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11 jul 2023

JUNHO DE 2013: CRÍTICA DA REPRESENTAÇÃO, INTERNACIONALISMO E RUPTURA DA GOVERNABILIDADE COMO GUERRA SOCIAL NORMALIZADA. – PARTE 3

PARTE 3 – Junho de 2013 e a Máquina de Guerra Autonomizada do Capital

Por Agnes de Oliveira

O capítulo brasileiro da Máquina de Guerra Mundial

Treinamento do exército para matar pobre / Modelo Camboja, mas é o Haiti / É o Vietnã que está por aqui / Nessas favelas que estão por aí. PAC – Processo de Aceleração de Chacinas – Anarco Funk, 2013

A Copa do Mundo, aqui no Brasil / Domina a bola na ponta do fuzil /Máquina da guerra pacifica a favela / Mata preto, pobre sufocando sua goela / expulsa os índios vão roubando suas terras / constrói o estádio aonde o capital prospera / aumenta o lucro vai crescendo a miséria / contra a copa fascista nós declaramos a guerra / a copa mata, a copa mata. A Copa Mata/Copyfight – Anarco Funk, 2014.

Dar conta do capítulo brasileiro da história de formação de uma máquina de guerra mundial e automatizada do capital – expressão mesma da potência de guerra ou de abolição que o capitalismo produz na tendência histórica de sua acumulação ilimitada de dinheiro – demandaria de nós retomarmos à ditadura civil-militar-empresarial de 1964. Essa é ao mesmo tempo o último suspiro do desenvolvimentismo brasileiro, a antessala do que se convencionou chamar de neoliberalismo, como expressão da reconfiguração mundial do capitalismo e da ficcionalização do capital que lhe corresponde, e a preparação dos dispositivos do nosso atual Estado Penal e da máquina de guerra securitária do qual ele é uma peça ao lado de outras, como as milícias e facções.[1] Além disso, o nosso capítulo brasileiro se situa no polo Norte-Sul dos conflitos da máquina de guerra mundial, ali onde se realizam as guerras locais e securitárias de contra-guerrilha e insurgência.[2] Não pretendo reconstituir o processo histórico da ditadura– e nem teria tal capacidade – mas apenas indicar hipóteses de análise de nossa época, desde o ponto de vista do Brasil.

Como ia dizendo, a ditadura militar brasileira – influenciada pela Doutrina de Segurança Nacional estadunidense e pela doutrina de guerre révolucionnaire francesa formada no contexto da independência da Indochina e da Argélia – se inscreve como uma peça da máquina de guerra mundial do pós-guerra, pela qual o capital realiza, diretamente, o ordenamento do mundo.[3] O caráter de contrarrevolução preventiva do golpe de 64 se assenta na guerra securitária que tomou conta do horizonte do mundo e também das cabeças dos militares, que viam o Brasil como inserido no quadro de uma guerra revolucionária mundial. Cabe reforçarmos: a potência de guerra ou o fluxo de guerra ilimitada e automatizada na forma de uma máquina mundial, que o capitalismo constituiu conforme suas próprias exigências tautológicas de acumulação, tem como correlato a produção de um estado de insegurança molecular permanente a ser gerido por tecnologias de controle, fazendo da própria Paz e ordem mundial o objeto da guerra de contra-revolução permanente, independentemente de haver ou não revolução. Lembremos, nesse sentido, que a noção de “Segurança” presente na Doutrina de Segurança Nacional não se restringia apenas ao campo da defesa militar, mas envolvia todo o conjunto da sociedade civil, diante de uma situação de insegurança e guerra permanente (guerra fria) e de um inimigo interno disforme: o desenvolvimento econômico, a “questão social”, a produção cultural, a informação, a dimensão psicossocial, em suma, uma militarização da vida social. O inimigo a ser combatido, assim, podia ser uma pessoa envolvida na guerrilha (que se estabelece, cabe lembrar, após o golpe), alguém acusado de subversão política, uma comunidade indígena ou uma travesti definida como inimiga moral e da saúde pública.[4] O desenvolvimento econômico (leia-se: acumulação de capital) – tanto quanto a saúde pública, a informação, a cultura – portanto, era visto como parte integrante da segurança nacional, daí o binômio segurança e desenvolvimento que tornou a acumulação monetária numa guerra materializada permanente contra um inimigo interno disperso. Com efeito, a ditadura militar – inscrevendo-se, enquanto peça, no interior de uma máquina de guerra mundial permanente – efetiva uma guerra que escapa e se apropria do próprio aparelho de Estado, desfazendo as distinções entre militar e civil, tempo de paz e tempo de guerra, e que se torna responsável pelo ordenamento do campo social a partir da organização e distribuição da (in)segurança permanente convertida, imediatamente, num grande negócio e produto a ser vendido em massa, mobilizando muitos recursos e postos de trabalho.

