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11 out 2023

COM TODO VAPOR ÀS RUINAS: O ACELERACIOSNIMO ECONÔMICO E SECURITÁRIO DO LULA 3 – PARTE 1

Por Agnes de Oliveira Costa

INTRODUÇÃO

Como resultado da mundialização imediata das cadeias de produção e distribuição de mercadorias, em um contexto de hiperacumulação estrutural que transformou diversas unidades produtivas em ruínas (desindustrialização), houve uma transferência de grande parte da estrutura produtiva pra Ásia (Japão e depois China) e uma reprimarização da produção no Brasil voltada para a exportação.[1] Tal produção passou a ser, além disso, impulsionada a priori pela ficcionalização sistêmica da riqueza monetária, resultante da crise estrutural do trabalho como substância social. A ficcionalização sistêmica da produção capitalista converteu as commodities e terras em ativos financeiros negociados no mercado futuro, formando bolhas especulativas de diversos tipos a partir da antecipação do futuro e de sua produção mercantil.[2] Tais são as bases sobre as quais se deu a expansão do agronegócio, do mercado global de terras, do neoextrativismo e das grandes obras de infraestruturas sociais ligadas, principalmente, ao setor imobiliário, energético, de transporte e comunicação.

Como consequência de tal processo – e explicitando o nexo entre acumulação fictícia do capital global, economia de saque, racismo e destruição ecológica – o genocídio de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e camponeses e os processos de expropriação de terras avançaram nas últimas décadas, bem como a acumulação de “catástrofes” climáticas produzidas por conta da natureza destrutiva da (re)produção em crise do capitalismo. Se torna, assim, cada vez mais comum fenômenos como enchentes, deslizamentos de terras, queimadas, rompimento de barragens, contaminação de rios, desmatamentos, destruição de biodiversidade e produção de refugiados climáticos.

Em meio a esse cenário de acumulação de fins de mundos, o novo governo brasileiro, sob a presidência de Lula, lança a terceira edição do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), também denominado pelo governo e imprensa como Novo PAC. O programa tem sido bem recebido à esquerda e à direita, congregando parcerias do setor privado, estados, municípios e movimentos sociais, em um esforço conjunto “para acelerar o crescimento econômico”, tendo como objetivos a “transição energética, a neoindustrialização, o crescimento com inclusão social e a sustentabilidade ambiental”.[3] O programa, assim, compõe com a narrativa do governo de uma “reconstrução nacional”, bem como reanima os sonhos desenvolvimentistas da esquerda progressista por uma neoindustrialização paradoxalmente articulada com sustentabilidade ambiental.

 Nesse sentido, pretendemos sustentar neste texto duas afirmações: 1) Que o aceleracionismo econômico do novo PAC tem como sentido mais fundamental o crescimento da produção de ruínas e vidas descartáveis, por intermédio de uma economia de saque que alimenta a multiplicação fictícia de capital. Tal sentido mais fundamental manifesta o caráter de crise estrutural do desenvolvimento econômico baseado na absorção crescente de força de trabalho; 2) Que o PAC III é indissociável da sua outra face: a segunda edição Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI II), não por acaso conhecido como PAC da Segurança Pública. O PRONASCI faz parte do Programa de Ação na Segurança (PAS) e visa implementar a Política Nacional de Segurança Pública, que tem como objetivo uma maior integração e racionalização das infraestruturas de segurança, por meio da constituição de um Sistema Único de Segurança Pública (SUSP).

Ao relacionarmos o PAC III com o PRONASCI II, procuraremos argumentar que a proposta de aceleração do crescimento é indissociável da aceleração securitária, que têm se materializado, já no primeiro semestre de 2023, na ampliação da construção de novas prisões, ampliação do armamentismo, da criminalização e da violência policial assassina. Para isso, dividiremos o texto em duas partes: 1) uma primeira parte na qual analisaremos o PAC III, suas especificidades e consequências do ponto de vista social e ecológico, bem como sua diferença com o PAC I e II; 2) e uma segunda parte na qual buscaremos analisar o PRONASCI II em sua relação com o Plano Nacional de Segurança Pública, suas especificidades, consequências e suas relações com o PAC III.

