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23 mar 2024

ONTOLOGIA DE GÊNERO E GUERRA SOCIAL: BIOPOLÍTICA, ABSTRAÇÃO REAL E INCOMENSURABILIDADE – PARTE 2

Por Agnes de Oliveira

Primeira parte

II Guerra Social

A relação ontológica entre capitalismo e guerra é um problema, em larga medida, marginalizado não só pelas teorias sociais críticas, mas também pelas ações que buscam uma transformação radical das formas de existência coletiva. Éric Alliez e Maurizio Lazzarato argumentam, retomando Giovanni Arrighi, que o marxismo e Marx negligenciaram a função “econômica” e “tecnológica” da guerra (Alliez; Lazzarato, 2016, p. 253). Como observa Robert Kurz, tal negligência, nas teorias de esquerda, do papel da guerra e da revolução militar na constituição do capital, pode ser explicada pelo enraizamento de tais teorias na racionalidade iluminista e na glorificação da modernidade.1 A partir da racionalidade iluminista, a expansão quantitativa de dinheiro e das relações monetárias na modernidade são apreendidas como uma “melhoria em termos civilizacionais” e não tendo uma relação intrínseca com a revolução militar (Kurz, 2014, p.106).

É possível observamos que desde, ao menos, os teóricos do liberalismo, como John Locke (2001) e sua reflexão sobre o estado de natureza, o estado de guerra e a constituição do corpo político, passando por certos momentos do pensamento de Marx e do marxismo, o vínculo entre as relações sociais capitalistas e a guerra tem sido pensado segundo um eixo histórico linear.2 Segundo esse quadro de análise, a dinâmica lógico-histórica da estrutura capitalista, bem como sua força “civilizatória”, teria como princípio e finalidade a expansão de relações sociais que seriam fundamentalmente caracterizadas, excetuando seus momentos de crise, por um tipo de economia de poder muda, impessoal e racionalizada, sendo o contrato sua forma jurídico-política por excelência. Assim, a forma de relação social e dominação que é própria ao capitalismo seria oposta à violência extraeconômica, baseada no uso da força, que se verifica, por exemplo, no período denominado de acumulação primitiva: um período de transição e constituição histórica do capitalismo, que cobre os séculos XV-XVIII. Contudo, como observa Lazzarato “A guerra não desaparece, não pode ser reabsorvida nos dispositivos despersonalizantes da economia e do direito, pois ela é a manifestação mais fulgurante de que o poder é igualmente violência sobre as coisas e pessoas” (Lazzarato, 2019, p. 77).3 Com efeito, a relação entre capital e guerra ficou obstruída por uma concepção abstrata da violência direta, que a inscreve em um eixo temporal linear e nos impede de pensá-la como constituindo internamente um novo regime histórico de violência, que é aquele do dinheiro ou do valor, e sua relação ontológica com a guerra, que aqui se trata de pensar.4

No que diz respeito a relação entre capital e violência colonial, que conjuga violência total com apropriação de valor total (Ferreira da Silva, 2019, p.156), Denise Ferreira da Silva observa que a partir da análise da acumulação primitiva foi formulada uma tese que situa “a expropriação colonial da terra (e seus recursos) e do trabalho em um momento antecedente de acumulação, isto é, como temporalmente anterior ao capital” (Ibidem, p. 171).5 O fundamental, portanto, seguindo ainda Ferreira da Silva (2019), é como a colônia, o trabalho escravo e a expropriação das terras indígenas, isto é, como as formas coloniais e racistas da produção do valor, são frequentemente resolvidas ou desaparecem na sequência histórica como momentos transitórios e que seriam, por uma espécie de necessidade teleológica interna ao capitalismo, superados pela generalização do trabalho assalariado e das relações capitalistas de produção propriamente ditas, baseadas na exploração e distintas da escravidão e da expropriação. O que se oblitera, nesse sentido, é a implicação, a simultaneidade ou nexo estrutural entre valorização do valor e expropriação colonial ou, como aqui estamos propondo, entre acumulação capitalista e guerra. Pois, cabe pontuarmos: a produção capitalista não interrompeu, em toda sua história, a expropriação colonial (Ibidem, p.181) e nem a guerra.

