenciação que Deleuze e Guattari remetem quando nos dizem que a luta em torno das demandas (pelo emprego, pelo aborto, pelo desencarceramento, pela autonomia de regiões) é tão mais importante quanto manifesta e cave ela mesma o desvio entre dois tipos de proposições: a do plano de organização do capital e a do fluxo que escapa dele, traça rotas de fuga para sair dele.

Dito em outros termos, é preciso escavar nas macropolíticas de reivindicações ou de demandas um movimento molecular, um movimento de devires-revolucionários que são, necessariamente, devires-minoritários que colocam em questão o capitalismo como forma de vida. Isso não significa dizer que a diferença entre política representativa e devires-revolucionários é apenas de “grau”, mas ver ali onde as políticas reivindicatórias nos lançam para um processo que vai além delas, para práticas e lutas políticas distintas.[3] Se as minorias são revolucionárias, não é em decorrência de sua força para se fazer integrada ou entrar no sistema majoritário. A esse respeito, Deleuze e Guattari não possuem qualquer ilusão que a solução para os problemas que as minorias colocam passe pela sua integração, transformação em subconjuntos ou conjuntos administráveis, pois o capital e o aparelho de Estado sempre produzirão suas minorias. As políticas de integração serão sempre um sistema de seleção de elementos integráveis e de extermínio dos não-integráveis. É tendo isso em vista, que os autores podem concluir que não há Estado viável para as minorias (Estado de mulheres, Estado de trabalhadores precários, indígenas, negros, trans-travestis…) pois é a própria forma-Estado e o capital que não convém à existência minoritária. A força revolucionária das minorias está, portanto, no devir pelo qual ela faz valer uma potência ou um conjunto não numerável, não integrável, governável ou administrável, colocando em variação o próprio sistema majoritário de representação, bem como a condição das minorias como subconjuntos desse sistema.

Mesmo que a tática das minorias passe pela reivindicação, o que as fazem revolucionária é trazerem “um movimento mais profundo que recoloca em questão a axiomática mundial”, um movimento que consiste não na integração, mas na saída do plano do capital. Nesse sentido, se as explicações econômicas e políticas são insuficientes, e se a alternativa geral-particular pela qual se busca medir a força revolucionária das reivindicações minoritárias é uma falsa alternativa, é porque o conflito fundamental que anima os devires revolucionários no capitalismo não se passa entre capital-trabalho e nem tem um conteúdo “econômico” como infraestrutura, mas se passa entre o plano de organização do capital e aquilo que foge ou saí dele. Do ponto de vista estritamente econômico, acrescentam os autores, a classe trabalhadora “não sai do plano do capital”, é uma parte do capital e constitui um conjunto majoritário, pelo qual as minorias são distinguidas como subconjuntos ou estados objetivos. Assim como não existe devir-homem, devir-majoritário, é preciso dizer que não existe “devir” trabalhador ou classe trabalhadora, pois o processo revolucionário não se faz em direção ao trabalho, que é um estado de dominação, mas no sentido inverso: quando se sai do plano do capital-trabalho.

Algumas reivindicações que se tornam palavras de ordem dos movimentos podem indicar com mais evidência esse outro movimento coexistente: a recusa pelo trabalho, a recusa pela assimilação, a abolição da polícia, a recusa da representação etc. Mas um outro índice empírico, que é apagado pelas explicações econômicas e políticas gerais, é a existência de uma multiplicidade de reivindicações, pautas e práticas no interior de uma mesma revolta. Só aparentemente a multiplicidade de pautas é um limite das revoltas contemporâneas, que, supostamente, deveria ser ultrapassado em direção à eleição de uma pauta única, de preferência mais “universal” e coerente a ser reivindicada para dar coesão ao movimento. Doutro modo, a multiplicidade é índice não só da multiplicidade constitutiva de todo devir-revolucionário, mas também do fato de no interior de tais acontecimentos ou rupturas sociais nenhum grupo político ou sujeito particular tem, por direito, a vocação de representar todo o movimento e exprimir a crítica de todas as formas de dominação.

