Por Agnes de Oliveira
Não há saída senão aceitar de uma vez por todas que fomos inscritas numa guerra aberta contra a nossa existência e que a única forma de sobreviver a ela é lutar ativamente pela vida. – Jota Mombaça
- Ontologia de gênero
Em 1990, Judith Butler publica Problemas de Gênero (1990), que se consolidou como uma das principais referências da chamada Teoria Queer e sua análise do sistema sexo/gênero. Nesse livro, Butler faz uma análise genealógica e crítica da ontologia ou metafísica da substância – à maneira da metafísica da substância moderna – subjacente ao gênero. E expõe como traços de tal ontologia a binariedade hierárquica (homem-mulher), sua cristalização no tempo (permanência e autoidentidade), e sua autonaturalização, assumindo a forma de uma propriedade pré-discursiva da natureza.1 Além disso, Butler nos mostra que não se trata de qualquer substância, mas daquela relativa a um sujeito ou à condição de pessoa como agência por trás de toda ação: o suporte auto-idêntico de atributos e predicados que perfazem uma unidade e coerência interna, como aquela entre sexo, sexualidade e gênero. Nesse sentido, Butler expôs a existência de um vinculo interno entre metafísica da substância e metafísica do sujeito na ontologia de gênero, que põe a identidade como um ideal normativo na modernidade (Butler, 2019b, p.43).2
Contudo, trata-se de uma ontologia contingente, historicamente e politicamente produzida por intermédio da repetição compulsória de um conjunto de práticas no interior de uma estrutura social reguladora e normalizadora, que produz as identidades de gênero.3 O que conduz Butler à conclusão inevitável que a diferença sexual é menos um dado empírico, no sentido de uma diversidade pré-existente, do que uma idealidade ou ficção normativa produzida pelo sistema de gênero e seu processo de autonaturalização.4 A idealidade do sexo é manifesta pelo fato de que existe uma multiplicidade de práticas, formas anatômicas e fisiológicas tanto do ponto de vista genital, quanto hormonal e cromossômico, que escapam à diferença sexual, sendo determinadas como patologias ou crimes a serem violentamente corrigidas, como é o caso da intersexualidade e da transexualidade.
Embora o sexo seja uma idealidade, isso não significa que seja desprovido de realidade, pois atua sobre os processos de captação dos corpos, de suas forças, ações, afetos, percepções e prazeres.5 Preciado resumiu isso bem ao dizer que “Masculino e Feminino são termos sem conteúdo empírico para além das tecnologias que os produzem” (Preciado, 2018, p.111). Em outros termos, a diferença sexual assume o próprio lugar do real enquanto um princípio de organização, produzindo o ser homem, mulher, heterossexual, homossexual, transexual etc.6 E que o sexo desempenhe um papel tão fundamental em nosso mundo é atestado, como nos lembra ainda Preciado, pelo fato que “ter ou não um pênis de um centímetro e meio no momento do nascimento” determina diferenças sociais e políticas fundamentais (Preciado, 2018, p. 77).
Tendo isso em vista, buscarei alisar aqui o sexo como uma metafísica real ou idealidade objetiva que constitui, junto com a diferença racial, a objetividade da universalidade abstrata da modernidade e de sua compulsão expansionista de acumulação de capital. O termo metafísica real é utilizado por Robert Kurz em A substância do Capital (2004) e em Dinheiro sem valor (2012) para caracterizar a abstração real – o conteúdo social do automovimento do dinheiro (capital) – como prius ou matriz social apriorística da relação capital, baseada na objetualidade abstrata do valor, bem como da abstração do trabalho que o produz (Kurz, 2014, p.69 e 73). Ao expor a abstração real como a essência, no sentido metafísico do termo, do processo social moderno, Kurz pôde falar da universalidade objetiva de uma substância social automovente – o valor e sua autovalorização – que determina formalmente o processo de produção material como produção abstrata de riqueza universal expressa na forma monetária. O termo idealidade objetiva, por sua vez, é baseado na definição dada por Ruy Fausto da objetividade das categorias de valor e trabalho abstrato empregadas por Marx. Fausto argumenta que o materialismo do Marx, longe de sua acepção vulgar, “concede a parte do idealismo” (Fausto, p.107), havendo um idealismo objetivo – aquele da abstração real – pelo qual, de certo modo, se reconhece que “o real ‘pensa’, isto é, o real põe, efetua o ato de abstrair” (Ibidem).7 Em ambos os casos, tanto em Kurz quanto em Ruy Fausto, a abstração real é o fundamento do processo social moderno determinado pelo capital como uma substância social automovente. Nesse sentido, estou aqui considerando a metafísica da substância e do sujeito, que Butler analisa como subjacente a ontologia de gênero, como uma metafísica real.
E é sobre a abstração real que constitui a metafísica como processo social e sua relação com as ficções biopolítica da diferença racial e sexual que gostaria me deter nessa primeira parte, antes de adentrar no problema da guerra social. Trata-se nas próximas seções de enquadrar de maneira mais detida o caráter patriarcal e racista de tal substância social, mostrando o nexo entre a metafísica real do valor e a ontologia de gênero.
a) Abstração real e idealidade objetiva
Como estou argumentando, a universalidade abstrata, longe de ser uma arrogância ideológica, perfaz uma metafísica real ou idealidade objetiva. Tal universalidade é portadora de algumas propriedades enquanto forma social, como: homogeneidade qualitativa; indiferença à diversidade sensível, estabelecendo uma igualdade formal que compreende apenas diferenças de natureza quantitativa; e liberdade enquanto forma de ação de um sujeito igualmente abstrato e universal. Nesse sentido, a metafśiica real moderna opera como uma prática social de redução pela qual um universo qualitativamente diverso é reduzido a uma forma comum abstrata, que põe a validade social de uma multiplicidade incomensurável.
O passo seguinte de meu argumento consiste em dizer que esse processo de redução é aquele pelo qual uma multiplicidade sensível existente é reduzida à pura condição biológica. Pois, como observa Robert Kurz, essa abstração fisiológica constitui a substância material da abstração do valor (voltarei a esse ponto).8 Tal prática de redução de uma multiplicidade existente à pura condição biológica, bem como a obsessão que marca suas práticas violentas de correção e extermínio dos desvios, é o que pode ser mais adequadamente compreendida enquanto um processo social de abstração real.