Mas antes de adentrar mais diretamente em tais análises, gostaria de expor brevemente o que entendo por heteropatriarcado-racial do valor, para explicitar desde onde abordo os fenômenos sociais em questão.

  1. Um mundo que não cessa de acabar: o valor como princípio ontológico cispatriarcal e racial

Primeiramente, é importante salientar que não compreendo o racismo anti-negro e anti-indígena, bem como a dominação cis-hetero-patriarcal (a dominação baseada na imposição da diferença sexual binária e hierárquica) como relações sociais que se somariam de maneira externa às formas de relações econômicas (trabalho, valor, dinheiro, mercadoria, capital, preço, juros etc.), produzindo extrinsecamente divisões no trabalho e hierarquias na distribuição da riqueza. Tal compreensão oblitera o caráter internamente racializado e sexualizado da universalidade abstrata das categorias fundamentais da economia-política. Tais categorias, longe de serem condições antropológicas ou sociológicas invariáveis e universais da produção da existência coletiva, são formas historicamente especificas e contingentes de dominação, produção e fundamentação da vida coletiva. Tendo isso em vista, sustento que a dominação social da modernidade tem a forma de uma objetualidade: trata-se de uma forma de socialidade que assume a forma de propriedade objetiva dos seres: seja o valor das mercadorias, a força de trabalho dos corpos ou, ainda, o sexo, a raça, a etnicidade dos corpos e territórios. Por outro lado, também não compreendo o racismo e dominação heteropatriarcal como formas de dominação resultantes da institucionalização hierárquica das relações sociais pelo aparelho de Estado e instituições por ele reguladas. Tal compreensão nos fornece uma concepção limitada das subjugações raciais e de gênero, como se suas violências pudessem ser resolvidas por reformas administrativas ou pelas instituições de justiça do aparelho de Estado, que não realizaria plenamente sua universalidade de direito.

Com efeito, entendo que a própria abstração real universalizante, que constitui a forma de produção do capital, é uma forma de socialidade em si mesma sexualizada e racializada, cuja métrica de tal abstração real é a masculinidade (cisgênera) e a branquitude. Assim, tal abstração real se expressa em vários níveis e formas de existência social: a) na abstração do trabalho universal/ humano em geral; b) na abstração do Deus-dinheiro como forma universal da riqueza; c) na forma-mercadoria da matéria; d) no Estado-moderno como forma política da abstração real; e) na forma-sujeito como expressão subjetiva da abstração e sendo seu executor ideal o homem-branco-heterossexual; f) nas simbolizações, e por ai vai.

 Assim, a abstração do valor pressupõe sempre-já seus Outros.[4] Tal lógica, ao mesmo tempo identitária e produtora de diferenças, que constitui a objetividade do valor como forma de socialidade cispatriarcal e branca, produz a repartição entre vidas de valor (economicamente, politicamente, simbolicamente, moralmente) e vidas desvalorizadas sobre as quais a violência total, a partir de uma indiferença ética, é justificada. Em nossa situação atual de crise permanente de tal forma de socialidade, a universalidade do valor e do trabalho se torna cada vez mais restrita, revelando a singularidade histórica de sua “universalidade”, mas não sem ampliar o seu círculo de violência patriarcal e racista, consumindo o mundo no interior de uma máquina de guerra securitária cada vez mais ampliada como forma de se reproduzir a todo custo.

Tais considerações a respeito do caráter cispatriarcal e racista da abstração do valor e da riqueza monetária é fundamental para que possamos apreender como as infraestruturas econômicas e securitárias, que o PAC e o PRONASCI propõem ampliar, não são realidades materiais neutras. Tais infraesturturas, em suas próprias formas de materialidade (uma materialidade generalizante, abstratizante) e lógicas de funcionamento são racializadas e sexualizadas. De maneira que podemos dizer que são infraestruturas materiais do cispatriarcado-racial produtor de mercadorias. Sem tais considerações não conseguimos apreender adequadamente a violência que são indissociáveis dos complexos infraestruturais que recortam o território ocupado pelo Estado brasileiro – não só em sua construção, mas em seu funcionamento – e a maneira como se exercem.

Posto isso, comecemos a análise do PAC.