 Retomemos Junho de 2013, no Brasil. O acontecimento que foi Junho de 2013, rompendo com o regime de causalidade sócio-histórica, é com frequência explicado a partir da luta contra o aumento do preço dos transportes, podendo inclusive ser inscrito numa série de causalidade histórica que remete às primeiras manifestações pelo transporte público nos anos 2000: a Revolta do Buzu em Salvador (2003) e as duas Revolta da Catraca em Florianópolis (2004 e 2005). Tais revoltas, segunda essa narrativa, vão se repetindo até conduzir uma perda do controle do processo.[4] Embora a situação de repressão policial às manifestações convocadas pelo MPL (Movimento Passe Livre) tenha também desempenhado um papel catalisador.[5]

 Contudo, instaurada a ruptura no inconsciente social, uma multiplicidade de pautas para além da pauta do transporte apareceram, bem como de práticas de protesto que se prolongaram mesmo após a queda do aumento da tarifa. Dentre elas, cabe destacar a ação do coletivo anarquista Coiote, no Rio de Janeiro, durante a terceira edição da Marcha das Vadias, que raramente figura como pertencente à constelação do que foi Junho de 2013, colocando na equação daquela ruptura a dissidência de gênero:

Diante da Força Nacional, de fiéis que participavam do evento da Jornada Mundial da Juventude e das polícias do movimento, duas pessoas encapuzadas e vestindo apenas tapa-sexos com adornos religiosos, destruíram imagens e objetos sacros. No final da ação, uma delas colocou uma camisinha nos restos quebrados de um crucifixo e enfiou no cu da outra pessoa. (BASH BACK, 2020, p.20)

 A multiplicidade de pautas, reivindicações e práticas apontam para uma outra característica dessas revoltas pós-2008: nelas coexistem pessoas, coletividades e códigos liberais, de esquerda, social-democratas, anarquistas e, às vezes, conservadores. Diante dessa realidade, se apresentam outros dois esquemas explicativos a respeito da multiplicidade de tais acontecimentos. O primeiro, e mais limitado, seria considerar que tais revoltas, na verdade, seriam de direita ou fascistas. Tal explicação pertence, frequentemente, à esquerda institucional que foi governo em diversos países durante os anos 2000 até, ao menos, 2015, perfazendo um ciclo “progressista” do neoliberalismo. No Brasil, por exemplo, se tornou comum explicar o impeachment da Dilma Roussef e a ascensão da extrema direita, culminando na eleição de Jair Bolsonaro, como resultado das revoltas de Junho de 2013, na qual figurava como uma das reivindicações a pauta da corrupção, mote da extrema-direita. Outra explicação, mais interessante, seria caracterizar tais revoltas por uma ambiguidade (a coexistência de forças reacionárias e progressistas) ou ainda pela confusão de uma multiplicidade de identidades como condição de possibilidades das revoltas atuais.[6] É assim que se busca, por exemplo, dar conta do fato que em tais revoltas não só se encontrem bandeiras nacionais, pessoas com discursos liberais ou conservadores, mas também, o que aparece para algumas explicações até mais surpreendente, bandeira de povos indígenas, ao invés das bandeiras vermelha e preta da esquerda, como foi o caso emblemático da revolta no Chile, em 2019. As revoltas, assim, seriam menos constituídas da coexistência de duas forças, do que por uma confusão de identidades políticas, culturais, raciais como limiar de transcendência, produzido por processos negativos ou de recusa (contra o racismo, o cispatriarcado, a polícia, as elites etc.). E, ainda nesse esquema explicativo das confusões de identidades, poderíamos reencontrar a matriz econômica: a multiplicidades das identidades e suas confusões como resultado da crise do capital e a consequente fragmentação da classe operária, que faz com que a multiplicidade de identidades e suas confusões sejam, inevitavelmente, o ponto de partida dos devires-revolucionários atuais.[7]

Subjacente a esses esquemas de explicação, a meu ver, há um esforço de dar conta do seguinte problema: como algo que aparece como revolucionário devém fascista ou reacionário? Do qual se deriva um outro: como as pessoas investem sua própria repressão? Nesse ponto seria importante justificar a evocação de Deleuze e Guattari a respeito das reivindicações das minorias e de sua força revolucionária. É que os autores retêm dois aspectos importantes do devir-revolucionário enquanto linha de fuga em relação ao plano de organização do capital (seja em sua face liberal ou burocrática). O primeiro é fazer incidir o problema fundamental de tais acontecimentos não no conteúdo das reivindicações e demandas, mas na diferença que está na gênese do conflito e em relação a qual as multiplicidades de reivindicações são índices, ou seja: a capacidade das pessoas que protestam levantarem seus próprios problemas e determinar as condições de sua resolução. Como veremos, essa capacidade está ligada a “autonomia”, uma figura do que Guattari havia conceitualizado como “grupo sujeito” e que caracteriza a natureza “ingovernável” das revoltas atuais. Tal diferença de conflito não é apenas analítica, mas diz respeito, como estamos vendo, a uma mudança teórico-prática do conflito com o capitalismo, que não se passa entre o capital-trabalho e sua contradição, mas “entre a axiomática e os fluxos que ela não consegue dominar” (DELEUZE; GUATTARI, p.185).