Não só as peças da máquina de guerra formada na ditadura permanecerão na redemocratização, mas também a orientação securitária do Estado e de suas funções contra um inimigo disforme irá se intensificar e se expandir, se efetivando em um complexo industrial-financeiro-prisional-militar-político, alimentando o investimento do capital e sua materialização em novos dispositivos de vigilância, sistemas de informações, prisões, armamentos etc. responsáveis por fazer a gestão dos pequenos medos e o ordenamento do campo social, de seus territórios urbanos ou não. Como consequência, no seio do próprio regime democrático, a indistinção entre esfera civil e militar irá se embaralhar cada vez mais a partir de uma policialização das forças militares e de militarização da polícia.

Desde a década de 90, como consequência da orientação securitária do Estado, mas agora num contexto de mundialização imediata da economia, de endividamento generalizado da sociedade, de ficcionalização da riqueza monetária, de crise estrutural do trabalho e de sua precarização aprofundada[5], se observa não só um aumento explosivo do encarceramento em massa, mas também do número e taxa de homicídio no Brasil.[6]Também as mortes (registradas) causadas pelas forças policiais aumentam desde os anos 2000.[7] O perfil das vítimas de homicídio e de violência policial no Brasil coincide com o perfil das pessoas encarceradas: sobretudo homens, jovens e negros. O uso de armas de fogo figura como o meio mais utilizado na produção de mortes. Além disso, as mortes causadas pelas armas de fogo continuam a crescer nas últimas décadas, acompanhadas do aumento de sua produção, distribuição e consumo legal e ilegal. Assim, no Brasil, com a flexibilização da distribuição de armas de fogo em 2020, a partir da modificação de mais de 30 decretos, portarias e projetos de leis, se assistiu não só um aumento do número de armas de fogo circulando socialmente na mão de civis, mas também seu consumo, produzindo mortes.

Os dados alarmantes sobre homicídios e violência armada, no Brasil pós-ditadura, revelam algo que o Relatório sobre o Peso Mundial da Violência Armada (2008) já havia chamado a atenção: em quatro anos (2008 a 2011), 205.005 pessoas foram vítimas de homicídio no Brasil, um número superior aos 12 maiores conflitos armados do mundo acontecidos entre 2004 e 2007, que somados vitimaram 169.574 pessoas. Na verdade, os dados do Brasil se aproximavam inclusive do total de mortes causadas pelos 62 conflitos armados no mundo, no mesmo período: 208.349. No Brasil, assim, acontece cerca de um Carandiru a cada 19 horas. E a taxa de mortes diretas em nada deve às dimensões continentais do Brasil: o Brasil tem uma população que equivale a 2,7% dos habitantes do mundo, mas responde por 20,5% dos homicídios ocorridos no mundo em 2020 (ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2022, p. 30)