Me refiro aqui ao conceito de abstração real tal como é abordado por Ruy Fausto (1983), mas também pela crítica do valor-cisão (Kurz, 2014; Scholz, 1996), em sua análise sobre a abstração do trabalho e do valor na teoria de Marx, a partir do conceito de redução da diversidade concreta a uma abstração comum.9 Como Ruy Fausto observou, a abstração real não é uma mera generalização mental ou operação lógica do entendimento, como quando subsumimos, a partir de relações de gênero-espécie, uma diversidade empírica (por exemplo, uma diversidade de “árvores”), à generalidade de um conceito comum (o conceito árvore), mas um processo social que torna o concreto mero predicado do abstrato enquanto universalidade singular, com sua natureza qualitativamente homogênea e quantitativa. Assim, a abstração real opera efetivamente uma redução da realidade concreta ao abstrato, que existe de maneira independente, por assim dizer, como uma realidade desvinculada, enquanto abstração, ao lado do concreto. E é, não é demais reforçar, tal lado abstrato o lado social.
A forma-valor e seu valorização como um todo apriorístico ou um substância social é, portanto, ao mesmo tempo uma universalidade e uma singularidade, na medida que se trata de uma universalidade existente ao lado da multiplicidade concreta, que é secundária em relação a essa universalidade realmente existente: as diversas mercadorias e os diversos trabalhos concretos nada mais são que os suportes particulares ou exemplares individuados de um abstrato social total (o valor e o trabalho abstrato que o produz).
Por fim, a abstração real da sociabilidade moderna determina um processo social que é autorreferencial, baseado numa lógica identitária avessa à alteridade (um processo social objetivamente narcísico). E é tal abstração social que está na base da compulsão expansionista e universalizadora da sociabilidade moderna, que visa submeter todos os seres humanos, não-humanos, vivos e não-vivos, à sua lógica abstrata e indiferente aos efeitos que produz no mundo. Há, portanto, uma natureza histórico-dinâmica da abstração e de seus processos sócio-ecológicos destrutivos.
Vemos, assim, que o todo social apriorístico moderno é uma forma de mediação social que visa a si mesma: lembremos, nesse sentido, que a forma de produção social capitalista, baseada no valor e no consumo de força fisiológica de trabalho abstrato, não tem outra finalidade que o próprio valor: o valor é tanto o ponto de partida, quanto o ponto de chegada, em escala ampliada (mais-valor). Trata-se, assim, de trabalho morto (capital constante) ampliado pelo consumo de trabalho vivo (capital variável). Vai da lógica identitária e autotélica imanente a uma forma abstrata de vinculação social, que essa só possa se reproduzir por um processo de acumulação que se pretende interminável (produção pela produção), visando representar todo forma de atividade e produto produzido. É por isso que Kurz enfatizará a importância de se compreender a relação capital e sua abstração real uma substância, embora se trate de uma substancialidade não positivamente ontológica, mas socialmente negativa, imposta a partir da violência e de processos de aniquilação da vida: trata-se de um Absoluto interno realmente existente na formação social moderna, que pretende tudo abarcar, mas marcado por uma contradição interna e por conflitos externos com a própria constituição ecológica do mundo.10
A razão disso é que embora a abstração real da substancialidade moderna possua uma realidade social enquanto tal, sendo sua face concreta apenas o suporte de realização da abstração na dimensão da realidade vivida, ela só pode se efetivar a partir da sua face concreta, enquanto um mal necessário: o processo de produção material. Essa relação entre a forma abstrata do valor-trabalho e a matéria (a forma-material) não é uma relação estática, mas fundamentalmente contraditória e mediada por relações de cisão (que tratarei posteriormente), tendendo a um processo histórico de separação entre produção material e e valorização do valor.
b) Abstração real e contradição em processo
Já no primeiro tomo de Marx, lógica e política (1983), Ruy Fausto observou que a relação entre trabalho abstrato e trabalho concreto, valor de troca e valor de uso, pressupõe uma distinção entre forma e matéria que é interior a um sistema de formas. Isso significa dizer que, no interior do capitalismo enquanto modo de produção de mercadorias, a distinção entre forma e matéria é imanente um sistema de formas na qual há uma forma da própria materialidade (valor de uso, trabalho concreto, processo de trabalho). Além disso, no interior desse sistema de formas, há um desdobramento interno à forma abstrata (ou suprassensível) entre essência (valor, trabalho abstrato, processo de valorização) e aparência (mercadoria, dinheiro, valor de troca, lucro, salário etc.). A meu ver, Nuno Miguel (2020b) expôs bem esse sistema no seguinte diagrama:
Kurz chegou a considerar que os conflitos na história da filosofia moderna entre idealismo e materialismo pertencem a esse sistema de formas característico da formação social moderna e da relação conflituosa interna entre a forma abstrata e matéria abstrata (Kurz, 2004). Essa maneira de enquadrar o problema é muito distinta daquela feita pelo marxismo tradicional. Em larga medida, o marxismo considerou o valor de uso e o trabalho concreto/útil como a parte “material” e “natural” de todo processo humano de produção e de todo produto, como quando se diz que criar valores de uso é uma condição existencial do trabalho humano, uma necessidade natural da relação entre seres humanos e natureza, mediada pelo trabalho.
Ora, a questão é que a categoria de “valor de uso” já é uma abstração que mostra sua filiação imanente com aquela do valor e do trabalho abstraído de toda utilidade (trabalho humano em geral). Ocorre que a abstração real do valor e do trabalho implica uma abstração da própria materialidade, que se torna uma materialidade qualquer enquanto mero suporte da abstração real da valorização do valor, enquanto o concreto da universalidade. O “valor de uso”, assim, remete a uma generalidade concreta qualquer, havendo uma indiferença social, do ponto de vista do valor, se a utilidade será a das granadas de mão ou das calças (Kurz, 2004). O efeito da abstração no nível da materialidade também se faz, de modo fenomenológico, perceptível e experienciado sensivelmente tanto nos processos técnicos de produção de mercadorias em massa, quanto no processo de trabalho, que tende a se tornar não só homogêneo, mas também torna indiferente a passagem de um trabalho para o outro, sendo tudo, no fim, “trabalho”, independente da sua utilidade específica.
