Notas sobre a violência total cismasculina
Por Agnes de Oliveira
1. Obliteração molecular: nos levam, e às vezes de maneira imperceptível
Escrevo este texto com angustia, raiva e medo. Ao partilhar esses afetos, uma amiga, que também é travesti, me disse: “eu não consigo muito ver. Os detalhes, essas coisas, os requintes de crueldade. Eu só fico com medo e brava, e mais que um pouco triste. Eu fico ciente, mas se eu ler a respeito, for a fundo, eu choro. Acho que não tem como, é muito presente na nossa vida, não sofrer com isso.”
Era 11/12 quando soube da morte de Carol Câmpelo. Assim como minha amiga, eu também fiquei ciente. A primeira reação imediata foi não ir a fundo, não saber os detalhes, porque dói, porque a morte de cada uma das pessoas dissidentes é um pouco a nossa. Aprendi com Denise Ferreira e Jota Mombaça que o mundo ordenado, que nos é dado a viver e conhecer, opera com separabilidades e quebras de vidas implicadas e implicantes. A vida não pode ser reivindicada como propriedade exclusiva de uma existência individuada: mesmo que nossas vidas não sejam imediatamente destruídas no exercício da violência total sobre outros corpos, uma parte de nossa vida é. A vida só existe em uma multiplicidade implicada uma na outra, como um plano pré-individual de experimentação que só se faz coletivamente, segundo relações variáveis capazes de criar modos muito diferentes de povoar a Terra. É por isso, aliás, que a destruição constitutiva da cisheterossexualidade, pela qual ela busca se autopreservar diante de toda ameaça dissidente, é também uma autodestruição, um projeto autofágico.
Poucos dias depois, no dia 14/12, Jéssica Hadassa, mulher trans e PCD do povo indígena Sateré-Mawé, é assassinada à tiros em Amazonas. Sem perceber, eu já estava fazendo levantamento de quantas de nós – pessoas dissidentes – eles estavam levando em menos de uma semana. Ainda no mesmo dia 14/12, Caio Siqueira, um homem trans, é morto à tiros dentro de um mercadinho em Maceió. Dois dias depois, em 16/12, Ashley Freitas, uma travesti, é morta em Porto Velho.
Dia 17/12 foi a parada LGBT+, aqui em Natal-RN, não havia nada para me orgulhar, para comemorar ou celebrar. Desejava ver as ruas em chamas e redistribuir a violência.
Lembrei da profecia de Jota Mombaça, de 1 de Janeiro de 2012: “eles estão vindo, eles estão vindo”; “o tempo dos assassinos chegará novamente ao seu cúmulo”. E, desde então, não pararam de vir e de chegar. Muita gente e movimentos sociais alimentaram a ilusão, consciente ou não, de que eles estavam recuando, que foram “derrotados” nas eleições. Houve um grande engajamento, por parte de diversos setores sociais, na “reconstrução nacional”. A perversidade desse projeto foi e é mobilizar as minorias sociais para reconstruírem o seu próprio trauma, para reencenar, mais uma vez, a catástrofe. A reconstrução impede de assumirmos a inevitável finitude de um determinado mundo e, quem sabe, com isso, proliferar a desejabilidade do “fim desse mundo”, para criar mundos que não sejam um reino de violência. É muito diferente o desejo de fim de mundo da extrema-direita e o desejo do fim de um mundo enquanto projeto de abolição da dominação: o primeiro consiste em acabar com o mundo intensificando sua violência totalizante, no interior de um projeto sacrificial em que as vidas são consumidas em nome da eternidade desse mundo; o segundo consiste em abolir esse mundo para dar lugar a multiplicidade de mundos possíveis, assumindo a transmutação imanente da vida.
De todo modo, se o trauma é brasileiro, como nos diz Castiel Vitorino, e se o Brasil é uma ficção biopolítica letal, a sua reconstrução só pode ser a reconstrução do trauma, uma espécie de operação de fundamentação pós-mortem.
E se nossos violentadores não param de vir e de chegar, é porque chegam molecularmente, aquém e além do Estado e de sua macro-estrutura: é o marido, o namorado, o pai de família, o cliente, o cidadão de bem, o grande proprietário, o segurança privado, o policial fora do serviço etc. Eles nos matam, e às vezes a gente nem fica sabendo. Ter em vista a violência molecular que sustenta esse mundo significa também nos atentarmos para as armadilhas da representatividade. Apesar das críticas teóricas à representação, ela avança como forma imperiosa, não só do fazer político, mas como princípio de organização da vida coletiva. E, nesse sentido, vejo hoje o transfeminismo seguindo os passos do feminismo de Estado: com sua aposta no Estado Penal, na criminalização, no policiamento, nos tribunais de justiça, no encarceramento etc. Apesar de toda representação, e da hipervisibilidade que lhe é inerente, apesar das criminalizações e da inflação do aparato jurídico-penal, a violência continua avançando sobre nossos corpos.