Tal situação não seria possível sem o papel do Estado ou, mais precisamente, sem uma reconfiguração do papel do Estado, no interior da dinâmica da acumulação do capital indissociável de uma máquina de guerra autonomizada e ilimitada, como estamos vendo. A partir da década de 1990, ao mesmo passo que o tímido setor social do Estado foi sendo precarizado com cortes de gastos e privatização de seus serviços, num contexto de desemprego estrutural e de trabalho sem forma, o Estado brasileiro passou a aumentar ainda mais seu investimento no setor de Segurança Pública, reforçando a segurança – o objeto da guerra permanente do capital em estado securitário, cabe lembrarmos – como eixo central em torno dos quais as políticas públicas e as tecnologias de gestão social passam a operar. Indo de 54bi em 2002 para 85,5 bi em 2017, chegando em 2021 aos 105 bilhões, o aumento do investimento no setor de segurança se materializou na ampliação do número de prisões, de policiais militares, federais e civis, cada vez mais equipados com armas, bombas, tecnologias de segurança e controle social de última geração – expressões mesma da potência da guerra e do seu continuum.[8] O que tal apropriação do Aparelho de Estado por uma potência de guerra autonomizada significa parecemos ainda não entender. À primeira vista, tal fenômeno, dada o aumento bélico das forças militares e das tecnologias de controle, pode parecer um reforço do poder do Estado, de sua força de centralização e totalização, rumo à formação de um Estado totalitário onipresente. A partir de 2018, tal impressão ganhou força, orientando as análises sobre a expansão da extrema direita no Brasil e evocando o golpe de 64 como uma matriz de inteligibilidade sobre os acontecimentos presentes.

Contudo, paradoxalmente, no Brasil – mas não só, dado que estamos falando de uma economia-mundo e de sua máquina de guerra igualmente globalizada – a expansão das milícias, a privatização do monopólio da violência e dos aparatos de vigilância, bem como a ampliação da circulação de armas entre civis, nos parecem índices de um movimento distinto. Tal movimento se define menos pela formação de um Estado totalitário do que pela multiplicação das máquinas de guerras como sintoma de um corpo social canceroso, maquinado por uma potência de guerra suicidária. Trata-se, assim, de um movimento centrífugo em relação à centralização do Estado, que reforça a reprodução de uma máquina de guerra do capital que escapa por todos os lados, arrastando o próprio Estado, que é reduzido cada vez mais a uma peça oponível entre outras (sendo as milícias e as facções outras peças).[9] Quer dizer, a privatização não afeta e enfraquece somente as funções sociais do Estado (saúde, educação, previdência etc.), mas também seu setor de segurança. Isso é um dado novo de nossa situação em relação àquela de Deleuze e Guattari, que apreenderam apenas o início de um processo da axiomática capitalista que, em decorrência de sua composição orgânica, estava descartando cada vez mais o trabalho humano, ao mesmo passo que o precarizava e o tornava “flutuante”, numa economia cada vez mais informal.

 Atualmente, não só o setor de segurança privada com seus agentes ultrapassa em muito o setor público, mas cerca da metade do setor de segurança privado existente escapa de qualquer controle atual por parte do aparelho de Estado (ANUÁRIO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2022, p). É preciso observarmos que a expansão do setor de segurança – num contexto de esfacelamento das formas clássicas de mediação e regulação dos conflitos sociais (nas quais vem se somar os sindicatos e partidos oriundos do movimento operário) – transformando a questão social numa questão de guerra, se dá no interior dos quadros das políticas de austeridades e da racionalidade neoliberal.[10] Em outros termos, trata-se de dizer que o próprio trabalho sujo dos agentes de segurança vai, assim, se dando num contexto de miséria e incerteza crescente, que não só fornece e reforça a base afetiva que legitima a produção e expansão das tecnologias de gestão dos “pequenos medos” e de combate aos múltiplos “inimigos internos” produzidos, mas também fornece as condições sociais e econômicas para expansão das milícias como máquinas de guerra encarregadas do ordenamento social. Os agentes de segurança, buscando “bicos” e outras formas de complementar sua renda, começam a estabelecer, inclusive sob máscara do Estado, formas milicianas de governo e economia, que são verdadeiras “máquinas de guerra” do capitalismo contemporâneo responsáveis por estabelecer, sob o domínio das armas, a conjugação e regulação dos fluxos de quantidade abstrata (monetários, mercantis e de força trabalho) na axiomática mundial capitalista.