2. Aceleracionismo econômico e combustão do mundo: o PAC III

a) Investimento do PAC: capital fictício e privatização da infraestrutura social

Como já foi amplamente observado, o Programa de Aceleração do Crescimento I e II foram criados como uma resposta do governo brasileiro à crise imobiliária de 2008, e dirigidos principalmente para o financiamento imobiliário e construção de infraestrutura social.[5] Fundamental para tal empreendimento foi a mobilização de crédito por parte dos bancos estatais, principalmente do BNDES, perfazendo um paradoxal “keynesianismo neoliberal” sustentado de maneira financeirizada pelo endividamento público e inflação dos preços das commodities (BOTELHO; BARREIRA, 2016). Tal estratégia começou a se esgotar após 2012, com a desaceleração da economia chinesa, que havia sido transformada em principal parceira econômica e consumidora das commodities brasileiras.

Posto isso, em relação às versões anteriores do PAC, o Novo PAC mantém algumas características comuns: 1) seu financiamento é estruturalmente dependente do endividamento Estatal e privado, isto é, da multiplicação fictícia de capital na forma do crédito; 2) O investimento se concentra no setor da infraestrutura social (transporte, energia, comunicação, habitação, saúde, educação, segurança etc.). O seu diferencial, contudo, e como o próprio Rui Costa (Ministro da Casa Civil) expressou, é o “protagonismo” do setor privado no investimento das obras.[6] Tal protagonismo, ao nosso ver, aponta para duas coisas: 1) A capacidade financeira mais limitada do Estado, em relação as versões anteriores, de levar adiante o financiamento do PAC; 2) um aprofundamento do processo de privatização das infraestruturas sociais, inclusive aquelas básicas para a reprodução social das populações (água, transporte, saúde, educação) a partir da parceria público-privada: as obras realizadas serão, no fim, concedidas ao setor privado.

  Do ponto de vista dos investimentos, estão previsos 1,7 trilhões de reais para viabilizar o sonho aceleracionista do novo governo.[7] De maneira geral, o grosso dos investimentos é voltado para o setor de infraestrutura, isto é, para esfera da distribuição de mercadorias, cujo núcleo podemos dividir em: 1) Transporte, com um investimento previsto de R$ 349,1 bilhões de reais, prevendo a construção de novos aeroportos, portos, rodovias, ferrovias e hidrovias; 2) Energia, com um investimento de R$ 565,4 bilhões para a construção de parques eólicos, de uma nova térmica nuclear, hidrelétrica e pequenas centrais hidrelétricas, usinas fotovoltaicas, térmicas a gás, produção de combustíveis de baixo carbono, novas redes de transmissão de energia etc. Além disso, mais da metade do investimento no setor de energia, em explícito contraste com a proposta de “transição energética”, está voltada para a produção e exploração de petróleo e gás natural (R$ 360,2 bilhões); 3) Comunicação, com um investimento de R$ 27,9 bilhões de reais, visando a expansão do 4g e implantação do 5g, ampliação das infovias e automatização dos serviços postais; 4) Imobiliário, com um investimento de 609,7 bilhões, sendo mais da metade dos recursos (cerca R$ 500 bilhões) voltada para o programa Minha Casa, Minha Vida e para o financiamento habitacional.[8] De maneira marginal figuram também setores como a saúde e a educação, o que explicita o caráter supérfluo da reprodução social de setores populacionais num contexto de crescimento da miséria e do desemprego.

b) Os monstros eólicos e solares: paradoxos da transição energética

“Trata-se do colonialismo em sua essência. E ainda tem gente que diz que o colonialismo acabou! Levaram o pau-brasil e agora, quando não há mais essa madeira pra levar, levam o vento e o sol.”

Antônio Bispo dos Santos

Para além da contradição entre, de um lado, predominância do financiamento na produção e exploração de petróleo e, de outro, a proposta de “transição energética”, é preciso questionarmos a própria proposta de transição energética baseada no investimento em energia eólica e solar como fontes energéticas para a reprodução em crise da sociabilidade baseada na abstração racial e cispatriarcal da produção de mercadorias. Ela segue a mesma lógica de escalabilidade sustentada por uma indiferença em relação as multiplicidades de formas viventes e suas socialidades.