Em segundo lugar, os conflitos entre o capitalismo e os fluxos que ela não consegue dominar é sempre uma linha de fuga minoritária, um devir-minoritário. Daí que a explicação da multiplicidade constituinte dos acontecimentos, revoltas ou motins remetendo às ambiguidades ou confusões de identidades são insuficientes, na medida em apagam as minorias como termo medium da deterritorialização dos sistemas majoritários de dominação. No interior de um acontecimento, os termos ou conjuntos em relação não se equivalem e é preciso assinalar ali os termos desterritorializantes e os desterritorializados. É que os acontecimentos se fazem, inevitavelmente, em favor das minorias: “não existe devir majoritário, a maioria nunca é um devir. Só existe devir minoritário.” (DELEUZE; GUATTARI, 2011a, p.56). O que não significa dizer que as aberturas que os acontecimentos políticos produzem não possam se converter em desabamentos.

O devir-minoritário não se confunde apenas com as minorias como identidades e estados definidos objetivamente, mas abarcam também “germes, cristais de devir, que só valem enquanto detonadores de movimentos incontroláveis e de desterritorializações da média ou da maioria” (DELEUZE; GUATTARI, 2011a, p.56). O devir-minoritário, como condição imanente do devir-revolucionário, é, além disso, ilocalizável: afeta toda a existência coletiva e gera aliança imprevisíveis entre diversos grupos sociais. Se há uma “confusão”, não é de identidades, mas resultado de um processo de desterritorialização e descodificação realizado por devires-minoritários que colocam em variação a Norma ou constante social, bem como os conjuntos e subconjuntos sociais aí produzidos e organizados – mesmo que tais variações sejam, posteriormente, recuperadas pelo capitalismo e pelo aparelho de Estado.

Somado os dois aspectos – a autonomia pelas quais as minorias sociais colocam seus próprios problemas e o devir-minoritário imanente a diferenciação entre campo social capitalista e seus fluxos não dominados – temos a fórmula de Deleuze e Guattari: “o devir minoritário como figura universal da consciência é denominado autonomia” (DELEUZE; GUATTARI, 2011a, p.57).  Dado isso, como explicar que processos de devir-revolucionário e minoritários devenham fascistas? Como responder a tal problema sem recorrer a uma ambiguidade das forças progressista e reacionárias, e nem a uma “confusão” de identidades políticas, sociais, raciais etc.?

  É preciso remetermos à máquina de guerra do capital e a conversão que ela opera das linhas de fuga em linhas de morte e abolição, em nome da conjugação dos fluxos monetários e da força de trabalho cada vez mais descartável. Se as rupturas políticas, interrompendo a ordem existente, produzindo novas subjetivações imprevisíveis e criando novos possíveis, são também aberturas para a realização de novas conexões entre as linhas de fuga e a multiplicidades de devires-minoritários que atravessam o campo social, seu fechamento vem dos elementos de antiprodução do campo capitalista e da repressão que se abate sobre os devires-revolucionários e a sua capacidade de criar novos agenciamentos coletivos.

 Nesse sentido, entender a ascensão da extrema-direita no mundo e, em especial, na América Latina, demanda analisarmos a maneira como os governos e os diversos grupos políticos lidaram com as revoltas, pacificando-as e reprimindo seus elementos “selvagens” ou não controláveis, seja de “fora” ou de “dentro”. Por um lado, se como tentei mostrar, nossa situação atual é marcada pela constituição de máquinas de guerras que escapam cada vez mais ao aparelho de Estado, apesar de se servir dele como instrumento, e se é o desdobramento ininterrupto de tal máquina de guerra mundializada do capital em pleno regimes democráticos que explica, ao menos em parte, a ascensão da extrema-direita e, em particular, do bolsonarismo. Por outro lado, é preciso considerar a repressão e pacificação das revoltas como um segundo fator que permitiu, após momentos de intensa criação e inventividade política, uma intensificação das linhas de abolição social, bem como de suas subjetividades reacionárias ou glaciais, para retomarmos a expressão de Guattari.