Desde a ditadura, a guerra contra o inimigo interno, que na redemocratização se dá sobretudo pela guerra ao tráfico e ao crime, fortaleceu a formação de grupos de extermínio ou de milícias no Brasil, compostas por policias (sobretudo militares), ex-policiais, bombeiros e agentes penitenciários, e que passaram a vender segurança para comerciantes e moradores de bairros periféricos e de classe média. Nos anos 2000 tal fenômeno, apoiado nas políticas do Estado como continuação da guerra por outros meios e na expansão da “informalização” e mundialização imediata da economia, adquiriu novas configurações. Em especial no Rio de Janeiro, as milícias atualmente dominam cerca de 60% de seu território.[11] Através de um regime de enunciação securitária, anunciando a instauração de uma ordem protetora ou pacificada e de libertação do tráfico de drogas, as milícias no Brasil são igualmente peças de uma máquina de guerra mundializada e autonomizada, e possuem sua própria base econômica de reprodução cada vez mais ramificada e cuja distinção com o exercício da guerra se tornou impossível.

A expansão das milícias e de seu domínio armado sobre territórios e suas populações cada vez mais descartáveis, assumindo algumas funções do Estado (fiscal, fundiária e uso da violência), vem acompanhada não só da extorsão ou cobrança por segurança (o famoso arrego), mas também, como é o caso do Rio de Janeiro, do controle monopolísticos de serviços diversos como internet, gás, televisão, transporte público, do mercado imobiliário etc., além do próprio envolvimento no tráfico transnacional de drogas e armas. Para além do Rio de Janeiro, a expansão de tais máquinas de guerras e a maneira como regulam e ordenam o campo social e seus fluxos de quantidade abstrata (dinheiro, mercadoria, força de trabalho), ainda que de maneiras muito variáveis, se dá em várias outras regiões do Brasil. Além disso, as milícias, bem como as facções, hoje também se fazem presente em outros mercados transacionais que operam na fronteira do legal-ilegal, como mercado de terras, garimpo, extração de madeiras, contrabando de mercadorias etc., e que envolve outros atores para além do Estado, como empresas e corporações transnacionais de diversos ramos (transporte, mineração, madeira, postos de gasolinas etc). Em outros termos, para retomarmos Deleuze e Guattari, as máquinas de guerras milicianas não deixam de ser a materialização de uma guerra cada vez mais de “materiais”, participando ativamente do reordenamento dos espaços (urbanos ou não) e dos recursos sócio-naturais mais diversos na forma de capital constante, em detrimento de suas populações sobrantes do ponto de vista do capital variável.