A respeito dessa relação entre forma e matéria, é um mérito da crítica do valor-cisão ter não só explicitado o caráter contraditório dessa relação, mas diagnosticado o ponto histórico em que é “alcançado o limiar para além do qual a relação de valor – que, enquanto tal, está ligada ao desenvolvimento das forças produtivas – deve começar a colapsar”, sendo tal colapso não um fenômeno empírico imediato, mas “um processo histórico, toda uma época histórica de várias décadas, na qual a economia mundial capitalista, no vórtice da crise e do processo de desvalorização, não poderá gerar senão um aumento do desemprego em massa “ (Kurz, 2018, p.79 e 63 respectivamente).11 Tal limiar transposto, portanto, é aquele no qual a relação entre eliminação e reabsorção do trabalho vivo se altera, inaugurando um processo histórico no qual é eliminado, em termos absolutos, mais trabalho vivo do que o sistema social é capaz de absorver. Se trata, em outros termos, do esgotamento histórica da expansão da acumulação capitalista.
O processo de efetivação da valorização do valor é, como se sabe, mediado pela concorrência que se apresenta tanto no nível da relação entre capitalistas particulares, quanto no nível da relação entre os Estados no mercado mundial. O que acarreta um processo social contínuo de desenvolvimento das forças produtivas com vista a reduzir os custos com o a força de trabalho empregada, ampliando a parte relativa da mais-valia no novo valor criado. Assim, faz parte da dinâmica lógico-histórica de um processo de produção social determinado pela abstração real do valor não só um movimento de acumulação baseado na expansão extensiva e absoluta, mas também na expansão intensiva e relativa (Kurz,2018, p.47). Tal expansão intensiva é feita pelo desenvolvimento contínuo das forças produtivas e da organização científica do processo de produção social. A cientifização do processo social resulta tanto pda aplicação das chamadas ciências naturais pelas quais são inventadas novas máquinas-técnicas, quanto das ciências humanas, dentre elas a “ciência do trabalho e da sua organização”, como o taylorismo, fordismo e toyotismo.12
Os efeitos desse processo de racionalização técnico-científica da produção material, pelo qual se busca reduzir os custos com a força de trabalho abstrata empregada, é uma eliminação contínua do trabalho humano (bem como da capacidade aquisitiva mundial) que, entretanto, é a própria fonte ou substância do valor. Félix Guattari, em seus manuscritos para O Anti-Édipo, expressou bem essa relação dinâmica capitalista ao afirmar que “o ideal capitalista é aquele de uma máquina pura, sem trabalho humano e que seria capaz de se reproduzir maquinicamente” (Guattari, 2012, p.244, tradução minha).
Essa eliminação do trabalho humano, ocasionada pela tendência de automação da produção imediata, pôde ser compensada historicamente a partir de um processo de expansão extensiva e absoluta do capitalismo, e, consequentemente, da absorção em termos absolutos de força de trabalho: seja por via de neocolonizações, seja pela criação de novos ramos e setores industriais. Contudo, atualmente, o nível de produtividade social passou a eliminar mais trabalho do que é capaz de absorver de maneira compensatória, produzindo, assim, um fenômeno de desemprego estrutural independente dos ciclos econômicos, bem como uma “crise do dinheiro” na qual se expressa uma separação entre a riqueza material e sua forma de expressão monetária, tendo como marco histórico o fim do padrão ouro-dólar em 1971 (Kurz, 2012, p.59-62). Tal crise do dinheiro significa, nesse sentido, que a produção material, dado o novo nível de produtividade social, é incapaz de atender a “régua de rentabilidade” social necessária para levar adiante um processo de acumulação ampliada do capital, baseada na ampliação do consumo da força de trabalho abstrato. Se trata, assim, de um processo histórico de redução da massa de mais-valia absoluta e da sua acumulação. O que dá início a um processo histórico de dessubstancialização do capital ou uma desvalorização do valor, decorrente da eliminação estrutural do trabalho abstrato.
Diante dessa “superacumulação estrutural” – na qual a produção material já não é capaz sustentar um processo de valorização do valor – o capital-monetário passa a se multiplicar de maneira simulada, sobretudo por meio do endividamento e da especulação com ativos financeiros imobiliários e mobiliários. Essa separação estrutural entre o automovimento do dinheiro e a produção material se expressa em três fenômenos mundiais articulados entre si: a desindustrialização e paralisação de recursos materiais em diversas regiões do globo; o endividamento mundial galopante, do qual a produção material se tornou dependente, e que hoje ultrapassa em mais de 300% a riqueza material produzida mundialmente. O endividamento mundial indica, assim, a incapacidade da produção social de atender a montanha de dívida com seus próprios recursos; e a formação de uma superestrutura especulativa em relação à qual a própria produção material se tornou também dependente para sua reprodução (Kurz, 1992, p.215-217).13
Aqui o debate clássico do marxismo sobre a lei da queda tendencial da taxa de lucro tem que lidar com um problema qualitativamente novo. Tal lei social expressava um limite relativo do capital, expresso na forma de uma tendência histórica de diminuição da taxa de lucro em decorrência do aumento da composição orgânica e da intensidade de capital (o aumento proporcional do capital constante em relação ao capital variável). Se argumentava, assim, que essa queda tenderia se aproximar sempre do zero, sem nunca de fato atingí-lo em decorrência do deslocamento dos limites e da sua reconstituição em escala ampliada.14 Ora, isso se mantém como verdade numa situação histórica na qual a redução da taxa de lucro não implicava uma redução da massa absoluta de mais-valia, mas sua ampliação por meio do movimento expansivo do capital e da absorção da força do trabalho. No ponto histórico em que a produtividade social passa a implicar uma diminuição absoluta da força de trabalho ainda aplicável, “a queda (relativa) da taxa de lucro também se traduz na queda absoluta da massa de lucro absoluta. A lei consiste então em que o capital passa tendencialmente para um estado em que já não consegue cumprir sua própria lei de acumulação de ‘riqueza abstrata’” (Kurz, 2014, p.281). Aqui, portanto, já não se trata de um limite relativo, mas um limite lógico-histórico absoluto que foi atingido.