Tendo isso em vista, tratar da relação ontológica entre capital e guerra nos envia a um problema de ordem genealógica, nos forçando a pensar a violência e, mais precisamente, a guerra não como algo que se encontra na Natureza de forma universal ou como “violência qualquer” (Deleuze; Guattari, 2012b, p.110), e nem como resultado de um desvio, de uma falha ou da crise do funcionamento das máquinas sociais, mas conforme regimes de violência que se constituem segundo as formas sociais e suas diferenciações históricas.6

a) Produção e Anti-produção/ Economia e anti-economia

O que tanto a guerra quanto a violência colonial parecem explicitar é a relação implicada entre produção de valor e antiprodução, economia e antieconomia, ainda que tal relação constitutiva e, portanto, transversal a todo campo social (como bem indica o termo complexo-industrial-militar), se materialize em processos de diferenciações espaciais, temporais, técnicas, arquitetônicas, de processos desiguais de distribuição das riquezas, das precariedades e exposições à violência total etc.7 Trata-se, enfim, de uma relação pela qual é possível apreender como o capital, na condição de poder social, produz, em seu processo de auto-objetificação, aquilo sobre o qual se exerce e aquilo do que se apropria. No interior desse processo de auto-objetificação, é necessário observamos como o capital não só captura a vida e a enquadra no interior das condições de (re)produção do valor a partir da relação capital-trabalho, mas (re)produz a vida como algo portador de valor e mais-valor, ao mesmo tempo que (re)produz o seu avesso desvalorizado, seu excesso incalculável. É tal excesso, sempre-já pressuposto, que se torna passível de ser expropriado totalmente como algo de direito pelo capital. Como comentam Deleuze e Guattari: “Há violência de direito cada vez que a violência contribui para criar aquilo sobre que ela se exerce ou, como diz Marx, cada vez que a captura contribui para criar aquilo que ela captura” (Deleuze; Guattari, 2012b, p.155).

Nesse sentido, e evocando Achille Mbembe (2018, p.68; 2018a, p.29), podemos formular o problema da relação ontológica entre capital e guerra como o da inserção do desperdício ou do dispêndio no mais estrito cálculo econômico, do limiar entre racionalização e o terror da violência, entre a exploração e a expropriação total. Mbembe, tendo em vista a condição do escravo nas plantations, observou que ao mesmo tempo que o escravo possuí um preço e um valor, sendo necessário ser mantido em vivo, ele também é alvo de uma violência, executada por seu capataz, que se manifesta como “um capricho ou um ato de pura destruição visando incutir terror” (Mbembe, 2018, p.28-29). É a raça que, para Mbembe, permite dar conta dessa relação paradoxal entre valor e aquilo que não tem valor, em inscrever no cálculo aquilo que é, sempre já, incomensurável. O que sustentamos aqui, portanto, é que o limiar entre cálculo e o puro dispêndio destrutivo não pode ser adequadamente apreendido pela mera relação econômica entre capital-trabalho, enquanto relação imanente da substância automovente da forma-valor. Pois tal limiar diz respeito a relação entre mensurabilidade da forma-valor e aquilo que é incomensurável e incalculável, estando dissociado da forma-valor.

Tendo isso em vista, é preciso considerar a determinação do limiar entre valor e não-valor por processo sociais de racialização e sexualização, que se materializam nas guerras como produção de destruição que, entretanto, condiciona a realização da acumulação monetária, seu mais estrito cálculo econômico, sua economia de poder racionalizada e a governamentalização do Estado moderno, pelo qual a vida é inscrita nas relações econômicas constantemente. Se há, como estamos argumentando, um continuum de destruição que é constitutivo da violência da valorização do valor, tal continuum e sua realização não pode, entretanto, ser deduzido diretamente, segundo uma lógica identitária, do próprio valor e sua contradição em processo, mas remete às esferas dissociadas (Scholz, 1996; 2004) do valor por meio de relações raciais e de gênero, que condicionam a reprodução da violência da forma-valor e dão suporte a sua paranoia objetiva de autopreservação.8

Isso se mostra particularmente importante quando temos em vista países como o Brasil, no qual os dados de mortes produzidas são extremamente altos, embora não haja uma guerra declarada oficialmente. Estamos falando de mortes, além disso, cuja parcela considerável ocorrem fora do processo de trabalho produtor de valor, como na esfera doméstica, em supermercados e espaços urbanos, apontando para obstrução daquilo que Butler denomina de direito de aparecer (2019, p.31).De todo modo, é possível dizermos que a condição de mulheres, pessoas dissidentes de gênero e pessoas racializadas vítimas de violências totais, como feminicídio, transfeminicídio e genocídio, remete, num plano global, à condição paradoxal daquilo que deve ser inscrito e submetido pela relação valor, mas que, entretanto, não possui valor. Tendo como métrica o valor masculino-branco, as mortes produzidas pelo cispatriarcado racial implicam socialmente uma indiferença ética e não exigem nenhuma prestação de contas, impulsionando uma guerra civil molecular permanente.

