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05 fev 2024

Lei “Ónibus” negociada num apartamento e, de repente, assembleias de bairro.

Silvia Adoue
2 de fevereiro de 2024

Dia 20 de dezembro, e depois de uma mobilização convocada pela esquerda partidária e dos movimentos populares, que lembrava aquela que iniciou a rebelião de 2001[1], o flamante presidente Javier Milei apresentou em cadeia nacional um Decreto de Necessidade e Urgência (DNU)[2]. Os 366 artigos que compunham o DNU condensavam as promessas de campanha de transformações ultraneoliberais afetando as relações de trabalho, a proteção dos inquilinos, o subsídio aos serviços públicos, o funcionamento do setor público, a lei de terras; abrindo a possibilidade de contratos em moeda estrangeira; e desregulando os marcos legais de proteção ambiental. Imediatamente, em muitos bairros da capital se ouviram batidas de panela e os vizinhos se encontraram nas esquinas. Muitos marcharam para a praça frente ao Congresso. A partir dessa noite, se reativaram muitas assembleias de bairro que haviam sido criadas em 2001, e se formaram outras, não apenas nas grandes cidades, senão também nas periferias e nas cidades menores.

A ministra de Segurança Pública, Patricia Bullrich[3] divulgou um protocolo para as mobilizações segundo o qual os manifestantes não poderiam circular na rua, para não interromper o trânsito. As centrais sindicais pediram ao poder judiciário que declarasse inconstitucionais algumas das reformas trabalhistas propostas e convocaram a uma mobilização frente da sede desse poder. O governo ingressou com uma Ley “Ómnibus” de 664 artigos no Congresso. Um deles, aprovava o DNU. Outro, conferiria ao poder executivo faculdades extraordinárias por dois anos, prorrogáveis por outros dois, traspassando ao presidente funções legislativas.

Escritórios de advogados de grandes corporações participaram na elaboração da lei. Analistas se debruçaram sobre os artigos para determinar quais são os grupos econômicos favorecidos[4]. Seria um erro, porém, olhar para esta grande transformação dos marcos legais em que o Estado operará apenas como um simples balcão de favores para os grandes interesses privados. Esses benefícios imediatos para os grupos económicos estão contidos na lei, mas o horizonte está mais longe. O governo precisa do apoio dos grupos que operam localmente para uma transformação que, necessariamente afetará negativamente alguns deles. Conciliar essas contradições, compensar expectativas que não poderão ser cumpridas de alguns setores privados supõe um leque de medidas para negociar.

As centrais sindicais convocaram a um paro nacional e mobilização para o dia 24 de janeiro. Se as direções dos sindicatos compuseram suas colunas apenas com alguns delegados, somaram-se a essas colunas trabalhadores militantes de base de organizações de esquerda. Os movimentos ambientalistas, feministas e dissidentes, assim como partidos de esquerda, trabalhadores da cultura, cientistas e movimentos territoriais, piqueteros foram também com suas colunas. Mas a novidade ficou por conta da coluna das assembleias de bairro, que, em pouco mais de um mês já tinham armado redes.

Hoje, a Câmara dos Deputados aprovou a Ley “Ómnibus” por 144 votos contra 109, enquanto a vigília dos movimentos frente ao Congresso era reprimida sem outro critério que fazer uma demonstração de força. Na próxima semana, no entanto, terá que ser discutido e votado cada um de seus artigos. O Congresso, porém, debateu, durante semanas, um documento cujo texto era incerto, já que, enquanto a televisão transmitia os parlamentares se revezando no uso da palavra no recinto do Congresso, os partidos aliados ou da oposição branda se encontravam num apartamento do bairro (chique) da Recoleta para negociar o que permaneceria e o que não no texto final. As dificuldades para a acordar tinham a ver com as contradições com os grupos privados, que não têm qualquer solidariedade orgânica entre si. No melhor dos casos, as falas públicas dos parlamentares se referiam à versão inicial que foi se desidratando ao longo dos dias, perdendo quase a metade dos artigos iniciais.

Daniel Scioli, embaixador no Brasil durante o governo do presidente Alberto Fernández e candidato a presidente pelo peronismo e derrotado por Mauricio Macri em 2015 é hoje ministro de Turismo de Javier Milei. Os governadores das províncias são pressionados a apoiar a lei com a ameaça escancarada de que não receberão recursos. Nem Cristina Kirchner, nem o candidato a presidente pelo peronismo Sergio Massa, nem o ex presidente Alberto Fernández tomam qualquer iniciativa. Sua base eleitoral, sem qualquer orientação, se soma às mobilizações que as organizações de esquerda impulsionam. As negociações continuarão sem qualquer atenção às manifestações populares. A ausência de iniciativas por parte do progressismo, porém, cria espaços para iniciativas criativas e autônomas de baixo e à esquerda, como as assembleias territoriais, a melhor notícia dos últimos meses.

Silvia Adoue – Ele nasceu em Buenos Aires. Foi costureira, trabalhou na indústria vidreira e de couro, metalúrgica, designer gráfica e professora do ensino fundamental. Reside no Brasil desde 1982. É educadora popular da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) e professora da UNESP.

Notas:


[1] Na noite de 19 de dezembro de 2001, e depois do anúncio pelo governo de Fernando de la Rua do corralito bancário e do estado de sítio, a população da capital do país saiu batendo panelas em direção ao centro da cidade, onde se encontram as sedes dos poderes executivo e legislativo. No dia seguinte, a rebelião estava instalada e o presidente teve que renunciar.
[2] Algo equivalente às Medidas Provisórias de Brasil, que entram imediatamente em vigor, mas o Congresso tem um prazo para aprovar ou rejeitar.
[3] Patricia Bullrich foi candidata a presidenta pela coligação direitista Juntos por el Cambio, que não passou ao segundo turno.
[4] Ver, por exemplo: https://contrahegemoniaweb.com.ar/2023/12/24/los-negocios-avanzan-quienes-son-los-grandes-empresarios-que-ganan-con-el-dnu-de-milei/ e https://www.elcohetealaluna.com/aliados-en-el-saqueo/

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