Nesse contexto, a crise da relação do valor e, consequentemente, do trabalho como forma de mediação social, revela não só sua contingência histórica e ontológica, mas um tornar-se supérfluo da própria humanidade que se forjou por meio dessa relação, intensificando os processos violentos de conservação de uma forma de vinculação em crise, como buscarei mostrar adiante. Para isso, introduzirei agora o problema da relação entre abstração real e biopolítica.
c) Abstração real e biopolítica
Em Marx: lógica e política, Ruy Fausto chegou a observar que é por intermédio do processo social de redução/abstração real, realizada pelo valor e pelo trabalho abstrato, que a realidade biológica é posta como tendo uma validade social (Fausto, 1987, p.92). Um processo que é realizado cotidianamente no interior do próprio processo de produção de mercadorias. Assim, a realização dos diversos trabalhos concretos e qualitativamente distintos entre si (da produção de armas à sabonetes) é, ao mesmo tempo, a realização de um processo de redução desses trabalhos concretos a uma pura capacidade fisiológica comum. Portanto, a redução a pura combustão de força fisiológica é o que estabelece a unidade e identidade social à diversidade concreta, isto é, que faz com que os diversos trabalhos concretos sejam socializados como formas de expressão de um mesmo trabalho abstrato. Nuno Machado comenta, nesse sentido, que através dos diversos trabalhos concretos é o trabalho abstrato, na condição de uma substância social, que se “particulariza” ou se encarna em todos os trabalhos individuais com seus dispêndios fisiológicos(Machado, 2020, p.47). O capital é, assim, fundamentalmente, um processo social de combustão de forças fisiológicas abstratas como um fim em si mesmo, indiferente a suas formas concretas de realização.
Posto isso, é necessário nos atentarmos aqui para o fato que não é realidade biológica que constitui o trabalho abstrato, como se o trabalho fosse uma condição natural e antropológica dos seres humanos. Pois trata-se não só de uma concepção comum no marxismo tradicional, que teoriza o trabalho como uma condição da própria espécie humana e da sua relação com a natureza, mas também de algo muito difundido nas mais diversas teorias (indo de Locke à Bataille) e no próprio senso comum. Tal concepção do trabalho já é uma naturalização de uma forma historicamente especifica de produção. A realidade biológica, entretanto, não é dada de imediata, mas é resultado de um processo social que, a partir de uma abstração social realizada pela imposição do trabalho abstrato produtor de valor, reduz o mundo a uma pura realidade biológica desvinculada e a estabelece como tendo validade social.
É o trabalho abstrato, como forma de mediação do capital, que põe a realidade fisiológica abstrata como trabalho. A “imediatidade” do biológico, pela qual julgamos ter acesso direto a uma realidade dada, é, na verdade, uma fantasmagoria real: o efeito de uma forma específica de mediação social que reduz os indivíduos, por intermédio do trabalho, a suas puras forças fisiológicas como substância social da riqueza abstrata (valor) expressa na forma do dinheiro. Corrobora para isso o fato de que não é todo “dispêndio fisiológico” que é válido socialmente como trabalho e, portanto, como produtivos de riqueza, mas apenas aqueles rentáveis do ponto de vista do capital e seu tempo socialmente necessário.
Por outras vias, Michel Foucault chegou, a meu ver, a conclusões parecidas, no que diz respeito a emergência de uma realidade biológica desvinculada como tendo validade social, ao analisar a emergência histórica da população humana enquanto espécie como objeto da economia política. A partir da análise do que conceitualiza como biopoder, Foucault insistiu inúmeras vezes que as sociedades modernas começaram a levar em conta, como núcleo de um novo regime de exercício do poder que age ao mesmo no nível anatômico e fisiológico dos corpos e no nível da população, “o fato biológico fundamental de que o ser humano constitui uma espécie humana”. Contudo, longe de ser um dado trans-histórico, a realidade desse fato biológico fundamental, bem como sua ideia, estabelecido como campo específico de intervenção e estabelecimento de um governo dos vivos, são “sem dúvida absolutamente modernas” (Foucault, 2008, p.3 e 15, grifo meu).15
Tendo em vista a posição social da realidade biológica desvinculada, acredito ser possível não só extrair o nexo estrutural entre a imposição da relação valor como matriz social apriorística e biologização das relações sociais. Mas também estabelecer a relação entre a abstração real da relação do valor e do trabalho com as diferenças raciais e sexuais como formas de relação social. Com efeito, podemos dizer a abstração real é indissociável de uma metafísica naturalista, que Judith Butler encontrou como subjacente à ontologia do gênero, com sua metafísica da substância e do sujeito. Donde seria possível explicar a obsessão moderna, imanente ao desenvolvimento de forças técnico-científicas e busca cada vez maior de um controle da natureza, com o estabelecimento de diferenças anatômicas e fisiológicas, a partir da racialização e da sexualização, pelas quais se busca classificar os seres e estabelecer as formas sociais de vinculações modernas do ponto de vista econômico, jurídico-política, simbólico e moral.
Nesse sentido, se não é toda e qualquer força fisiológica que vale socialmente como trabalho, é preciso interrogarmos em que medida a delimitação, desvinculação e validação social imposta pelo trabalho como abstração real pressupõe, como constitutivas, também as diferenciações postas pela racialização e sexualização. Assim, pretendo sustentar aqui que a abstração real, que constitui o trabalho abstrato e o valor em seu processo de acumulação, é indissociável das ficções biopolíticas do sexo, da sexualidade, do gênero e da raça, pelas quais a abstração e sua universalidade como matriz de sociabilidade se efetiva e produz efeitos no nível da realidade vivida em todos os níveis da vida social.
Por um lado, como vimos, a redução biopolítica efetivada pela prática social de abstração real está na base do trabalho abstrato como forma de atividade capitalista produtora de valor, que reduz cotidianamente os diversos trabalhos concretos a uma realidade fisiológica idêntica como substância material abstrata do valor.