A formação dos parques eólicos e solares brasileiros começou a crescer sobretudo após 2009, com um importante papel do BNDES no financiamento das construções. Segundo a Associação Brasileira de Energia Eólica, existem atualmente no Brasil 920 parques eólicos, concentrados nas mãos de 10 corporações transnacionais.[9] Tais parques se concentram, além disso, na região nordeste, em razão da velocidade e força de seus ventos. Assim, os estados do Rio Grande do Norte (o maior produtor), Maranhão, Bahia, Pernambuco, Piauí, Paraíba, Ceará são os principais alvos dos monstros eólicos. No caso da energia solar, em 2022 havia mais de 500 mil sistemas fotovoltaicos, sendo São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Paraná os principais produtores.[10] Apesar do discurso de “sustentabilidade” e “transição energética”, a realidade é que os parques eólicos e solares produzem processos sócionaturais destrutivos, que se sobrepõem às destruições promovidas pelas produções de energias fósseis.

As instalações dos parques eólicos, por exemplo, têm mudado a direção dos ventos, ampliando o desmatamento, o soterramento de fluxos hídricos, a perda da biodiversidade, a especulação imobiliária e a expropriação de terras nas regiões onde são instalados. A mudança no curso dos ventos retira os ventos necessário para a sobrevivência de diversas formas viventes não-humanas, como aves, abelhas e morcegos (SANTOS, 2023).  Outro problema relatado é a relação entre a instalação dos parques eólicos e saúde mental de moradores de comunidades próximas, em decorrência do barulho das turbinas eólicas: insônia, depressão, ansiedade, estresse, dor de cabeça etc.[11] Nas regiões costeiras, os aerogeradores estão intensificando as erosões das dunas, afetando a formação hídrica de lagoas costeiras e do ecossistema de manguezal.[12] Já nas regiões interiores, os parques eólicos têm ampliado a desertificação da Caatinga.[13] Apresentando consequências semelhantes, a expansão mundial dos parques solares, além disso, têm revelado seu potencial de “bomba ambiental”, produzindo toneladas de lixos.[14]

De maneira geral, os parques eólicos e solares produzem territórios que se tornam inabitáveis paras diversas formas viventes humanas e não-humanas, quebrando as confluências e biointerações (SANTOS, 2023) pelas quais são criadas uma multiplicidade de formas de socialidade mais-que-humanas (TSING), que escapam da relação-valor. Tal situação revela que o patriarcado-racial produtor de mercadorias é incapaz de coexistir com outros modos de vida e formas viventes que não se submetem a sua lógica e, assim, estabelece uma indiferença ética em relação a uma multiplicidade de viventes.

Do ponto de vista econômico, a ampliação de parques eólicos e solares se mostram menos funcionais de uma acumulação de riqueza assentada na produção de mercadoria do que um momento da acumulação do capital fictício, que flui na produção real. Cedo ou tarde, tal acumulação de curto prazo expressa a descartabilidade crescente de um conjunto de infraestruturas sociais, que se convertem em ruínas. É o caso, por exemplo, do parque eólico desativado de Casa Nova (BA), mas também do pioneiro parque eólico do Morro do Camelinho (MG), que se tornou descartável, apesar do seu alto potencial de geração de energia. [15]

De maneira mais geral, as produções de ruínas já se fazem presentes nas versões anteriores do PAC que, em decorrência do estouro da bolha das commodities e do aumento da produtividade social estimulada pelo próprio PAC, nos legou um conjunto de obras inacabadas, projetos e infraestruturas tornadas supérfluas, que já nem podiam ser bombeadas com crédito e endividamento estatal.[16]

 Cabe destacar, nesse sentido, que quase metade dos projetos do novo PAC consiste na tentativa de reanimar obras inacabadas, desativadas ou que nem mesmo saíram do papel.[17] Normalmente, os limites dos PAC’s anteriores e as ruínas produzidas são explicados como frutos de atos corrupção, má administração do dinheiro público ou abandono dos investimentos por cortes orçamentários de governos posteriores (Temer e Bolsonaro). Contudo, desde 2014 já se manifestava uma redução dos investimentos e ampliação generalizada das ruínas sociais resultantes da descartabilidade de tais infraestruturas e unidades produtivas para a acumulação fictícia de Capital – o que aparece, no jargão econômico, como aumento da “capacidade ociosa”.[18]