 Tomemos o caso do Brasil, recortado por Junho de 2013 e sua continuidade até as ocupações secundaristas de 2015. Considerarei, assim, Junho de 2013, a jornada “Não vai ter copa” de 2014 (sendo que, no caso do Rio, ainda houve a marcante greve dos garis), e as ocupações secundaristas de 2015 como um mesmo bloco de devir, constituído de uma multiplicidade de devires minoritários em conexões: o que é patente não só pelas ações contrassexuais do coletivo Coiote que marcam Junho de 2013, mas também pela campanha “Cadê o Amarildo?”, pela campanha “Liberdade para Rafael Braga”, pela ocupação da Aldeia Maracanã, pela presença trans/feminista e antirracista das ocupações secundaristas, além das práticas generalizadas de democracia direta e as críticas, em ato, da representação política. É preciso, ainda, considerar que, em cada Estado, região e cidade, o acontecimento Junho de 2013 se desdobrou de maneiras distintas e conforme dinamismos espaços-temporais variáveis.

A pacificação de Junho de 2013 contou com um conjunto de medidas repressivas e de contrainsurgência preventiva, característica da máquina de guerra mundial do capital e a maneira como montou suas peças no Brasil, fazendo do acontecimento de 2013, bem como das outras rupturas imprevisíveis posteriores, avatares do inimigo interno da máquina de guerra permanente. O conjunto de tecnologias de controle e repressão – desenvolvidas, testadas e consumidas sobre a população negra, indígenas e periférica no Brasil, em anos de guerra contra as drogas e o crime – foi atualizado e reformado a partir de Junho de 2013, para dar conta de um fenômeno imprevisível, reinscrevê-lo no interior da causalidade normativa da História e impedir que se repetisse. Assim, o acontecimento junhista serviu como laboratório para o desenvolvimento, por parte dos governos e partidos de esquerda e de direita, de novas tecnologias de controle dos devires-revolucionários. O governo incrementou as redes de vigilância e monitoramento digital, importou técnicas policias de outros países, como caldeirão de Hamburgo e a “tropa de braço”; a polícia, por sua vez, passou a adotar uma técnica, que se tornou habitual, de contenção e repressão dos protestos logo no início de sua concentração; além de caçar e prender manifestantes (CAVA, 2016).

 Mas ainda seria preciso considerar, como constituindo um mesmo contínuo de antiprodução do desejo e de sua força revolucionária, o papel que algumas organizações partidárias e movimentos desempenharam no interior do próprio acontecimento com a finalidade de normalizá-lo. Trata-se, sobretudo, das organizações da esquerda institucional (PT, PSOL, CUT etc.) que inscreveram, no interior do acontecimento, disjunções exclusivas internas, produzindo segmentações pelas quais se distinguiam “manifestantes” pacíficos e ordeiros de uma minoria de “vândalos”, responsáveis por propagar o “caos”: os elementos não controláveis dentro de Junho de 2013 e sobre os quais a repressão direta se tornava legitimada.  A codificação dos fluxos não integráveis e controláveis na figura do “vândalo”, de minorias “violentas” e “autoritárias”, comumente encarnada nos “Black Blocs”, selou o consenso repressivo entre a esquerda e a direita.[8] Evidentemente, não é demais repetir, as dimensões “não-controláveis” do acontecimento não se referem, essencialmente, a nenhum indivíduo ou grupo específico e assinalável empiricamente – daí que as caçadas e as prisões eram, em larga medida, aleatórias – mas diz respeito a potência mesmo do acontecimento enquanto tal, enquanto constituindo uma linha de fuga ativa do campo social. A produção de separações e de identificações de indivíduos ou grupos no interior do acontecimento, entretanto, é a maneira pela qual o poder opera com a finalidade de separar tais acontecimentos de suas forças ativas, produzindo medo e moralização, disseminando formas de investimento paranoicas pelas quais o desejo volta a reinvestir as formações de poder autonomizadas e, consequentemente, sua própria repressão. Tal operação de pacificação e normalização incide sobre o próprio conjunto da força coletiva que havia se manifestado, transformando-o: conversão de uma potência coletiva ativa, irrepresentável e molecular, capaz de subordinar as formas macropolíticas do capitalismo e seu poder econômico, numa potência sujeitada aos grandes conjuntos da engenharia social e suas formas autonomizadas de relacionamento social. Não que não houvesse investimentos paranoicos ou reacionários, que seriam capturados e utilizados pela repressão, coexistindo no interior do acontecimento: pessoas ou grupos que, à esquerda e à direita, diante da transpassagem do muro e da “viagem” (no sentido deleuze-guattariane) que foi iniciada, recuassem horrorizados diante dos perigos, estando dispostos a estabelecer uma certa cumplicidade inconsciente com os mecanismos repressivos. Contudo, tais investimentos são subordinados no interior de uma linha de fuga ativa que os excede e os arrastam: não são eles que explicam a eclosão do acontecimento, a fuga ou devir social que ele produz, sua consistência ou duração espaço-temporal e muito menos (como se fosse por fatores endógenos) a parada forçada ou o desabamento que se abateu sobre o processo.[9]