Por outro lado, a abstração real que põe o trabalho abstrato como pura realidade fisiológica pressupõe a delimitação do “avesso” do trabalho, isto é, do que será colocado como anatípoda da forma do valor e do trabalho, possuindo qualidades e capacidades opostas e exteriores ao trabalho e, por isso, desvalorizadas estruturalmente. O que é realizado pela diferenciação sexual e racial.
Como argumenta Roswitha Scholz (1998), o trabalho abstrato pressupõe uma cisão, conforme relações hierárquicas e heterossexuais de gênero (masculinidade e femilinidade), de um conjunto de qualidade atividades (com suas forças fisiológicas) que não assumem a forma do trabalho produtor de valor, mas a da reprodução de seres humanos. Lembremos que a produção social segundo a forma do valor não tem outra finalidade que não a si mesma e, portanto, não pode por si só garantir a reprodução social, sendo indiferente às necessidades concretas e sensíveis dos seres humanos. Assim, por um lado, a produção do valor pressupõe, por outro lado, a instituição de um conjunto de atividades, normalmente referidas como trabalho afetivo, que possuem uma outra lógica que não a do valor e de sua abstração real, embora este as pressuponha. Tais atividades, bem como um conjunto de qualidades como a emoção e a sensibilidade, são estruturalmente conotadas como femininas: como as atividades domésticas, do cuidado, do amor, da educação dos filhos, da provisão e do “convívio social” que garantem a reprodução dos seres humanos e dos vínculos sociais. Enquanto, por outro lado, a esfera da produção do valor, bem como da política, marcadas pela abstração e indiferença ao sensível segundo uma “razão abstrata”, serão conotadas como masculinas e brancas. Com razão, Scholz, em seu ensaio seminal O valor é o homem (1993), no qual apresenta seu teorema do valor-cisão,caracterizará a dominação patriarcal moderna, em sua especificidade histórica, como um patriarcado produtor de mercadorias, explicitando a natureza estruturalmente masculina da abstração real do valor, do trabalho, da mercadoria, do dinheiro e da política (forma-Estado).
Contudo, Scholz (2004) ainda argumenta que a cisão patriarcal do valor, que põe o feminino como o Outro desvalorizado do valor e do trabalho abstrato, não se dá somente na separação entre esfera pública e privada, entre, de um lado, esfera da produção de mercadorias e dinheiro por intermédio do trabalho, bem como da política como forma social de regulação, e, do outro, a esfera reprodução social dos seres humanos. A cisão, de maneira distinta, não é uma diferença empírica, mas é um princípio social transversal a todas as esferas sociais, sendo antes constitutiva da própria objetividade patriarcal do valor enquanto matriz de sociabilidade. Nesse sentido, o valor não um todo social idêntico a si mesmo: sua universalidade singular e objetiva constitui uma totalidade fragmentária (Scholz, 2004). Os fatos de muitas mulheres desempenharem trabalhos assalariados e haver a mercantilização, cada vez mais, de atividades reprodutivas, não muda a natureza cindida da relação valor, na medida em que a força de trabalho feminilizada sofrerá, de maneira transversal, com a desvalorização de feminino como o Outro do valor, seja na forma de salários mais baixos, da sobrerrepresentação em determinados postos de trabalho ou da descartabilidade pelo desemprego. Na medida em que a cisão patriarcal constitui, a priori, a própria matriz da sociabilidade, ela afeta, inclusive, os homens que desempenham trabalhados considerados como “femininos” e, por isso, desvalorizados e precarizados socialmente, como os trabalhos de limpeza e cuidado. Com efeito, a abstração biopolítica que está na base da realização cotidiana do trabalho abstrato pressupõe a ficção biopolítica da diferença sexual, pela qual o trabalho abstrato é constituído socialmente, em sua universalidade objetiva,como uma forma de domínio social patriarcal.
A cisão patriarcal do valor que põe a diferença heterossexual entre feminilidade e masculinidade também produz as diferenças em relação às normas heterossexuais de gênero, sexualidade e sexo, em que os sujeitos determinados como desviantes serão, simultaneamente, postos como Outros tanto da esfera do valor, quanto da reprodução, atribuindo qualidades que seriam não só intrinsecamente avessas ao trabalho, mas também à reprodução social, ameaçando-a (homossexualidade, traveslidade, lesbianidade, queeridade, interssexualidade etc.). Portanto, a violência sexual, embora pertença e constitua a forma-valor e sua reprodução, não pode ser suficientemente explicada pelas categorias econômicas, na medida em que se trata de uma violência entre o valor e seus Outros desvalorizados a partir de relações de gênero. Não por outra razão, quando falamos de violências sexuais falamos, em larga medida, de violências que se realizam fora da relação valor e do processo de trabalho, seja no espaço público ou privado. Como é o caso do feminicídio e transfeminicídio, praticados, não rara as vezes, por companheiros e ex-companheiros de mulheres (cis ou trans) e travestis.16
Além disso, a validação social no interior da substância social do patriarcado do valor e do trabalho abstratotambém pressupõe a diferença racial, desvalorizando estruturalmente não os trabalhos realizados por pessoas racializadas, mas suas vidas. Contudo, isso é feito de uma maneira distinta, embora sistemicamente interligada, com a diferenciação de gênero. A diferença racial constitutiva da abstração real do valor e do trabalho põe o Outro racial como um Outro do valor e do trabalho abstrato sobre o qual a violência e expropriação são justificadas como processos de integração e civilização pela socialibidade do valor e da reprodução de gênero moderna. Ou seja, a diferença racial explícita o patriarcado produtor de mercadorias, com sua diferenciação entre masculinidade e feminilidade,como “modelo civilizacional”. Assim, é também impossível desvincular a universalidade objetiva do valor e do trabalho do racismo que lhe constitui.