Se tornando um fim em si mesmo, a máquina de guerra mundial se amplia cada vez mais, se efetivando a partir do aparelho de Estado ao mesmo tempo que o enfraquece, escapa dele, se torna cada vez mais autonomizada e dispersa. É que, por um lado, como vimos, a orientação securitária do Estado, que se inicia com a guerra fria e, em especial no Brasil, na ditadura militar, se materializou na expansão de um complexo político-industrial-militar-prisional-financeiro. Nesse sentido, a guerra depende cada vez mais de recursos materiais a serem consumidos em escala ampliada conforme um fluxo ou uma potência de guerra ilimitada, atravessando e se encarnando em todo o campo social e seus mais diversos setores. O que significa dizer que a reprodução do capitalismo hoje depende cada vez mais de uma economia de guerra permanente, sendo, no próprio nível empírico, difícil distinguir um empreendimento econômico de uma guerra materializada. Como observa Feltran, a guerra, que opera a partir da incriminação seletiva de populações periféricas e racializadas, compensa para os mercados, implica muita gente, envolve muito dinheiro e milhares de postos de trabalho (legais e ilegais) (FELTRAN, 2015). Por outro lado, na medida em que tal máquina de guerra se autonomizou do aparelho de Estado, vemos surgir uma multiplicidade de máquinas de guerras que, ao lado do Estado, compõem uma mesma máquina de guerra mundializada. Que tais máquinas possam em algum momento estarem aliadas ao aparelho de Estado e entre si ou, ao contrário, se oporem umas às outras em disputas pelo controle armado de territórios com seus fluxos de pessoas, mercadorias e dinheiro, de nada muda, na medida em que realizam uma mesma potência de guerra ou de abolição.

Máquinas de guerra e ascensão da extrema-direita

É sobre esse pano de fundo que proponho analisarmos a ascensão da extrema direita no mundo, e em especial do bolsonarismo no Brasil, ao invés de situá-la como resultado de guerras hibridas e revoluções coloridas. Gabriel Feltran identificou na guerra contra o tráfico e o crime, na qual vem se opor a figura do “cidadão do bem” e do “trabalhador” à do “bandido” que deve ser morto, as bases elementares do bolsonarismo. Foi na guerra travada nas periferias pelas polícias – mas também aquela no “campo” contra territórios indígenas e afrodiaspóricos – que foram se formando as máquinas de guerras que, posteriormente, fortaleceriam Bolsonaro e ressoariam no aparelho de Estado: bolsonarismo de bairro, de família, de delegacia, de cárcere, de agronegócio, de igreja, de escola etc. É preciso dizer que, no Brasil, há décadas a polícia, principalmente militar, exerce um “direito” de atirar direto, em especial quando se trata de populações periféricas e racializadas (indígenas e pessoas negras). Se tal exercício de produção de morte numa guerra permanente, como argumentam Deleuze e Guattari, são sintomas de que a polícia agora é menos peça do aparelho do Estado de que de uma máquina de guerra autonomizada e permanente, era questão de tempo para que a polícia começasse a reivindicar sua autonomia política, “reivindicação central do movimento político liderado hoje por Bolsonaro” (FELTRAN, 2021). O bolsonarismo resulta, assim, de máquinas de guerra que vão se formando nos bairros, nas periferias, nos conflitos de terra e da guerra contra a população indígena, negra, contra as mulheres e pessoas dissidentes de gênero, e que se colocam como tarefa defender a sociedade, garantir a segurança num contexto de insegurança permanente.[12] O bolsonarismo, enquanto fenômeno de massas, encontra suas forças em coletividades moleculares produzidas por uma máquina de guerra interminável. Tal guerra forneceu não só bases econômicas dos setores bolsonaristas (o enorme fluxo de dinheiro investido em segurança), mas também libidinais e subjetivas, que vão se formando nos bairros, nas prisões, no campo, nas igrejas, moldando as percepções, as posturas, os comportamentos, a ponto de Feltran, com razão, poder concluir que a ascensão de Jair Bolsonaro não foi em absoluto uma surpresa.