Somado os dois mecanismos de pacificação e normalização, se compôs uma máquina de seleção repressiva das linhas de fuga que haviam quebrado a rede de causalidade social e histórica em 2013, propagando a “desordem”. Vimos, assim, tal máquina seletiva operar em dois níveis: no nível global da multidão a partir de tecnologias de controle e contrainsurgência preventiva, e no nível individual, buscando disciplinar e normalizar por dentro o devir-revolucionário que caracterizava Junho de 2013, não só identificando, caçando e prendendo manifestantes individualmente, mas também codificando e normalizando suas performances políticas conforme coordenadas referenciais prévias e produtoras de sentido disseminadas pela esquerda institucional e grupelhos variáveis. Tratava-se, assim, de selecionar e deixar passar os fluxos integráveis e bloquear os não-integráveis, separando o inconsciente coletivo de Junho de seu próprio poder e capacidade de criação. Uma maneira forçada, em suma, de restabelecer a rede de causalidade normativa interrompida e garantir que as formas de poder e sociabilidade social continuassem a ser investidas e assentadas sobre o desejo, como verdadeiros “complexos”.

Não demorou, nesse sentido, que começasse a surgir as narrativas lineares, à esquerda e à direita, para fornecer ao acontecimento de 2013 não só suas razões e causas (econômicas, políticas, ideológicas etc.), mas para representa-lo, reinscrevê-lo e arrumar um lugar na série de catástrofes que foram sendo acumuladas posteriormente: Junho de 2013 como causa da crise política e econômica, como o ovo da serpente que chocou a grande regressão brasileira, culminando no impeachment da Dilma e na eleição de Bolsonaro. Tais narrativas, assim, vieram selar não só o encerramento e a efetivação da força intempestiva de Junho na História, mas também fornecer-lhe uma Memória capaz de ordenar e centralizar as “lembranças” conforme o sistema majoritário em processo de reterritorialização: “o devir é uma antimemória”; “a lembrança tem sempre uma função de reterritorialização” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p.96)

A grande operação de seleção dos fluxos de desejo em defesa da sociedade – que estava sendo questionada por um desinvestimento imprevisto do desejo em relação ao campo social – teve como efeito a conversão das linhas de fuga ativa e criativas que tomou corpo e consistência em 2013, abrindo uma breve brecha na qual novos possíveis existenciais podiam ser criados, em investimentos reacionários ou paranoicos da forma de poder social, disseminando instinto de morte. Os agenciamentos coletivos de direita e extrema-direita que, apesar de já existirem, se alavancaram e se multiplicaram após Junho de 2013, serviram de neoterritorialidades para potências do desejo que foram tamponadas pela repressão e separadas de suas forças criativas. No mesmo passo que as linhas de fugas não-integráveis foram brutalmente reprimidas e bloqueadas, os fluxos sujeitados do desejo passaram e puderam investir formações coletivas ainda mais repressoras, responsáveis por codificar as formas de relações sociais em crise segundo valores pelos quais a ordem social busca de imortalizar: Deus, a Nação, o Trabalho, a Raça, o Sexo, em defesa da sociedade e contra toda a escória a ser limpada – incluída aí a própria esquerda establishment, que conduziu as operações anti-junho e se viu diante de uma crise incapaz de fornecer verdadeiras soluções. Dito em outros termos, no exato momento que parcelas da população haviam experenciado o intolerável e visto a possibilidade de se fazer outra coisa, no exato momento em que algo no inconsciente coletivo permitiu transpor o muro da formação de poder social, o poder tratou de reatar o vínculo com as formas de sociabilidade, disseminando novos processos de “superegotização” e identificação (políticas, raciais, nacionais, sexuais, de classe etc.), fechando qualquer alternativa que não fosse agarrar-se sacrificialmente à própria formação de soberania do dinheiro, e isso nas suas formas mais extremas e suicidárias.