Pondo a raça na equação do valor, Denise Ferreira da Silva nos fala, assim, de uma acumulação negativa, implicada pela própria acumulação de capital, que através de “processos de exclusão econômica e alienação jurídica – escravidão, segregação, encarceramento em massa – deixaram uma porcentagem desproporcional da população negra economicamente despossuída” (Ferreira da Silva, 2019, p.178), ao mesmo tempo que transubstancializa tais efeitos em “defeitos naturais (intelectuais e morais) que são sinalizados por diferenças físicas, práticas, instituições, etc” (Ibidem, pp.35).Há, assim, um nexo estrutural entre a abstração real do valor e do trabalho enquanto formas de dominação social, supremacia branca e processos sociais de embranquecimento, que aparecem como “desenvolvimento” e “civilização”. Frank Wilderson III sintetiza esse vinculo ao afirmar que:
“o trabalho é uma categoria branca. O fato de milhões e milhões de negros trabalharem não explica nada. A questão é que nunca se pretendeu que fôssemos trabalhadores; em outras palavras, o capital e a supremacia branca nãos nos imaginam incorporados ou inseridos. Desde o início, estivemos destinado a ser acumulados e à morte […]. Hoje, no final do século XX, ainda não se espera de nós que sejamos trabalhadores. Estamos destinados à prisão e à morte” (apud Wang, 2022, p.90).
Podemos ver que tal caráter sexual (masculino) e racial (branco) específico da relação valor e do trabalho abstrato como forma de dominação social, põe o problema da própria constituição da Humanidade em geral e sua universalidade, pressupondo uma distinção não só entre a humanidade e uma sub-humanidade, mas também entre humanidade e uma não-humanidade absoluta, como na distinção entre humano e animal: o trabalho aparece como condição de acesso à Humanidade e como sua faculdade exclusiva de atualização da Razão.
E é preciso observa, aqui, que mesmo o multiculturalismo contemporâneo não desafia ou rompe com as formas basilares da sociabilidade moderna, mesmo em sua crise – da qual o multiculturalismo é um momento, tendo em vista a crise dos Estados-nações, a globalização e os fluxos migratórios de refugiados. Em outras palavras, a diferença cultural não rompe com a relação intrínseca entre abstração real e seu nexo com o racial, mas repõe, inclusive, os efeitos do racial (Ferreira da Silva, 2022). Isabelle Stengers, nos lembra ainda que o multiculturalismo pressupõe que sob a diversidade cultural reconhecida há, ainda assim, uma mesma natureza. Permanece um pressuposto do multiculturalismo, portanto, que dentre as diversas culturas haveria não só aquela que, por meio dos seus saberes, saberia melhor interrogar a natureza e conhecer suas estruturas objetivas e universais, isto é, “forçar a natureza a responder” às perguntas postas pela Razão (Kant, Crítica da Razão Pura, B XIV). Mas também que o reconhecimento da diferenças culturais, e sua autorrepresentações, devam se dar no interior das formas basilares econômicas, jurídico-políticas, simbólicas e morais da modernidade que produz a subjugação racial. 17
d) A universalidade singular da Humanidade e sua cisão
Como correlato dessa redução do mundo a uma mesma natureza abstrata, emerge uma Humanidade igualmente abstrata – porque universal – e não menos objetiva, portadora da igualdade e da liberdade, entendida como capacidade de autodeterminação e de dar para si um mundo. A categoria do trabalho humano em geral aparece no texto moderno justamente como a atividade pela qual a humanidade dá para si um mundo racional, imprimindo nele as marcas de sua vontade livre e de verdade. Aqui se torna necessário nos desfazermos de equívocos. Como observa Denise Ferreira da Silva, em sua crítica à Sylvia Wynter e Judith Butler, o problema em torno do princípio da humanidade, bem como de seus atributos de igualdade e liberdade, não decorre de uma cultura particular que busca se auto-denominar universal, excluindo outras humanidades da Humanidade (Ferreira da Silva, 2019, p.167). Pois a própria distinção entre universal e particular é uma invenção do pensamento e dos pilares onto-epistemológicos da modernidade pelo qual o Sujeito moderno é instituído. Argumento aqui, portanto, que a Humanidade é, para além de um produto ideológico, uma universalidade singular indissociável da emergência da objetividade valor e do trabalho abstrato, bem como da diferença sexual e racial que constitui o valor-trabalho como princípio de sociabilidade global.
Como mostrei na seção anterior, a abstração real é fundamentalmente um princípio masculino e branco de sociabilidade, que não só produz para si seu suporte/predicado efetivo ou concreto (os homens brancos-ocidentais empíricos enquanto portadores e executores ideais da relação valor-trabalho), mas também todas as pessoas, e seres não-humanos, que são dissociados da abstração de maneira a priori e transversal à todas às esferas sociais (Scholz, 2004). Sendo o valor, então, um todo social apriorístico quebrado ou fragmentário. É tal cisão, constitutiva da abstração real e de suas ficções biopolíticas, que delimita o campo global e desvinculado da universalidade singular do processo de valorização do valor, em oposição aos seus Outros racializados e sexualizados. É a esfera desvinculada do valor e do trabalho que se constituiu historicamente como esfera da afirmação da liberdade e igualdade entre seres humanos. Tal liberdade e igualdade é expressa sobretudo na forma jurídico-política do contrato entre de sujeitos proprietários (seja dos meios de produção, seja da força de trabalho) e capazes de autodeterminação (seja na relação entre sujeitos individuais, seja na relação entre Estados no mercado mundial).
É, portanto, tendo em vista o vinculo entre a abstração real como princípio sexo-racial de sociabilidade e a determinação formal da humanidade em geral vinculada ao trabalho abstrato, que considero aqui a sexualização e racialização como condições de determinação formal da humanidade, qualificada como um sujeito universal e capaz de autodeterminação, bem como de todas as categorias correlatas que enformam o projeto ontoepistemológico do mundo moderno: como razão, trabalho, valor, soberania, direito, concorrência etc.
e) Uma Humanidade que abole a si mesma
Se, como vimos, a substância social do valor, agora devidamente enquadrada como matriz social apriorística de dominação patriarcal e racial, é uma substância social que possui uma dinâmica lógico-histórica contraditória no interior da qual o capital elimina sua própria fonte social. Então devemos considerar que a própria Humanidade, vinculada ao trabalho como sua atividade pela qual sua universalidade se realiza, é objetivamente contraditória. Ou seja, na medida em que o trabalho abstrato se torna supérfluo, a própria Humanidade também se torna, enquanto uma abstração social-real. A crise da humanidade, tanto do ponto de vista social, quanto ecológico, é uma crise, nesse sentido, da própria dominação patriarcal e racial, que revela não só sua contingência enquanto forma de sociabilidade e dominação, mas intensifica sua violência de autopreservação constitutiva diante da crise lógico-histórica absoluta por ela mesma produzida. Há assim, um masculinismo e um racismo de crise, isto é, que não se afirmam mais no interior de um processo histórico de integração, desenvolvimento e civilização, mas de sua decomposição.