Portanto, dar conta desse fato exige, a meu ver, produzir curto-circuitos à oposição, tal frequente nas teorias sociais do capitalismo, entre violência extra-econômica e econômica, ou entre dominação pessoal e impessoal etc. Pois o capital em seu processo social automatizado (sujeito automático) longe de se realizar segundo uma coação muda, pressupõe sempre o exercício de uma potência de destruição total sobre uma multiplicidade de vidas sem valor. O que nos leva a analisar a relação entre a Norma do valor e as guerras sociais.

b) Norma como guerra social permanente

A caracterização da norma como uma guerra social permanente é algo que presente tanto nos escritos de Jota Mombaça, quanto dos coletivos que compunham a Bash Back!, uma rede anarquista queer. Por um lado, Mombaça nos diz que o mundo que nos foi dado a conhecer, isto é, o mundo capitalista, supremacista branco e cisgênero, inscreve as vidas numa guerra permanente estruturante da paz, da segurança social e ontológica deste mundo, garantida para uma ínfima parcela de pessoas com status plenamente humano. Numa carta para Castiel Vitorino, Mombaça escreve:

A ingenuidade perante as formas do poder não é um luxo ao qual nos podemos dar. Não se sobrevive a uma guerra fingindo que os canhões não estão apontados, que não há arame farpado nas ruas e que os cães de guarda não enxergam a mira em nosso pescoço (Mombaça, 2021, p.102)

Ler o mundo sob a lente da guerra social permanente implica, além disso, mudanças profundas na maneira como se encara a relação desse mundo com a violência. Pois como nos lembra Deleuze e Guattari: “a violência, encontramo-la por toda parte, mas sob regimes e economias diferentes”. E, no que diz respeito ao regime de violência constitutivo do mundo do valor e sua norma, a exploração não dá conta. No texto Rumo à mais queer das insurreições, o coletivo anarquista queer Mary Nardini Gang elabora o conceito de Norma como uma Totalidade, que reitera sua violência a cada minuto como guerra social:

Quando falamos sobre guerra social, o fazemos porque análises puristas de classe não são suficientes para nós. O que uma visão de mundo econômica marxista significa para sobreviventes de espancamento? Pra profissionais do sexo? Para adolescente sem teto que fugiram de casa? Como pode a análise de classe, sozinha como paradigma pra uma revolução, prometer liberdade pra quem de nós está em jornadas para além dos gêneros e sexualidades que nos foram atribuídos? O proletariado como sujeito revolucionário marginaliza todas as vidas que não se encaixam no modelo de trabalhador heterossexual (BASH BACK!, 2020)

Tais violências não são retornos à barbárie ou regresso histórico, que se manifestariam em momentos de crise ou excepcionais do ponto de vista do “funcionamento normal” da sociabilidade do capital. Do século XV ao XXI, da perspectiva de pessoas desobedientes de gênero e racializadas, nunca houve trégua na guerra da ontologia de gênero.

c) 1492: O ANO QUE NÃO TERMINOU OU A PACIFICAÇÃO SEXUAL

A colonização explicita bem a relação intricada entre ontologia de gênero, abstração real e guerra social. Éric Alliez e Maurizio Lazzarato mostram, em Guerras e Capital, que a colonização no século XVI é contemporânea da revolução militar das armas de fogo e da decorrente corrida armamentista entre Estados europeus absolutistas em formação.9 Robert Kurz (2002), por sua vez, mostra que a constituição histórica do automovimento fetichista do dinheiro (Capital) e do Estado moderno surge da formação de uma economia de guerra desvinculada e da corrida armamentista desencadeada pela revolução das armas de fogo. Tal economia de guerra, e sua máquina estatal de angariação de dinheiro no interior da concorrência militar, produziu uma pressão social que transformou qualitativamente não só o estatuto categorial do dinheiro, mas instaurou também um processo de produção desvinculado e baseado na abstração real do trabalho e da riqueza universal produzida (valor), bem como a cisão patriarcal e racial dessa nova relação social global.

Assim, a emergência do capital como uma economia-mundo é indissociável da constituição de uma economia de guerra realizada em escala mundial. Tendo isso em vista, a colonização foi desde o início um empreendimento ao mesmo tempo econômico e militar, uma guerra colonial constitutiva da acumulação capitalista.