Com efeito, as operações anti-junho realizadas pela máquina de guerra em nome da garantia da lei e da ordem[10], junto com a guerra que coloca cidadãos de bem e trabalhadores contra os “bandidos” nas periferias, formaram uma engenharia social produtora de uma posição do desejo paranoica ou reacionária, fornecendo a economia libidinal que sustentou o crescimento da extrema-direita e a adesão a suas figuras políticas. Ainda estamos às voltas com aquilo que Deleuze e Guattari haviam observado a respeito da não coincidência entre desejo e interesse. Pois cabe reforçar, estou apontando para um amor desinteressado e partilhado à esquerda e à direita, a despeito das diferenças de interesse e dos tipos de agenciamentos ou grupos políticos que formam, pela natureza mortuária do capital e sua máquina de guerra:

Do ponto de vista do investimento libidinal, nota-se bem que há pouca diferença entre um reformista, um fascista, às vezes até certos revolucionários, que só se distinguem de maneira pré-consciente, mas cujos investimentos inconscientes são do mesmo tipo, mesmo quando não esposam o mesmo corpo (DELEUZE; GUATTARI, 2011b, p.483).

Em 2014, tais operações repressivas continuam, sobretudo, para garantir a efetivação do megaevento da Copa do Mundo diante das forças recalcitrantes de “contra-efetuação” social que havia se conectando e ressoado em 2013. E, em 2015, diante da explosão das ocupações secundaristas pelo país, as mesmas tecnologias postas em funcionamento em 2013 e 2014, foram atualizadas contra as ocupações generalizadas como novo inimigo interno. Incluído no rol das técnicas de exceção e de terror da pacificação não só as prisões, as táticas anti-motins e desocupações forçadas, mas também as ameaças pessoais constantes por parte de diretorias das escolas e de policiais.[11]

 As ocupações secundaristas não deixaram de ter a forma também de um acontecimento: irrompem de maneira imprevista (o que não quer dizer que foi meramente espontâneo, dado as atuações coletivas no sentido de “limar” e “minar” o muro do poder social até produzir uma transpassagem), e imprevisto também é o sujeito político que se constitui nesse acontecimento. Mesmo que o coletivo “O Mal Educado” tenha desempenhado um papel catalisador na ruptura subjetiva que se seguiu, o acontecimento era imprevisível, saindo do controle e transbordando qualquer grupo político que pretendesse dirigi-lo (CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016, p. 207) Assim como em Junho de 2013, o desafio das ocupações não era constituir um grupo capaz de dirigir e recuperar o controle do processo, fornecendo-lhe uma “consciência”, mas de criar agenciamentos coletivos imanentes que aumentassem a valência da fuga em curso, que duplicasse a potência da perda de controle, formando um plano de consistência, que poderia ser também dito de inconsistência.[12] Tudo se passa como a diferença que Deleuze e Guattari estabelecem entre o esquizo e revolucionário: o último faz fugir aquilo que foge, afirma a fuga como quem duplica sua potência, apodera-se formalmente de sua força. Foi esse papel que as práticas horizontais e autônomas de ocupação das escolas tentaram desempenhar, multiplicando as ocupações e os atos. Após as ocupações, ninguém tocado por esse acontecimento saiu o mesmo, dada a transformação nas modalidades de subjetivação política (CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016, p.167).

  Se a forma do acontecimento que os devires-revolucionários implicam subjetivações imprevistas, constituindo de sujeitos políticos que não podem ser previamente assinaláveis – seja conforme a posição no interior do modo de produção, seja conforme uma bipolaridade de classe ou evocando a soberania de um sujeito homogêneo constituinte – é na medida em que todo acontecimento envolve uma ruptura nos modos de subjetivação capaz de produzir uma catálise no campo social e uma prática de ressingularização das formas de existência coletiva. A catalização de um acontecimento e de um novo processo de subjetivação, entretanto, não tem a forma de uma transmissão sobre um espaço extensivo e nem de uma tomada de consciência: sua propagação é intensiva, conforme a velocidade dos afetos, que torna incompreensível e imperceptível a velocidade com que uma ruptura se propaga ou se prolifera no campo social. A ruptura subjetiva, nesse sentido, é autorreferente, produz uma endoreferência, seu próprio plano de consistência pelo qual afirma e assume sua ruptura, desarticulando as coordenadas referenciais pré-existentes no campo social, bem como os conjuntos e subconjuntos sociais nos quais as pessoas são subjetivadas e que tais coordenadas permitem constatar objetivamente. No caso das ocupações secundaristas, é preciso dizer que as e os estudantes entraram num verdadeiro devir que não pode ser atribuído, enquanto predicado, aos estudantes como conjunto social assinalável objetivamente, mas como um processo de desterritorialização do próprio campo social, que teve como marco uma ruptura subjetiva dos estudantes que colocou em questão a sua própria constituição como subconjunto social. Tal ruptura, assim, assinala que algo aconteceu.[13]