            Há, ainda segundo Feltran, uma força centrípeta do bolsonarismo, que vai da margem para o centro do poder político, que se torna mais evidente em 2018, culminando na eleição de Bolsonaro. Tal força centrípeta seria própria de um movimento totalitário cujas formas elementares se encontra nas periferias entre os setores policiais e evangélicos em sua cruzada guerreira e moral contra os inimigos internos (bandidos, esquerdistas, corruptos etc.). Me distanciando parcialmente de Feltran, parece mais adequado dizer que tal força centrípeta é uma força subordinada ao movimento centrífugo da máquina de guerra do capitalismo. Quer dizer, por um lado, as formas elementares do bolsonarismo, suas “células” cancerosas, foram formadas por uma força centrífuga que não é aquela da “democratização”, mas da potência ilimitada da guerra e sua materialização, sobretudo a partir do aparelho de Estado, nos diversos dispositivos macropolíticos mortíferos de gestão dos micro-pequenos medos. É tal força centrífuga de uma máquina de guerra mundial – que se desenvolveu durante mais de duas décadas de redemocratização – a responsável por produzir e converter as linhas de fuga do campo social no desejo de abolição ou de morte, ainda que tal morte passe pela morte do outro, antes de voltar-se contra si mesma.

            Nesse sentido, por um lado, o movimento centrípeto, e a consequente ampliação de representantes políticos no aparelho de Estado – não só Bolsonaro, mas também o crescimento de políticos policiais militares, policias civis, delegados, membros de milícias, pastores evangélicos etc. – seria um segundo momento, ou um efeito do fato de que as máquinas de guerras e sua força centrífuga começaram a ressoar entre si. Por outro lado, tais forças são menos a de um movimento totalitário do que de aprofundamento da máquina de guerra autonomizada do capitalismo em seu contexto de crise permanente, e é nesse sentido que a aproximação com o fascismo parece poder ser feita: não por retorno ou regresso do recalcado, mas pela fina linha histórica que liga nossa situação atual com o fascismo como primeira figura da máquina de guerra mundial e autonomizada.

            Mas há ainda um elemento fundamental para que tal máquina de guerra mundial autonomizada do capital, que irá desencadear a formação de uma multiplicidade de máquinas de guerras ao mesmo tempo locais e transnacionais, assegurasse e ampliasse sua força: a repressão dos devires-revolucionários, que de tempos em tempos fulguram e produzem rupturas no campo social. É aqui, portanto, que caberia situar a relação entre Junho de 2013 e a ascensão da extrema-direita: na repressão brutal levada a cabo pelo aparelho de Estado, que convertendo um acontecimento político num inimigo interno, o transformou num laboratório de aperfeiçoamentos das tecnologias de segurança, controle e produção de mortes. Junho de 2013 não expressou apenas uma ruptura com o consenso forjado em torno da governabilidade, mas também da máquina de guerra civil e seu automatismo que a governabilidade pressupõe. Não por outra razão, Junho explode também como uma resposta à violência policial, colocando em ressonâncias diversas lutas travadas pelas populações periféricas e racializadas contra o genocídio. E, entretanto, ao mesmo tempo que a luta contra a violência policial mostrou sua força na produção de uma revolta popular e de uma situação de ingovernabilidade, tal luta figura em larga medida secundarizada diante das pautas de natureza “econômica” – pretensamente mais universais e “comuns”. É que, nesse sentido, Junho de 2013 também relevou entre outras coisas a dificuldade da esquerda, desde a institucional até o campo autônomo e libertário – de compor com a luta das populações racializadas, periféricas e minoritárias contra a guerra social para além do mundo do trabalho e das relações diretamente econômicas.


[1] Deleuze e Guattari parecem ser sensíveis a esse limiar do Estado brasileiro entre desenvolvimentismo e neoliberalismo ao caracterizarem a ditadura brasileira por uma alternativa ambígua: “totalitarismo-socialdemocracia” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p.177). Sobre a ditadura como o último momento do desenvolvimentismo brasileiro e a antessala do neoliberalismo, cabe o comentário de Paulo Arantes, seguindo as análises de Leda Paulani sobre a transformação do Brasil numa plataforma de valorização financeira: ao mesmo passo que a ditadura militar completou, ainda que com um século de atraso, a matriz interindustrial brasileira, nos tornando “uma economia industrial plena” por via do II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) do governo Geisel, ela também forneceu as condições para a reprimarização da economia e financeirização que se seguiu, com consagração da lógica empresarial do setor público já prevista na estrutura administrativa de 1967, em plena ditadura. De modo que Fernando Henrique Cardoso arrombou uma porta aberta (PAULO, 2014, p.320-21).