Contudo, observam Alliez e Lazzarato, a guerra do capital só pode se realizar em múltiplas frentes, enquanto guerra contra as mulheres, guerra racial e guerra de subjetividade. Pois são por tais guerras que os corpos são reduzidos à pura condição biológica, transformando-os tanto em pura força fisiológica produtora de valor, quanto em força de reprodução cis-heterossexual da humanidade enquanto espécie. Para expressar isso melhor, gostaria de retomar brevemente a condenação de Tibira pela Igreja Católica e o Estado francês. Porque ela expressa como o sistema sexual e de gênero faz parte de um projeto civilizatório global de ordenamento ontológico do mundo e indissociável da racialização.

Tibira foi uma pessoa Tupinambá condenada pela inquisição por sodomia e executada na boca de um canhão, em 1614. Retrospectivamente, já na cena da representação do dispositivo de sexualidade do século XIX, Tibira passou a ser considerado um indígena homossexual. Contudo, por trás da acusação de sodomia está em questão muito mais que a repressão de uma prática ou orientação sexual pré-existente e de sua transgressão das leis cristãs. Primeiro, porque a própria noção de orientação sexual ou de sexualidade é um produto da modernidade, que só se consolida como identidade no século XIX. É verdade que Tibira não era heterossexual, na medida em que escapava desse regime de poder emergente, mas isso não significa que fosse homossexual.

Em segundo lugar, tal leitura apaga o fato que a violência hetero-colonial é um processo de imposição das próprias identidades de gênero (homem e mulher) enquanto parte do projeto moderno de organização do mundo. Nesse sentido, a condenação de sodomia vai além de uma questão moral ligada às práticas sexuais categorizadas como pecado nefasto ou crime: a partir da transformação do corpo de Tibira em corpo sodomita, se visa a expropriação jurídico-econômica e destruição de territórios existenciais, que não se estruturam a partir da diferença sexual, das identidades de gênero e da reprodução cis-heterossexual emergente na modernidade.10

É preciso lembrarmos, assim, que a modernidade é um projeto de ordenamento ontológico do mundo, transformando profundamente a maneira de habitarmos a Terra em escala planetária. E a violência produtiva da modernidade consiste em produzir aquilo sobre o qual ela se exerce, seu próprio universo de referência. É por meio da produção do capturado pela própria captura que esta justifica a legitimidade do exercício de sua violência.11 Assim, Castiel Vitorino, em Ancestralidade Sodomita, Espiritualidade Travesti comenta:

Tibira também não era indígena, nem gay, nem travesti, nem Tibira. Mas foi racializada com as leis da sexualidade criadas pela religião cristã católica apostólica romana; às quais desobedeceu; tornou-se sodomita. Essa pessoa era Tupinambá. Mas então, na tradução colonial de sua existência, Tibira também virou berdache.

A ontologia de gênero é, assim, uma guerra social, pois ela implica a obliteração de toda existência que escapa do seu modo de representação, ela é avessa a toda transmutação que não fale a sua língua. A ontologia de gênero deve exercer permanentemente uma violência global que se antecipa sobre toda possibilidade de se viver e pensar outramente. Ela não deixa nada de fora, nada deve ser indeterminado, mas tudo deve ser traduzido. Nesse sentido, acredito que a maneira de mantermos a recusa de Tibira viva é, justamente, ficando com sua intradutibilidade, irrepresentatividade e incomensurabilidade dentro do sistema de gênero moderno. O que interessa aqui, portanto, é o fato de a posição epistemológica do corpo ferido de Tibira exceder qualquer tentativa de sua representação. Essa é uma estratégia, a meu ver, importante para também evitarmos resolver a violência colonial do gênero em seus próprios termos, sedimentando o esquecimento que outros mundos e experiências de transmutação são possíveis para além da experiência de transfiguração normalizada pelo gênero.

1 “A teoria de esquerda está demasiado enraizada na racionalidade iluminista do capitalismo e na sua confirmada glorifcação da Modernidade para que queira enfrentar a verdadeira constituição histórica do capital” (KURZ, 2014, p.105)

2 Sobre a relação linear entre violência extra-econômica e econômica na acumulação primitiva na análise marxiana, ver Karl Marx (2013, p.634-35 e p.644).

3 Marildo Menegat, retomando Hobsbawn, observa que enquanto apenas 5% dos mortos da Primeira Guerra Mundial eram civis, na Segunda Guerra, 66% dos mortos eram civis. Desde então, a efetivação da guerra passa a se dar cada vez mais em territórios civis, sobretudo urbanos, visando a própria população, desfazendo a distinção entre tempos de paz e tempos de guerra, guerra declarada e não declarada (Menegat, 2012. P.15-16). Para uma análise do mesmo sentido sobre o urbanismo militar, a indistinção entre tempo de paz e tempo de guerra, entre civil e militar, ver Graham, 2016.