A repressão das ocupações e da ruptura subjetiva produzida, por sua vez, teve como saldo a ampliação da militarização das escolas e o fortalecimento das subjetivações glaciais e reacionárias que iam ganhando cada vez mais espaço desde Junho de 2013, preparando um “bolsonarismo” molecular de Escola, constituído em torno de palavras de ordem como “Escola sem partido” e “Ideologia de gênero”. Com isso, não se trata de dizer que, diante do suposto progresso interrompido por Junho de 2013, se seguiu uma “onda reacionária” e a ascensão da extrema direita. De maneira distinta, trata-se de dizer que a máquina de guerra em pleno funcionamento contínuo, desde ao menos a década de 90, somada ao papel de antiprodução desempenhado pelo consenso repressivo entre partidos de esquerda e direita (bem como por suas correias de transmissão) em relação ao acontecimento de Junho de 2013 e seus desdobramentos, possibilitaram o fortalecimento de formações coletivas assentadas cada vez mais uma potência de destruição e abolição, cuja força apenas se intensificou com as repressões sucessivas das brechas que foram abertas para a criação de algo novo. Em suma, um fenômeno de cumplicidade inconsciente e de paixão desinteressada com as formas de repressão social as mais mortíferas, indiferente às metas pré-conscientes progressistas ou conservadoras.

Primeira parte: https://quilomboinvisivel.com/2023/06/23/junho-de-2013-critica-da-representacao-internacionalismo-e-ruptura-da-governabilidade-como-guerra-social-normalizada-parte-1/


[1] Para um levantamento e análise de algumas dessas revoltas pós 2008, ver: LAZZARATO, 2019, p.11. Para um levantamento das rebeliões nos sistemas carcerários em 2020, ver Como a pandemia colocou o encarceramento em massa em questão. In: blog Quilombo Invisível. Disponível em: https://quilomboinvisivel.com/2020/04/07/como-a-pandemia-colocou-o-encarceramento-em-massa-em-questao/ (Acesso 25/07/2022). E A maior onde de revoltas populares da história da humanidade, em: https://passapalavra.info/2022/05/143727/ (Acesso 27/06/2023).

[2] Para exemplos desse tipo de explicação, ver o texto Avante Bárbaros, publicado originalmente no site End Notes e traduzido parcialmente no blog Quilombo Invisível. Disponível em: https://endnotes.org.uk/posts/endnotes-onward-barbarians (Acesso em 27/06/2023).

[3] Nesse sentido, me distancio das análises de Rodrigo Nunes que reduz a diferença entre política representativa e não-representativa a uma diferença de grau. Apesar de não haver uma diferença de natureza, do ponto de vista ontológico e imanente, acredito que há uma diferença de regime, de subordinação e seleção. Sobre isso ver o texto do Rodrigo Nunes: https://www.revistaserrote.com.br/2016/11/anonimo-vanguarda-imperceptivel-por-rodrigo-nunes/

[4] Essa narrativa está presente no texto do MPL: Não começou em Salvador, não terminar em São Paulo. In: Cidades Rebeldes. Op. cit.

[5] A luta contra o aumento do transporte, para boa parte da esquerda, parecia ter uma tendência própria de se converter em revolta, dada sua inscrição no interior dos circuitos de circulação, atravessando toda vida da cidade. Apesar desse local privilegiado da produção da revolta ter sido, em 2015, questionado pelas Ocupações Secundaristas, a luta dos entregadores, em 2020, parece ter ocupado esse lugar no imaginário político que atribui um papel estratégico e privilegiado a circulação para a produção de revoltas populares.

[6] Faço remissão aqui, novamente, ao artigo Avante Bárbaros (Onward Barbarians). Disponível em: https://endnotes.org.uk/posts/endnotes-onward-barbarians (Acesso em 27/06/2023).

[7] A fragilidade da explicação da “confusão de identidades”, característica dos atuais devires-revolucionários, a partir da fragmentação do capitalismo contemporâneo poderia ser assim exposta: sem dúvidas, a dissolução e colapso, no capitalismo, das unidades e abstrações como Aparelho de Estado e Trabalho, bem como a decomposição dos corpos coletivos e órgãos que foram criados como formas de regulação de tais formas de relações sociais, como os sindicatos e Partidos da Classe, conduz a uma fragmentação. Mas isso é na exata medida em que tais unidades, com seus processos práticos de unificação, sempre implicaram a separação e a diferença (sexual, racial, nacional), sobre as quais agiram e pelas quais se estruturaram. Em outros termos, a multiplicidade de identidades não é um mero efeito da crise do capitalismo, mas sempre foi o pressuposto de seu próprio funcionamento que não se faz sem a produção de um modo de vida majoritário enquanto estado de dominação, produzindo seus efeitos sobre as minorias sociais resultantes.