[2] Os próprios militares brasileiros afirmavam, tendo em vista esses dois eixos de conflitos da máquina de guerra mundial do capitalismo, que o estudo da guerra revolucionária, nos países do terceiro mundo, deveria ter a máxima importância, muito mais que a “chamada guerra nuclear total” (MARTINS FILHO, 2008, p.43)

[3]  João Roberto Martins Filho observa que a literatura sobre a ditadura militar se concentrou na Doutrina de Segurança Nacional, elaborada a partir dos anos de 1940 e formada com forte influência norte-americana. Contudo, a doutrina francesa de guerre revolucionnaire, formada no contexto de guerra de independência da Argélia e Indochina e introduzida na ESG (Escola Superior de Guerra) em 1959, ficou secundarizada. A principal característica dessa forma de conflito “era a indistinção entre meios militares e não militares e a particular combinação entre política, ideologia e operações bélicas que ela proporcionava” (MARTINS FILHO, 2008, p.41). Além disso, a doutrina francesa da guerra revolucionária fornecia aos militares brasileiros “uma definição flexível e funcional do inimigo a enfrentar, ao mesmo tempo em que, no plano geopolítico, valorizava o Terceiro Mundo como cenário do confronto da Guerra Fria”. Como estamos vendo, tais características de indistinção entre tempo de paz e guerra, civil e militar, bem como de definição flexível e ampla de inimigo, são constitutivas da máquina de guerra mundial que se forma no pós-guerra e das múltiplas guerras locais que desencadeia como partes dela, tendo como objeto a organização e distribuição securitária de uma insegurança permanente. Tal insegurança molecular permanente, produzida, organizada e distribuída por uma máquina de guerra mundial autonomizada, tomou conta da cabeça dos militares, segundo os quais a civilização cristã estava num estado de guerra permanente em que as distinções tradicionais passaram a ser insignificantes. Desse modo, antes mesmo da era kennediana da contra-insurreição, cujo marco foi promulgação do Memorando de Ação de Segurança Nacional (NSAM-124) em 1962, e antes da revolução Cubana, os militares argentinos e brasileiros já haviam buscado uma doutrina de guerra contrarrevolucionária: a francesa.

[4] Ver o artigo Os tentáculos da tarântula: abjeção e necropolítica em Operações Policiais a Travesti no Brasil pós-redemocratização (CAVALCANTI; BARBOSA; BICALHO, 2018).

[5] Lembremos que o ano de 1990 é também o ano de publicação do Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle. Deleuze identificava sua certidão de nascimento justamente no pós-guerra, isto é, na máquina de guerra mundializada do capital encarregado diretamente de fazer reinar o terror da paz perpétua. As diferenças que consagram a mudança de regime de poder do capitalismo podem ser observadas de vários pontos de vista: das instituições segmentadas para um controle contínuo, da força de trabalho disciplinada e confinada para a extensão da lógica empresarial em todos âmbitos da vida e em cada indivíduo, das máquinas energéticas para as máquinas cibernéticas etc. Mas Deleuze dá uma importância considerável pras mudanças que se observa do ponto de vista do dinheiro: “É o dinheiro que talvez melhor exprima a distinção entre as duas sociedades, visto que a disciplina sempre se referiu a moedas cunhadas em ouro – que servia de medida padrão -, ao passo que o controle remete a trocas flutuantes, modulações que fazem intervir como cifra uma porcentagem de diferentes amostras de moeda”. As mutações do capitalismo, que na década de 90 se tornava cada vez mais evidente, conjugava uma orientação cada vez mais do funcionamento do capitalismo e do seu uso da força de trabalho para a esfera da prestação de serviços ou da circulação de mercadorias com a ficcionalização da riqueza na forma das “ações”: “O que ele quer vender são serviços, e o que quer comprar são ações”. Como consequência, o homem vai deixando de ser o homem confinado e disciplinado, ocupado na produção de mercadorias, para se tornar cada vez mais homem endividado (DELEUZE, 1992, p. 219-226)