4 Sigo aqui a proposta de Alliez e Lazzarato: “É essa relação estreita, constitutiva, ontológica entre a forma a mais desterritorializada do capital, o dinheiro, e a forma a mais desterritorializante da soberania, a guerra, que nós propomos como ponto de partida obrigatório para repensar toda a história do capitalismo – até nas suas formas as mais contemporâneas” (Alliez; Lazzarato, 2016, p.38).

5 Ver, por exemplo, a crítica que Ferreira da Silva (2019, p.172) faz da teoria de Rosa Luxemburgo sobre a acumulação primitiva e a coexistência entre formações primitivas (pré-capitalistas) e relações de produção capitalista.

6 A concepção diferencial dos regimes de violência é algo muito presente no pensamento de Deleuze e Guattari desde O Anti-Édipo (2011, p.243) e Mil Platôs, quando dizem que “o problema, portanto, seria distinguir regimes de violência” (Deleuze; Guattari, 2012, p.154), assim como em Foucault e sua análise dos diversos dispositivos ou tecnologias de poder (poder soberano, disciplinar e biopolítico), bem como suas justaposições ou rearranjos conforme a tecnologia de poder predominante (Foucault, 2008, p.11-12). Em todos esses autores, além disso, a diferenciação e sua dimensão crítica remete a um problema genealógico.

7 Estou aqui seguindo, por um lado, as orientações esquizoanalíticas de Deleuze e Guattari sobre a instância de antiprodução tornada imanente no capitalismo, que constitui o socius capitalista como um Corpo Pleno do Capital-Dinheiro preenchido por uma potência contínua de abolição, expressa num complexo político-industrial-militar-financeiro (Deleuze; Guattari, 2012b, p.180). Como estou tentando propor, o problema do regime de violência específico da modernidade não implica somente uma articulação entre relação social de produção e aquilo sobre a qual ela se exerce, que seria um dado exterior, mas a maneira como a relação social produz, violentamente, aquilo sobre o qual se exerce, isto é, como há uma antiprodução imanente ao próprio processo de produção, sendo o consumo de forças destrutivas na guerra uma das expressões mais bem acabadas do tornar-se imanente da antiprodução no seio da produção. Por outro lado, Mbembe nos mostra como a relação econômica de produção é indissociável de uma antieconomia cuja chave de inteligibilidade está na raça, pois essa “remete àquilo que, em princípio, não exige nenhuma prestação de contas, pois, estando fora da contagem e não sendo passível de ser contabilizado, participa de uma antieconomia” (Mbembe, 2018, p.68).

8Paulo Arantes, em Diante da guerra, analisando a administração de Bush no contexto da guerra do Iraque, observa que há uma paranoia que a impulsiona que é objetiva, na medida em a guerra preventiva sistêmica, na qual a administração Bush se inscreve, obedece a um processo sistêmico de exploração e controle caracterizado “pela autonomização recorrente de processos sociais” (Arantes, 2007, p.28). No contexto de nossa argumentação, a paranoia é indissociável da racialização e sexualização de tais processos sociais autonomizados. De modo que a forma-sujeito – ou o Eu transparente, como define Denise Ferreira da Silva (2022) – como sendo sempre já identificado com o homem branco, é sustentada por uma economia libidinal paranoica “objetiva”.

9 “É essa guerra econômica de ‘infraestruturas’ e de ‘serviços’, são esses investimentos de guerra impostos por uma corre aos armamentos, ofensivos e defensivos, que vão impor para financiá-los e administrá-los nada menos que a figura absolutista do Estado moderno” (Alliez; Lazzarato, 2016, p.94, tradução minha)

10 Em Utopias mapuche não binárias para um presente epupillan, es autories mapuche escrevem: “O devir de corpos indígenas não heterossexuais em corpos sodomitos é marcado pela influência colonial do século xv, quando os interesses do nascente Estado monárquico espanhol se amarra aos interesses da Igreja Católica, ampliando assim a percepção do mal e do pecado da sodomia não apenas a uma questão moral, mas igualmente legal e territorial” (Comunidade Catríleo+Carrión, 2021, p.9).

11 Me apoio aqui na seguinte afirmação de Deleuze e Guattari: “Há violência de direito cada vez que a violência contribuir para criar aquilo sobre que ela se exerce ou, como diz Marx, cada vez que a captura contribui para criar aquilo que ela captura” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p.155).

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