De todo modo, ser dissidente da cis-heterossexualidade no Brasil tem nos conduzido a contar corpos, já que o próprio Estado, deliberadamente, oculta os dados das violências totais, muitas delas praticadas pelo seu próprio braço armado. Ocultar é menos se abster do que uma forma de exercício do poder.
2. Guerra ontológica e violência que se autopressupõe
A violência total contra pessoas dissidentes do sistema sexo/gênero é constitutiva desse mundo e de sua ontologia. Por isso, é possível dizermos que o sistema sexo-gênero, que constitui um dos pilares da modernidade capitalista e colonial, é fundamentalmente uma guerra ontológica hipermaterializada. Além disso, isso explica porque a violência total cismasculina é uma violência que se autopressupõe, na medida em que ela cria o próprio mundo sobre o qual ela se exerce: ela cria infraestruturas que lhes são próprias, identidades enclausuradoras e violáveis, regimes de distribuição desigual dos recursos e da violência etc.
Em resumo, é o próprio mundo tal como nos é dado a conhecer, com sua formas de vínculos sociais e instituições, que autojustifica a violência total que lhe constitui e garante sua autopreservação. Por isso, a legitimidade da violência cispatriarcal não é restrita ao plano legal, apesar de o Estado desempenhar um importante papel em condicionar, possibilitar – e também executar – o exercício dessa violência. É uma violência transversal que perpassa o Estado e as relações econômicas, estabelecendo vínculos de inimizade que constituem uma guerra civil molecular permanente. Não se trata de desvio, de falta de Justiça ou Lei. Estamos falando da textura das relações sociais que organizam um determinado modo de produção de mundo baseado na acumulação e concentração incessante de riqueza abstrata, cuja violência pressupõe a reprodução de guerras civis permanentes e multidimensionais.
A estrutura jurídico-política, o espaço público “comum”, a cena econômica do trabalho, do valor e sua valorização, a forma-sujeito enquanto forma de autodeterminação e liberdade humana, tudo isso pressupõe a guerra e o terror, que enformam um sistema de socialização baseado na igualdade e liberdade enquanto universais abstratos. Tal abstração é constitutiva da cisgeneridade branca e seu mundo baseado na valorização incessante do mundo por intermédio do trabalho, que se pretende universal e idêntico à própria estrutura objetiva da vida no planeta terra. Em outras palavras, o espaço público da liberdade e da igualdade, baseado nas relações contratuais e no reconhecimento recíproco da humanidade, é um espaço estruturalmente cis-masculino e branco: é o espaço da autopreservação, mediada pela concorrência. Enquanto tal, o espaço da liberdade e da igualdade deve sempre demarcar, por antecipação, sua antípoda, o seu Outro ameaçador – o que não é universal, o que se opõe à plena realização da autodeterminação, da liberdade (leia-se, liberdade de acumular dinheiro e vender a força de trabalho, de ordenar o mundo e sua reprodução cisheterossexual a todo custo) e que, por isso, pode ser violentado e submetido aos processos totalitários de controle social e de exceção em plena democracia. É preciso reforçarmos esse ponto: a subjetividade cismasculina é, fundamentalmente, uma subjetividade concorrencial e assentada numa indiferença ética em relação à violência, que efetiva sobre o mundo como condição de realização de sua autodeterminação enquanto sujeito livre, demarcando o espaço comum ou público de sua existência. Não por outra razão, sua forma mais bem acaba da violência cismasculina é o soldado, que experiencia o Mundo que tem diante de si como mero obstáculo ou mal necessário para sua liberdade e autopreservação.
Não é casual, aliás, que a morte de pessoas dissidentes de gênero seja feita em larga medida em espaços públicos: tais assassinatos explicitam a lógica de obliteração constitutivas dos espaços públicos gendrados, que visam incessantemente normalizar e impedir nossa aparição. A esfera jurídico-política e moral da produção e atribuição de valor à vida é indissociável de um “direito à aparição” distribuído de maneira desigual.
Se não é possível sermos incluídas nesse mundo, é porque já fomos incluídas, desde o início, por nossa própria exclusão. Todas as categorias, aparentemente neutras, que enformam as relações sociais na modernidade são, internamente, cindidas e quebradas pela sexualização e racialização: trabalho, dinheiro, mercadoria, concorrência, Estado, Lei, democracia, sujeito, igualdade etc. Não é possível torná-las mais “democráticas”, pois o projeto de mundo que elas constituem é sustentado na violência. O que a violência total explicita é, justamente, o núcleo arbitrário desse mundo e sua indiferença ética constitutiva diante das mortes de vidas que não podem ser abarcadas em sua universalidade vazia.