Stephen Granham, em Cidades sitiadas (2011), nesse sentido, observou um importante deslocamento no interior da doutrina militar estado-unidense que sustenta as novas práticas de guerra urbana do Ocidente: o deslocamento de uma teoria da modernização e do desenvolvimento para uma teoria da desmodernização, visando sobretudo a destruição de infraestruturas e o desligamento de cidades inteiras (Graham, 2016, p.355-57). Se tornou, assim, comum as declarações de militares de bombardear cidades inteiras, sobretudo em países no Oriente Médio, para fazê-los regredir até a “Idade da Pedra” (Ibidem, p.358), mostrando uma virada na dinâmica do imperialismo do mercado mundial, não mais orientada para o desenvolvimento.
Assim, cada vez mais seres humanos, ao invés de serem “integrados” via modernização, estão sendo expelidos da própria Humanidade enquanto universalidade singular. Tal situação sistêmica também tem intensificado a competição entre os agentes sociais do valor em todos os níveis e classes sociais: no nível dos capitais, dos Estados e do trabalho. A competição é uma forma de mediação social intrinsecamente patriarcal. Não é mero acaso, nesse sentido, que a subjetividade masculina seja marcada pela compulsão à competitividade entre seus pares e os Outros que aparecem como obstáculos para a realização de sua autodeterminação. E, como observa Kurz, a ultima ratio da concorrência e da busca pela autoafirmação no interior da forma patriarcal do valor e do trabalho, é a violência total ou a guerra, eventos estruturais da dominação patriarcal e racial moderna. A contrapelo das afirmações segundo às quais a guerra é resultado das crises, mas sem explicitar o caráter patriarcal e racial da concorrência como forma de mediação social, Kurz argumenta que:
“A tendência para a guerra quente, para a violência nua, e que nesse século (XX), por duas vezes, tornou real a guerra mundial, com milhões de vítimas, é a ultima ratio da concorrência. É bastante evidente que, no sistema capitalista mundial, mais conhecido como imperialismo, a guerra não é de modo algum a consequência direta da ‘crise econômica’, nem da crise de ‘superprodução’, nem de qualquer outra, mas se encontra baseada na lógica da concorrência do mercado mundial e na dinâmica interna da política mundial erigida sobre ela” (Kurz, 2018, p.48).
Entretanto, enquanto a guerra, enquanto uma forma de violência total, é uma “tendência” ou uma possibilidade latente entre os sujeitos soberanos e suas estruturas jurídico-políticas (o Estado moderno), quando nos olhamos para as minorias raciais, de gênero e sexualidade, vemos que ela é algo permanente E qui voltamos ao nosso ponto inicial, para dar nosso giro rumo ao problema da guerra social constitutiva da ontologia de gênero da sociabilidade moderna do valor e do trabalho abstrato.
LIMIAR: da abstração da ontologia de gênero à guerra
Em Quadros de Guerra (2009), uma obra posterior à Problemas de Gênero, Butler retoma a ideia segundo a qual gênero constitui um enquadramento ontológico e normativo que produz processos diferenciais de inteligibilidade das vidas. Butler argumenta que a pergunta O que é uma vida? constitui um problema ontológico cuja tentativa de determinar o campo de referência do seu Ser pressupõe uma seleção, que aciona processos sociais e políticos que delimitam, ao mesmo tempo, vidas que são reconhecidas enquanto tais e vidas que não o são. Essa seleção normativa pela qual a vida é produzida está na base de uma distribuição desigual da violência. Tendo isso em vista, Butler argumenta que a norma torna, então, “mais fácil ou mais difícil” empreender a guerra. Gênero e raça são para Butler formas normativas pelas quais uma distribuição desigual da violência e exposição à morte é realizada. Na primeira parte desse texto, busquei argumentar que a distribuição desigual da violência é indissociável da abstração real do capital e sua ontologia de gênero subjacente, que possui, seguindo a expressão de Scholz, a forma de um patriarcado produtor de mercadorias
Tendo isso em vista, gostaria de sugerir que não só a ontologia do gênero torna “mais fácil ou mais difícil” empreender a guerra, como argumenta Butler, mas que ela é, em si mesma, uma guerra ontológica e social permanente constitutiva da modernidade, da sua universalidade abstrata expansionista, do sujeito moderno capaz de autodeterminação, da sua vontade de verdade e posição paranoica em relação ao indeterminável do ponto de vista do valor. Assim, é pela guerra que a norma se realiza e ordena o mundo. A guerra da norma demarca os espaços de paz e de terror, constitui e delimita a universalidade do campo jurídico-político do Estado e seu sujeito humano e de direito correlato (branco, cisgênero, proprietário ou trabalhador etc.), bem como condiciona e constitui o processo de abstração real da valorização do valor capitalista.
1 A partir da teoria de Butler, Vergueiro destaca como constitutivo da definição da cisgeneridade, enquanto matriz da ontologia de gênero, três eixos: pré-discursividade, binariedade e permanência (Vergueiro, 2016, p.257)
2 A identidade como ideal normativo significa que tudo que não cumprir com os critérios de gênero de “coerência” e “continuidade” que garantem o status autoidêntico da condição de “pessoa” se torna inteligível, sendo submetido a processos de patologização e criminalização, por exemplo (Butler, 2019, p.43)
3 “A presença aqui é que o ‘ser’ de um gênero é um efeito, objeto de uma investigação genealógica que mapeia os parâmetros políticos de sua construção no modo de uma ontologia” (Butler, 2019, p.68-69).
4“Resulta daí que o gênero não está para a cultura com o sexo para a natureza; ele também é o meio discursivo/cultural pelo qual ‘a natureza sexuada’ ou ‘um sexo natural’ é produzido e estabelecido como pré-discursivo’, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura” (Ibidem, p.27).