c) Os limites da neoindustrialização e a produção de fins de mundos

            A centralidade do investimento na infraestrutura social nos mostra de partida os limites da proclamada neoindustrialização do novo PAC. E há ao menos três razões para isso: 1) em primeiro lugar, os setores que compõe a infraestrutura social não produzem diretamente acumulação de riqueza monetária a partir do consumo empresarial de força de trabalho. Não existe, por exemplo, uma “produção industrial” de rodovias ou infovias como mercadorias capaz de sustentar um processo ampliado de acumulação de capital, pois uma rodovia ou uma rede de comunicação, ao ser construída, passa a entrar imediatamente na (re)produção social capitalista em sua totalidade enquanto condições ou pressupostos da produtividade social. Evidentemente, a construção de rodovias, infovias, hidrovias, parques eólicos etc., são produções materiais, mas elas não são produtivas em termos de acumulação real de capital, apesar de estarem a ela sistemicamente ligadas.[19] 2) Em segundo lugar, os empregos gerados tanto na construção das obras infraestruturais, quanto depois são temporários e extremamente precarizados. 3) Por fim, o investimento em infraestruturas tem como efeito o aumento da produtividade social que está em relação inversa com a absorção da força de trabalho, de modo que a própria operacionalidade de tais infraestruturas mobilizam cada vez menos força de trabalho em decorrência da automação. Em outros termos, o investimento em infraestrutura intensifica a racionalização social e automatização do processo de produção, reduzindo a força de trabalho necessária tanto para produção de mercadorias quanto para a gestão e operação de infraestruturas sociais, ampliando, assim, as ruínas do capitalismo:

“Qualquer investimento realizado hoje será o canteiro de obra parado, a usina inutilizada, o galpão abandonado ou o porto vazio de amanhã. Sem falar no acúmulo das catástrofes ambientais” (BOTELHO, 2019, p.7).

            Basta vermos, nesse sentido, o aumento da ociosidade e estagnação da capacidade produtiva no Brasil em diversos setores[20], que como nos mostra Botelho (2019) se ampliaram desde 2014, ou ainda o aumento de pedidos de recuperação judicial e falências, acompanhadas do endividamento.[21] Outros indicadores desse processo é o aumento da população, que possui idade para trabalhar, fora da força de trabalho, da informalidade e subocupação da força de trabalho.[22] Tais dados não indicam, como a esquerda progressista frequentemente argumenta, “falta de investimento” para acelerar o crescimento, mas são resultados da própria hiperacumulação estrutural do capital, que, em decorrência do aumento da produtividade, produz força de trabalho e capacidade produtiva supérfluas. A busca por ampliação da produtividade social apenas recoloca o problema em escala ampliada, produzindo mais ruínas e vidas supérfluas.

            O aumento da produtividade social é, nesse sentido, o núcleo do aceleracionismo, na medida em que amplia a aceleração do tempo e do movimento espacial da produção e circulação de mercadorias. Por intermédio dessa aceleração da produção espaço-temporal, o que se visa é intensificar a racionalização da integração imediata – e cada vez mais restrita – dos territórios no mercado mundial. Em resumo, o PAC faz parte do processo contemporâneo de mundialização imediata da sociabilidade mercantil e de suas infraestruturas. O que em outros termos significa dizer que, na atual conjuntura, “nosso ambiente econômico ‘interno’ é já um espaço imediato da economia mundial” (BOTELHO, 2019, p.13).

 Além disso, é necessário inscrever o novo PAC nas atuais circunstâncias do capitalismo, no interior da qual a produção material de mercadorias, em decorrência do atual nível de produtividade social, se tornou insuficiente para sustentar o processo de acumulação do capital que, por isso, passou a se refugiar para as bolsas de valores, mercados de derivativos e demais estruturas financeiras.  Assim, o capital monetário busca, cada vez mais, se multiplicar sem investimento direto na produção material e mobilização da força de trabalho. Nesse contexto, a própria produção de mercadorias se mantém apenas de maneira simulada, isto é, como um apêndice dependente de processos especulativos com os preços de ativos financeiros de todo tipo e do endividamento social geral (do Estado, de empresas, famílias e indivíduos), sem os quais a produção de mercadoria desmancharia.