[6] O Brasil atualmente é o terceiro país com a maior população carcerária no mundo, com uma população carcerária de 919.272 pessoas. As prisões atualmente não desempenham só a função de armazenamento e contenção de uma população sobrante do ponto de vista de sua força de trabalho, mas também são verdadeiras máquinas de produzir morte, sendo que só em 2021, 1.276 foram mortas no sistema penitenciário. Quanto à taxa de homicídio, em 1990 o número anual homicídio era de 32.015, em 2021 são 47.503 homicídios por ano. Nesse meio tempo, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o número e a taxa de homicídios chegaram a superar o número de 64.078 homicídios por ano. Dois índices do pleno funcionamento da máquina de guerra mundial em terras brasileiras, que atinge sobretudo as minorias sociais proletárias (população negra, indígena, imigrantes, mulheres, travestis).

[7] Não é demais lembrar que as muitas mortes produzidas por policiais encapuzados e à paisana não são computadas nos índices de “letalidade policial”.

[8] Adalton Marques pode falar assim, no período pós-ditadura, e sobretudo nos governos Lula e Dilma com o PAC da segurança pública, num verdadeiro punitivismo-desenvolvimentista (MARQUES, 2017, p. 274)

[9] A distinção entre grupos milicianos e facções passa menos pelo tipo de mercados que fornecem a base para sua reprodução do que dos atores que os integram: as milícias são compostas sobretudo por agentes públicos: parlamentar, membros do judiciário, policiais civis, militares da ativa e reserva, agentes carcerários etc. Não se trata, além disso, de dizer que as facções são máquinas de guerra contra o Estado, mas que se formam como resultado e parte da própria máquina de guerra do capital em expansão.

[10] Observa Feltran: “A guerra aparece cada vez mais e mais no léxico e na lógica das políticas estatais” (FELTRAN, 2014, p. 504). A gestão dos conflitos sociais, assim, encontra na guerra sua grade de inteligibilidade e uma guerra que se trava a partir de relações altamente monetarizadas. Se o dinheiro é o nexo social, cabe lembrar que esse nexo é estabelecido e gerido cada vez mais pela guerra, de modo que um não vai sem o outro. É nesse sentido que as tecnologias sociais de controle são cada vez mais uma guerra materializada da axiomática capitalista.

[11] Ver sobre isso o relatório A expansão das milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliários e grupos armados.Realização: Grupos de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF) e Observatório das Metrópoles (IPPUR/UFRJ).

[12] “Longe de qualquer controle civil ou estatal, as frações mais politizadas das polícias tripudiam do Supremo Tribunal Federal, do Congresso Nacional, de governantes contrários a Bolsonaro e de todos os que atravessam seu caminho. Alcançar as instituições políticas seria um meio. O fim é defender a sociedade”. E ainda: “enquanto rios de dinheiro fluem para um modelo de segurança profundamente ineficiente, a situação de insegurança crescente no país faz policiais e militares clamarem por mais e mais recursos, como se não bastasse o achaque sistemático de policiais corrompidos que fazem a mercados ilegais lucrativos – drogas, armas, garimpo, madeiras, veículos ilegais, grilagem de terras etc. O crescimento desses mercados foi marcante desde a transnacionalização da nossa economia, nos anos 1990. Não é à toa que aqueles caminhoneiros que conhecem bem essas riquezas ilegais, por transportá-las escondidas em meio a cargas oficiais, já são bolsonaristas há tempos” (FELTRAN, 2021).

REFERÊNCIAS:
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          . Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol.3. São Paulo: Editora 34, 2012

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