Assim, a exclusão-inclusiva é o pilar de um mundo que é a negação absoluta da possibilidade de outros mundos e ontologias, que sustenta uma universalidade realmente existente e fundamentalmente quebrada. A universalidade é menos um adorno ideológico ou falseamento da realidade do que uma forma de relação social historicamente dinâmica, indissociável do processo de tornar-se concreto da universalidade vazia do cispatriarcado capitalista e branco: a universalização.
3. Menos representação, mais abolição.
Tenho repetido como um mantra: menos representação, mais abolição. É preciso termos em vista o que queremos abolir. A posição abolicionista não é apenas restrita ao complexo industrial-prisional. Estamos falando em nada menos que a abolição desse mundo e, com ele, de suas instituições, de suas formas de determinação dos vínculos coletivos, dos modos de se construir agenciamentos coletivos. Contudo, construir uma prática abolicionista é indissociável de uma redistribuição da violência. Como nos lembra Jota:
“A redistribuição da violência é uma demanda prática quando estamos morrendo sozinhas e sem nenhum tipo de reparação, seja do Estado, seja da sociedade organizada.”
Desde que li “rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência!” de Jota Mombaça, tenho me perguntado: o que temos feito para efetivar tal redistribuição? Não é uma pergunta com uma única resposta e nem com respostas que possam ser dadas de uma vez por todas. Trata-se sempre de criá-las.
Diante das mortes brutais de pessoas dissidentes de gênero e sexualidade, em um espaço tão pequeno de tempo, tendo a pensar sobre os limites do que tem sido feito, e sobre pra onde a institucionalização tem nos conduzido.
A institucionalização dos movimentos sociais, e aqui em especial do movimento LGBT+, é crescente. E é muito difícil escaparmos de sua gramática e estarmos em espaços políticos que não falem sua língua: inclusão, integração, diversidade, representação, igualdade, democracia, liberdade, progresso etc., constituem seu léxico e sua sintaxe. Contudo, tal institucionalização acaba neutralizando as práticas para uma redistribuição da violência. Por que? Porque ela resolve a violência total na Justiça, e transforma, assim, o problema da violência num problema de reforma moral e jurídico-política: do preconceito diante da “diferença”, da falta de “inclusão” etc. Ao fazer isso, são as próprias formas de socialização que constitui o capitalismo sexorracial que são expiadas de sua violência constitutiva. Em especial, a Forma-Estado, que é inerentemente violenta, passa a ter seu direito restabelecido para julgar o mundo, e com ele a legitimidade de seu monopólio da violência. Mas o restabelecimento do seu direito e sua legitimidade – inclusive a legitimidade de sua violência de autopreservação contra populações racializadas e dissidentes – é também o restabelecimento da legitimidade da Totalidade desse mundo e das categorias normativas que determinam objetivamente as formas de nossas relações sociais.
É como se o problema não fosse a pretensão de neutralidade e universalidade da Lei, do Estado e da economia, mas o fato de elas não incluírem todo mundo. Assim, passamos a lutar para tornar a Justiça mais justa, a Universalidade mais universal, nos engajamos em seus projetos ontológicos de mundo. Contudo, o Estado sempre irá pressupor seus Outros. Não há um “bom Estado”.
Ao nos engajarmos na institucionalização e representação, ceifamos nossa possibilidade de revolta e insurreição. Abdicamos da potência política de nossa intimidade criminosa, forjada no fato que a modernidade capitalista e colonial nasceu e só se reproduz sob o signo da criminalização da nossa existência dissidente. Ao abdicar dessa potência, abdicamos de nossa imaginação política contra a logística do poder cisgênero e branco: produzir motins transviades e afeminados, capaz de travar as ruas para destravar potências de vida; fazer barricadas não só para roubar o tempo das forças de repressão, mas para desalienar a logística, tomá-las em nossas mãos e criar autonomia; ocupar prédios públicos, para reconfigurar a somatopolítica do corpo social e garantir o acolhimento; instaurar a desordem de um ordem cuja segurança econômica, política e ontológica é baseada no terror permanente que desaba sobre nossos corpos.
Para falar com Ventura Profana, é preciso pensarmos sobre saberes bélicos. É uma tarefa urgente pensarmos na construção de comunidades de autodefesa, de práticas não só de cuidado coletivo, mas também de redistribuição da violência. Pois, como nos lembra Jota:
“Se não pudermos ser violentas, não seremos capazes de desfazer as prisões e os limites impostos à nossa experiência por efeito da distribuição social heteronormativa, branca, sexista e cissupremacista da violência. Se não pudermos ser violentas, nossas comunidades estarão fadadas ao assalto reiterado de nossas forças, saúdes, liberdades e potências. Se não pudermos ser violentas, seguiremos assombradas pela política do medo instituída como norma contra nós”.
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