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31 jan 2024

Estômago: a persistência da insegurança alimentar na realidade prisional brasileira.

Uma jornada cinematográfica na fronteira entre o biológico e a liberdade.

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Imagem do cartaz do filme Estômago (2007)

Ontem, navegando pelas seções de cultura pop de um jornal conhecidíssimo, me deparo com a manchete: “Estômago 2, sequência do filme brasileiro de 2007, ganha teaser; assista”. Animado com a notícia de uma importante estreia em 2024, decido assistir ao trailer e, muito feliz pela continuação desse clássico, opto por revisitar o filme original para estar mais familiarizado quando sua continuação estiver nas telonas.

Ao me deliciar com essa obra digna da mais refinada arte que o cinema nacional pode produzir, surgiu em mim o desejo de escrever esta resenha. No entanto, não quero me limitar apenas a isso; pretendo também tecer algumas reflexões sobre a alimentação no cárcere. Compreendo que o filme é mera ficção e não teve a intenção de retratar o cotidiano prisional com fidedignidade, ao contrário de obras como “Carandiru” (2003), dirigido por Héctor Babenco e “Salve Geral” (2009), dirigido por Sérgio Rezende.

Apesar de não ter compromisso com a realidade — e é crucial que existam ficções para tornar a vida mais leve — há pontos muito importantes a serem discutidos aqui. “Estômago” estreou no ano de 2007, tem 1h45min de duração e foi dirigido por Marco Jorge, o mesmo diretor de “O Duelo”, baseado no romance “Os Velhos Marinheiros ou o Capitão de Longo Curso”, de Jorge Amado. Assim como em “O Duelo”, a trilha sonora de “Estômago” chama muito a minha atenção.

A trilha é original e ficou a cargo do músico italiano Giovanni Venosta. São as músicas que transformam a atmosfera da violência urbana, da difícil vida do nordestino recém-chegado em São Paulo, do trabalho árduo na cozinha, da exploração masculina sobre a prostituição, das relações de poder dentro do sistema prisional. A música transforma esses ambientes hostis em algo mais leve, mágico e até poético, amenizando o horror urbano.

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Cena em que Raiumundo Nonato conhece Iria (prostituta interpretada por Fabiula Nascimento).

Quem nunca fez uma pausa para tomar uma cerveja em um desses botecos com aspecto rústico no centro de São Paulo? Pois bem, Raimundo Nonato (interpretado por João Miguel) é um migrante paraibano que chega à cidade em busca de oportunidades de emprego. Ele começa trabalhando na confecção e fritura de coxinhas, em um sistema de barracão (ou servidão por dívida), cuja servidão é cozinhar, limpar e atender os clientes de um bar em troca apenas de comida e um pequeno quartinho sujo para dormir. Sua habilidade na culinária é tão impressionante que ele se aprimora com a prática e recebe uma oportunidade de trabalho melhor em um restaurante tradicional italiano.

A construção narrativa deste filme é comum no cinema, pois a história se desenrola de maneira linear com dois eixos que intercalam simultaneamente. O filme inicia com Nonato já detido, sem que saibamos o motivo, envolvido em uma discussão na cela com seu companheiro Bujiú (interpretado por Babú Santana). A treta gira em torno de um queijo gorgonzola que o paraibano estava produzindo, gerando um odor desagradável e incomodando os demais detentos.

Gradualmente, somos levados pela trajetória do cozinheiro, envolvendo-se tanto na produção da alimentação dos detentos dentro da prisão quanto na narrativa fora dela, interagindo com Iria e seu patrão italiano, Giovanni (interpretado por Carlo Briani). O enredo se alterna entre esses dois contextos até descobrirmos os motivos que o conduziu ao cárcere.

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Cena em que Nonato recebe uma proposta de trabalho de seu futuro patrão, Giovanni.

A razão pela qual estou compartilhando este texto é, exatamente por causa da cena, em que Nonato está prestes a deixar o sistema de barracão para assumir o ofício de cozinheiro em um restaurante gourmet. Para conquistar essa oportunidade, ele se submete a uma prova que ocorre de maneira natural, sem que esteja ciente, ao servir a comida que preparou ao seu futuro patrão. Interessante notar que, ao se retirar para buscar o pedido do senhor, percebemos que o velho italiano está absorto na leitura de um jornal. A câmera se concentra na matéria de destaque, que traz o seguinte título e subtítulo: 

“REBELIÃO EM PRESÍDIO JÁ É A MAIS LONGA NA HISTÓRIA DO ESTADO — Melhor alimentação é uma das principais reivindicações dos rebelados”.