 Nesse sentido, o processo de racionalização por via do investimento em infraestrutura, que o PAC representa, tem como consequência inevitável a ampliar ainda mais a separação entre multiplicação monetária na forma de capital fictício e produção real de mercadorias cada vez mais automatizada. O que nos conduz a um outro aspecto do PAC III: trata-se de um programa que acelera o consumo do futuro por antecipação, na medida em que sua realização dependente de processos especulativos sobre as produções futuras de mercadorias. Isso é explicitado no caso do mercado imobiliário, seja urbano ou rural: a construção de rodovias, hidrelétricas, infovias, parques eólicos etc., ao ampliar o desmatamento, alimenta a especulação de terras e seu mercado legal/ilegal, retroalimentando, por sua vez, práticas de desmatamentos, neoextrativismos e outras práticas legais/ilegais relacionadas com tais fenômenos; o mesmo vale para o caso do programa Minha Casa, Minha Vida e dos financiamentos habitacionais, que produzem valorizações dos mercados imobiliários urbanos.

Contudo, o problema é mais complexo e nos conduz a questionar o próprio desejo da esquerda progressista por aceleração do crescimento. Cabe lembrar que a expansão do tecido infraestrutural da produção capitalista é indissociável da ampliação da expropriação de terras, destruição da diversidade de modos de vidas humanos e não humanos (animais, vegetais, rios, formações geológicas etc.), bem como da ampliação de uma produção industrial de epidemias e pandemias (PITTA; SILVA, 2022). A face mais sombria do novo PAC é justamente essa: se é verdade, como estamos vendo, que a aceleração do crescimento econômico está fincada em pés de barros e só pode realizar sua “euforia de crescimento” como uma “bolha de sabão”, por outro lado a aceleração do crescimento da destruição de modos de vida, da natureza e de novas doenças é bem real.

Assim, logo no início da anunciação do novo PAC, comunidades indígenas e ribeirinhas do Pará (PA/ Xingu) e do Mato Grosso se manifestaram contra uma série de obras que apenas beneficiam o agronegócio, a mineração, grandes corporações de energia, transporte, comunicação e construção civil, como é o caso do Corredor Logístico Tapajós-Xingu – um complexo formado por obras de infraestrutura e equipamentos de logística para o escoamento de commodities, que compreende a construção de uma ferrovia (Ferrogrão), que liga o Mato Grosso ao porto do Pará, a pavimentação da BR-242/MT. bem como a construção da Hidrovia Araguaia-Tocantins .[23] A ferrogrão é um exemplo do caráter mundializado das infraestruturaas, sendo sua construção e gestão disputada por uma série de gigantes transnacionais.[24]

Diante disso, poderíamos dizer que as promessas e objetivos do novo PAC são meras ilusões de consciência, e que os discursos justificadores do programa não passam de ideologia ou de cinismo diante da crise estrutural do capitalismo e da relação irredutível entre capitalismo e destruição ambiental. Mas a situação, me parece, é mais complexa do que uma mera ilusão voluntária ou involuntária de consciência. Acredito ser importante atentarmos para o fato de tais “ilusões” ou “simulações” de “neoindustrialização” animarem processos econômicos concretos, uma ficcionalização real dos processos de produção social com consequências altamente destrutivas, e cujo efeito é conjugar esforços de amplos setores sociais na “reconstrução” de um mundo que não cessa de acabar. Dito em outros termos: sim, ilusão ou cinismo, mas objetivos.

Os limites do novo PAC já foram delineados, por um lado, pelas suas versões anteriores que, cabe lembrar, não se esgotaram por “amputação” ou “desvio” voluntarista em relação a um projeto inacabado, mas em decorrência de limites objetivos imanentes do próprio crescimento econômico mundial.  Por outro lado, tais limites são determinados também pelo próprio arcabouço fiscal do governo, que impõe limites e corte de gastos do Estado. Nesse sentido, é preciso considerar que o PAC III, por um lado, terá efeitos econômicos mais limitados que suas versões anteriores do ponto de vista do crescimento econômico e da geração de emprego, em decorrência do esgotamento do boom das comodities, da estagflação mundial e do desaceleramento do crescimento chinês – todos sintomas de uma superacumulação crônica do Capital, que se ampliou nas últimas quatro décadas. Mas, por outro lado, o novo PAC ampliará a concentração de riqueza, a destruição da natureza em decorrência do aumento da produtividade social, a expropriação de terras e a violência tanto estatal quanto paraestatal. E é aqui que entra a outra face do PAC III: o PRONASCI II.