[8] Lembremos que a produção do consenso contou não só com representantes políticos, mas também envolveu a mobilização, inclusive, de intelectuais na construção da figura dos “black bloccs” como “minorias autoritárias”, inimigas da pacificação: “Se o objetivo dos “black blocs” não era o fim da política da pacificação, o efeito terá sido esse. Acabou o sossego nas favelas ocupadas pelas UPPs”. ZALUAR, A. Táticas fora do lugar. In: Instituto Humanitas Unisinos, 2013. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/171-noticias-2013/525597-taticas-fora-de-lugar (Acesso: 27/06/2023). Ou ainda o caso da Marilena Chauí, que chegou a argumentar situar os Blacks Blocs como fascistas. “Black Blocs” agem com inspiração fascista, diz filósofa a PMs do Rio. Folha de São Paulo, Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: https://m.folha.uol.com.br/poder/2013/08/1332434-black-blocs-agem-com-inspiracao-fascista-diz-filosofa-a-pms-do-rio.shtml  (Acesso: 27/06/2023).

[9] Por isso, seguindo Deleuze e Guattari, prefiro pensar os acontecimentos como Junho de 2013 na chave da “reversão” das formações de potência: momentos nos quais as formações macropolíticas são subordinadas aos processos moleculares de devir-revolucionário e minoritário, ao invés de subordiná-los. As análises que focam nas ambiguidades (a coexistência forças “progressistas” e “reacionárias”, numa espécie de “bissexualidade” política) e na diversidade das identidades que compõe um acontecimento, perdem de vista a consideração da potência coletiva que, ao se afirmar a partir da produção de uma diferenciação ou variação no plano social, é constituída por uma multiplicidade que não é um mero agregado de identidades que se confundem ou uma mera “diversidade”, mas uma multiplicidade substantiva que transpassa todos elementos existenciais ressingularizados no interior de um acontecimento. Assim, considerar a potência do acontecimento enquanto tal é considerar o próprio devir que ele desencadeia como o “sujeito” imanente do processo, nos quais os agenciamentos coletivos são estabelecidos e criados.

[10] Sobre a montagem das Operações de Garantia da Lei e da Ordem anti-junho, ver o documentário Operações de Garantia da Lei e da Ordem (2017) de Júlia Murat e Miguel Ramos, disponível em: https://vimeo.com/226910664 (Acesso em: 27/06/2023).

[11] Cf. DALAPOLA, K.; SALVADORI, F. Secundarista denuncia perseguição e tortura por policias e seguranças. In: Ponte Jornalismo, São Paulo. Disponível em: https://ponte.org/secundarista-perseguido/ (Acesso: 27/06/2023.

[12] Assim como Deleuze e Guattari diziam que “o plano de consistência poderia ser nomeado de não-consistência”, sem ter nenhuma dimensão suplementar, extrínseca ao que se passa nele (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p.58). O plano de consistência permite novas conexões possíveis entre aquilo que nele passa, num movimento de proliferação ou contágio segundo relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão variáveis, que não são extensivos ou da ordem da extensão, mas intensivos e da ordem dos afetos, da capacidade de afetar e ser afetado, permitindo uma comunicação e composição de novos agenciamentos coletivos, novos arranjos corporais e incorporais que produzem individuações que não é da de um “sujeito” ou “objeto”, mas de uma hecceidade: a composição de heterogeneidades enquanto heterogeneidades. As ocupações secundaristas, bem como os acontecimentos que daqui nos ocupamos, são verdadeiras hecceidades: é impossível considerar as ocupações sem a hora que elas acontecem, as circunstâncias, o meio, o conjunto de elementos heterogêneos que ela mobiliza e o devir que desencadeia – tanto do ponto de vista das subjetividades sociais quanto do ponto de vista dos processos de institucionalização.”

[13] “Esse tipo de ruptura será caracterizado não apenas porque é ruptura, mas porque é ruptura assumida, porque é dobra ao enésimo grau, é dobra de dobra; é uma afirmação da ruptura como tal, não é simples constatação da marginalidade, de uma referência, portanto, para as pessoas que buscam sua identidade coletiva mais ou menos independente, mas é que ela se afirma como algo que se põe fora dos jogos habituais da fabricação de sentido e da fabricação dos sistemas de referência e das relações de forças”. (CURSOS DE VINCENNES, 13/05/1986)

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