Ao traçar um paralelo com a realidade, é impossível não lembrar das rebeliões de 2006 no Estado de São Paulo, que coincidem com a época em que o filme foi produzido. A maior ofensiva armada contra as autoridades teve o PCC como responsável pelos ataques, simultaneamente eclodindo rebeliões em presídios e unidades de internação de adolescentes em todo o Estado. O filme, embora lançado posteriormente, apresenta um contexto que ecoa acontecimentos marcantes da realidade paulista naquele período turbulento.

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Uma das táticas da Facção era incendiar ônibus para obstruir as vias de acesso dos policiais, ao mesmo tempo em que buscavam chamar a atenção da opinião pública para suas reivindicações.

Poderia passar um longo tempo refletindo sobre as condições precárias nos presídios, abordando temas como superlotação, falta de higiene, atendimento médico insuficiente e a ausência de atividades educacionais e de reabilitação, fatores que frequentemente resultam em rebeliões. Contudo, dada a limitação de tempo, vou focar especificamente na temática do filme, ou seja, as más condições alimentares.

É amplamente divulgado na sociedade que as refeições oferecidas nas prisões são de péssima qualidade e em quantidades insuficientes, caracterizando uma verdadeira pena de fome. As condições alimentares são tão ruins que, em um presídio no Rio Grande do Norte, a série documental da Netflix “Inside the World’s Toughest Prisons” apresenta uma cena em que até mesmo os cachorros se recusam a comer a comida destinada aos detentos.

Para ilustrar ainda mais o problema da alimentação, temos o caso de Paulo Roberto da Silva Lima, mais conhecido como Galo de Luta, que liderou a greve, o breque dos entregadores de aplicativo e foi detido por queimar a estátua do Borba Gato em um ato de protesto contra “heróis” escravocratas. Após sua prisão, ele foi levado para o centro de detenção provisória (CDP). Durante uma entrevista com Vilela no podcast “Inteligência Ltda”, quando questionado sobre a comida na cadeia, Paulo respondeu: “Minha marmita uma vez veio com um dente dentro da comida”. Isso evidencia a precariedade das condições alimentares, reforçando a realidade apresentada no filme, quando Raimundo Nonato precisa separar alguns bigatos indesejados em seu almoço.

Por que defender o direito à alimentação de qualidade na prisão? Porque é essencial humanizar os presidiários. Se os tratarmos como animais, é um animal que poderá abordar você durante um assalto. Precisamos humanizar as pessoas, tratá-las com dignidade e promover a ressocialização. Por isso, me posiciono a favor das rebeliões que pedem melhoria para o sistema penitenciário.

O direito à alimentação é um princípio fundamental inerente ao ser humano. Os direitos humanos não são uma garantia de privilégios, mas sim asseguram que as pessoas tenham proteção, acesso a um processo justo e que os interesses de uma classe dominante não prejudiquem aqueles em situação de vulnerabilidade social. Estes direitos, portanto, servem como um alicerce para a promoção da igualdade, justiça e dignidade para todos, independentemente de sua posição na sociedade.

Devido essa deficiência do Estado brasileiro, Raimundo Nonato, um habilidoso cozinheiro, conquista rapidamente a consideração de seus companheiros de cela ao proporcionar refeições de qualidade superior ao lamentável cardápio servido pelo sistema penitenciário. Nonato, munido de seu talento culinário que, por si só, é uma verdadeira expressão artística, empenha-se em elevar um pouco mais a qualidade de vida dos detentos.


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Cena de Nonato em seu ofício.

Por último, é notório que a continuidade de um filme após 17 anos desde sua estreia sugere que a problemática da alimentação persiste e permanece como uma questão a ser discutida tanto nas telas de cinema quanto na vida real.

Se, por um lado, a narrativa cinematográfica do diretor Marco Jorge destaca a precariedade alimentar no sistema prisional, por outro lado, o fato de um filme encontrar relevância e eco em uma continuação após quase duas décadas sugere que a temática da alimentação inadequada permanece urgente e requer atenção contínua. Assim, a persistência desse debate nas telas reflete a persistência dos desafios enfrentados na vida real em relação à alimentação.

É como se a arte, ao abordar temas como a deficiência na oferta alimentar, atuasse como um espelho da sociedade, ampliando a compreensão e conscientização sobre as questões sociais que muitas vezes passam despercebidas. Portanto, a continuidade do filme serve como um lembrete de que, mesmo ao longo do tempo, há problemas cruciais que persistem e demandam esforços para transformação e solução.

Veja o teaser de “Estômago II”:

Guilherme Pompeo – Nascido em Barueri. Militante, graduando em Letras pela UNESP de Araraquara e professor de Língua Portuguesa na Fundação CASA.

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