[1] Sobre a relação entre crise estrutural de hiperacumulação do capital, mundialização imediata das cadeias produtivas e expansão do capital fictício, ver KURZ, 2015, p.40: “A globalização não é outra coisa senão uma racionalização transnacional e, nessa medida, realmente tem algo de qualitativamente novo. (…) Assim nascem, por um lado, cadeias transnacionais de criação de riqueza, ao passo que, por outro lado e ao mesmo tempo, partes crescentes da reprodução vão secando e morrendo. Esse processo é encimado controlado pelo igualmente globalizado capital das bolhas financeiras”.

[2] A partir de 2002, ocorre mundialmente a formação de uma bolha das commodities impulsionada pela inflação do seu preço futuro nos mercados de derivativos, e que impulsiona o agronegócio e o neoextrativismo no Brasil. A expansão das agroindústrias, alimentada pela especulação com os preços futuros das commodities, ampliou, por sua vez, a especulação com terras agrícolas. Após a crise de 2008 e  diante do esgotamento do boom das commodities, a especulação com as terras, transformada em ativos financeiros, é acentuada, tanto no contexto urbano quanto no contexto rural. No que diz respeito às terras agrícolas, o mercado de terras se desloca da produção de commodities a partir de 2008,  intensificando processos de expulsão de comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas e camponesas, ampliando as queimadas, desmatamentos e grilagem de terra com fins exclusivamente especulativos. Sobre tal processo, ver o relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos: Imobiliárias Agrícolas transnacionais e a especulação com terras na região do MATOPIBA. Disponível em: https://www.social.org.br/files/pdf/matopiba.pdf. Acesso: 30/09/2023.

[3]https://www.gov.br/casacivil/novopac/conheca-o-plano ; https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2023-09/novo-pac-lula-lanca-edital-de-r-655-bi-em-recursos-para-municipios

[4] Me inspiro aqui simultaneamente nos trabalhos de Denise Ferreira da Silva, Roswitha Scholz e Jota Mombaça.

[5] Conferir, por exemplo, (BOTELHO, 2019); (PITTA; ALLAN, 2022); (BARREIRA; BOTELHO, 2016); (PAULANI, 2017).

[6]https://www.cnnbrasil.com.br/economia/diferenca-do-novo-pac-para-versoes-anteriores-e-protagonismo-do-setor-privado-diz-rui-costa/

[7] Os investimentos previstos para Novo PAC contam com: recursos do Orçamento Federal (R$ 371 bilhões); das empresas estatais (R$ 343 bilhões); financiamentos de bancos, que podem chegar à 440 bilhões de reais; e do setor privado (R$ 612 bilhões) https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/imprensa/noticias/conteudo/bancos-publicos-podem-financiar-r2-440-bilhoes-em-invesimentos-do-novo-pac

[8] Para além da especulação imobiliária, Bispo dos Santos (2023) aponta também para o caráter colonialista da arquitetura do Minha Casa, Minha Vida: “Minha Casa, Minha Vida é o programa mais colonialista nas políticas de habitação. Foi um ataque brutal, violento, perverso, racista, institucionalmente colonialista.”

[9] https://abeeolica.org.br

[10] https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/noticias/brasil-bate-recorde-de-expansao-da-energia-solar-em-2023

[11] https://www.brasildefatope.com.br/2023/05/19/artigo-o-que-e-a-sindrome-da-turbina-eolica

[12] Ver por exemplo ALENCAR, K. Os impactos ambientais e sociais da produção de energia eólica. Disponível em: https://agencia.ufc.br/os-impactos-ambientais-e-sociais-da-producao-de-energia-eolica/

[13] https://apublica.org/2023/07/expansao-de-eolicas-ameaca-comunidades-e-caatinga-no-semiarido-do-rio-grande-do-norte/

[14] https://g1.globo.com/meio-ambiente/noticia/2023/06/07/por-que-popularizacao-de-paineis-solares-pode-causar-bomba-ambiental.ghtml