5 Michel Foucault em Histórica da Sexualidade havia dado uma definição do sexo como uma instância ideal, que exerce efeitos sobre a realidade: “O sexo, essa instância que parece dominar-nos, esse segredo que nos parece subjacente a tudo o que somos, esse ponto que nos fascina pelo poder que manifesta e pelo sentido que oculta, ao qual podemos revelar o que somos e liberar-nos o que nos define, o sexo nada mais é do que um ponto ideal tornado necessário pelo dispositivo de sexualidade e por seu financiamento.” E ainda, o sexo é “o elemento mais especulativo, mais ideal e igualmente mais interior, num dispositivo de sexualidade, que o poder organiza em suas captações dos corpos, de sua materialidade, de suas forças, suas energias, suas sensações seus prazeres” (Foucault, 2019 p.169).
6 É importante termos em mente que Butler em momento algum pretende dizer que a ontologia do gênero é uma mera “ilusão” ou “artificialidade”, no sentido de contrapor a essa ilusão ou artificialidade um “real autêntico”. Ao contrário, Butler sugere que “certas configurações culturais do gênero assumem o lugar do ‘real’ e consolidam e incrementam sua hegemonia por meio de uma autonaturalização apta e bem-sucedida” (Butler, 2019, p.69).
7Kurz em A substância do Capital também chega a falar de um idealismo real ou deuma idealidade objetivada por processos históricos para caracterizar a metafísica real constitutiva da sociabilidade moderna pela relação de valor (Kurz, 2004).
8Sobre isso, ver o capítulo A substância material abstrata do fetiche do capital, em Kurz, 2014, p.172-184.
9 Ruy Fausto menciona a seguinte passagem de Marx: “Para medir os valores de uso das mercadorias pelo tempo de trabalho que elas contêm, é preciso que os diferentes trabalhos, eles próprios, sejam reduzidos a um trabalho não diferenciado, uniforme, simples, em resumo a um trabalho que seja qualitativamente o mesmo e só se diferencie quantitativamente. Esta redução aparece como uma abstração, mas é uma abstração que se realiza todos os dias no processo de produção social. A resolução de todas as mercadorias em tempo de trabalho não é uma abstração maior nem ao mesmo tempo menos real (keine grõssere Abstraktion aber (…) keine minder reellé) do que a resolução em ar de todos os corpos orgânicos” (apud Fausto, 1987 p.90).
10 “É por tudo isto que nem sequer é possível chegar a uma crítica radical sem o conceito de uma substancialidade negativa da relação de valor ou de capital. Por outro lado, a pretensão de Absoluto desta substancialidade negativa também entra em conflito com a própria constituição física do mundo, manifestando-se sob a forma de um processo destrutivo aniquilador da vida; sobretudo, porém, esta pretensão entra igualmente em conflito com a contraditoriedade interna da substancialidade capitalista enquanto tal, e assim se manifesta sob a forma de processo de crise endémico desta formação histórico-social. É por isso que sem o conceito de substancialidade negativa também não é possível desenvolver uma adequada teoria da crise” (Kurz, 2004).
11Em seu ensaio seminal A crise do valor de troca (1986), Kurz comenta que a determinação do processo de contradição capitalista “é a relação entre matéria e forma, e é ela que deve ser conceitualmente desenvolvida para se poder compreender a celebrada realidade ‘empírica’ e superficial”. Tal contradição se passa “entre a produtividade material, por um lado, e o caráter do valor ou de mercadoria, por outro, como núcleo essencial da história do capital” (Kurz, 2018, p.17).
12Há um vinculo entre ciências humanas e desenvolvimento da produtividade técnico-científica que é, em larga medida, ignorado. Mas como Foucault bem observou, a emergência das ciências humanas, como a psicologia, a psiquiatria, a criminologia, a pedagogia etc., se dá no interior de um processo histórico de “disciplinamento” dos saberes e da criação de uma “tecnologia disciplinar do trabalho” (Foucault, 1999, p.44-47 e p.287)
13Sobre a atual situação do endividamento mundial, ver o texto de Maurílio Botelho: Rumo ao desconhecido: endividamento mundial, crise monetária e colapso capitalista. In: blog da Boitempo. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2018/07/23/rumo-ao-desconhecido-endividamento-mundial-crise-monetaria-e-colapso-capitalista/. Acesso em 03 de março de 2024.
14Veja, por exemplo, a interpretação da lei da queda tendencial da taxa de lucro em dada por Deleuze e Guattari, em O Anti-Édipo, segundo a qual o capital só conhece um limite relativo interno sempre deslocado, contrariado e reconstituído. Assim, dirão que a tendência de redução da taxa de lucro não tem fim (2011,p.306).
15Sobre a relação genealógica entre governamentalização do Estado moderno e o surgimento da economia e da população como realidade sobre as quais se trata de intervir e governar seus fenômenos e seus leis, ver Foucault, 2008, p.143
16Como indica os relatórios da ANTRA (Associação Nacional de Travesits e Transexuais), no caso de transfeminicídio envolvendo travestis pobres e racializadas, é muito frequente a violência seja realizada em contexto de programas sexuais contratados (Benevides, 2024, p.69). Contudo, ainda nesses casos, explicar as violências nesse contexto puramente a partir de categorias e práticas econômicas, como a expropriação, é insuficiente. Embora se trate de situações que revelam a violência constitutiva do valor, esta é uma violência (ao mesmo tempo econômica e sexual-erótica) realizada enquanto autopreservação da masculinidade contra um Outro desvalorizado, e por isso sempre-já expropriável do ponto de vista das relações contratuais, e experienciado como ameaçador: a travestilidade.
17 “E não se trata sequer de uma simples ideologia, que já estaria superada porque viveríamos em um mundo ‘multicultural’. Nossa experiência, porque ela toca em certos temas centrais dessa conquista – a objetividade científica e os sucessos da medicina ‘enfim científica’ – nos colocou diretamente em contato com os limites desse pretendido multiculturalismo. Mais precisamente, os limites da própria noção de cultura: haveria certas culturas múltiplas, todas dotadas de riquezas respeitáveis, mas só existe (infelizmente) uma única ‘natureza’, e é ‘nós’ que sabemos interroga-la” (STENGERS; PIGNARRE, 2005, p.60, tradução minha)
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