[15]  https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2018/08/27/interna_gerais,983688/pioneiro-no-pais-parque-eolico-do-morro-do-camelinho-acabou-abandonad.shtml ; https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/10/nove-anos-apos-leilao-torres-eolicas-estao-abandonadas-na-bahia.shtml

[16] “O mantra econômico que vê o investimento como alavanca arquimediana ignora o efeito final obtido por essa injeção de adrenalina no capitalismo atual: a formação bruta de capital fixo ampliou a capacidade em diversos setores da economia e culminou num recessão” (BOTELHO, 2019, p.6)

[17] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/08/obras-paradas-e-projetos-antigos-correspondem-a-43-do-novo-pac.shtml

[18] “A partir de meados de 2014, os investimentos começaram a apresentar uma progressiva queda, que ultrapassou dez pontos percentuais no fim de 2015 e em todo ano de 2016” (BOTELHO, 2019, p.4). E sobre o aumento generalizado das taxas de capacidade ociosa de 2014 à 2016, ver (Ibidem, p.7).

[19] Ver por exemplos as observações de Robert Kurz em A Crise do Valor de Troca sobre a infraestrutura social: “Essa infraestrutura, como condição geral, entra na produção geral da sociedade como um fundamento natural e pressuposto da produção. Ela é quase uma ‘segunda natureza’ material (como, por outro lado, o valor é uma ‘segunda natureza para a economia’” (KURZ, 2018, p.30).

[20] Em maio de 2023, por exemplo, menos de 48% dos pequenos industriais funcionavam com plena capacidade produtiva.

[21] Em 2023, houve um aumento dos pedidos de recuperação judicial e de falências tanto de grandes empresas, quanto de pequenas e médias, o que também está ligado a um aumento do endividamento e risco de inadimplência. Sobre os pedidos de recuperação judicial e falência, segundo dados da Serasa Experian, ver  https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2023/06/06/pedidos-de-recuperacao-judicial-aumentam-no-brasil.htm. Sobre o aumento do endividamento de empresas, ver https://www.iedi.org.br/cartas/carta_iedi_n_1223.html#:~:text=Ao%20contr%C3%A1rio%2C%20entre%20os%20primeiros,bilh%C3%B5es)%20do%20aumento%20nas%20d%C3%ADvidas.

[22] É preciso notar que a própria formalidade do trabalho hoje já não indica um quadro muito diferente, dado o conjunto de reformas trabalhistas que “formalizaram” condições de precariedade, intermitência etc.

[23] https://apublica.org/2023/08/ribeirinhos-e-mpf-contestam-licenca-ambiental-de-hidrovia-do-novo-pac-no-para/

[24] Construtoras como a espanhola Sacyr, e a chinesa CCCC, e operadoras como a China Railway Group, além de instituições financeiras.

 REFERÊNCIAS:

BISPO DO SANTOS, A. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu Editora, 2023.

BOTELHO, M. Superacumulação e colapso do capitalismo no Brasil em retrospectiva. In: Geografares, 28, 2019.

BOTELHO, M.; BARREIRA, M. A implosão do pacto social. In: Krisis, 2016. Disponível em: https://www.krisis.org/2016/a-imploso-do-pacto-social-brasileiro/

FELTRAN, G. Ladrões e Caçadores: sobre um carro roubado em São Paulo. In: Revista Antropolítica, n.50, p. 128-149, 3. Quadri., 2020.

FERREIRA DA SILVA, D. Ninguém: Direito, racialidade e violência. In: Meritum, Belo Horizonte, v. 9, n.1, p.67-117, jan/jun 2014.

KURZ, R. Crise do valor de troca. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2018.

_____. Poder mundial e dinheiro mundial: crônicas do capitalismo em declínio. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2015.

PAULANI, L. A experiência brasileira entre 2003 e 2014: Neodesenvolvimentismo? In: Cadernos do desenvolvimento, v. 12, n.20, 2017.

PITTA, F.; SILVA, A. A pandemia na crise fundamental do Capital: inflação global, o estoura da mais recente bolha financeira mundial e desintegração e desintegração social na particularidade do Brasil sob administração de Bolsonaro. 2022. Disponível em: www.obeco-online.org/fabio_pitta_allan_silva.htm. Acesso: 01/10/2023.

WANG, J. Capitalismo Carcerário. São Paulo: Igrá Kniga, 2022.

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