Passei essas férias em trabalho de campo no nordeste, fiz uma rápida visita em Natal. Em alguns momentos na Bahia me senti muito mais bonito e mais inteligente. De forma que me passou pela cabeça o pensamento de por que aceito a humilhação de viver em Barão Geraldo e estudar na Unicamp. Uma vida em que me sinto tão mais estrangeiro do que em outros lugares em que sou efetivamente estrangeiro como aqui. Me senti muito bem tratado, fui muito bem cuidado, como em grande medida também fui na minha infância, na periferia do extremo sul de São Paulo. Por mais que haja aí sentimentos verdadeiros, que informam meus planos futuros e a minha relação com o campo. Também há aquela empolgação ingênua das férias. O papel de antropólogo que encenei aqui (escrevo do meu último dia no interior da Bahia) também é ambíguo e a excentricidade da minha posição gerou sentimentos difíceis de lidar em muitos momentos. Hoje mesmo foi um dia que comecei muito melancólico e depois tive um belo encontro que me animou muito, resultando nessa escrita em que tento expressar esses sentimentos.
Eu como um cara de 33 anos me vi numa posição singular entre as pessoas que convivi esse mês, minha condição é banal mas não era compartilhada com nenhuma delas de modo geral. Refletindo só sobre as coisas em que a maioria das pessoas mais parecidas comigo que encontrei aqui na Bahia se diferenciavam de mim. Estou sem emprego, sem filhos, sem esposa ou sem relacionamento. Não sei dirigir, não sei falar de futebol, nem de carro, não acompanho a televisão e nem vejo série, pelo menos não sozinho, o que de todo modo significa que não vejo faz tempo. Não bebo, não tomo açúcar e nem como coisas doces, pelo menos nada disso com frequência, tomei café doce umas duas ou três vezes que me foi oferecido e duas latas de cerveja esse mês.

Esses dias, relendo um artigo da Sylvia Wynter que ela fala do jovem, negro e desempregado, como essa categoria de pessoa que pode sofrer um assassinato que não é condenado ou causa indignação entre seus colegas intelectuais e professores universitários. Fiquei pensando sobre até que ponto eu me identifico com esses jovens. Poderia contar histórias terríveis de presenciar ou sofrer violências quando mais novo, mas isso me parece quase como se eu tivesse me colocando numa posição que não é a minha e talvez nunca tenha sido, mas que em algum sentido foi sim e ainda é. Esse constrangimento também me atravessa no trabalho de antropólogo, me causa repugnância a ideia de falar em primeira pessoa sobre minha história num trabalho acadêmico. Algo ridículo como afirmar que o tema da violência policial me atravessa por que devo ser um raro filósofo nesse país que já esteve na mira de armas de fogo mais vezes do que é capaz de contar ou recordar (e não faço isso aqui, pois não se trata de um texto acadêmico, apesar deste texto talvez estar numa fronteira).
Não sou um jovem que nem estuda e nem trabalha. Estudo, a minha bolsa de mestrado é como se fosse um trabalho mesmo que eu não sinta assim, mas afinal é um trabalho sim. Mesmo que ruim, por vezes em ambiente insalubre, pagando pouco mais de um salário mínimo. Tem mais flexibilidade e prestígio do que outros trabalhos que pagam valor semelhante, devido a suposta carreira acadêmica envolvida e o ambiente policlassista ou com traços de exploração pré-capitalistas da universidade.
Sou negro, a violência policial atravessa a minha experiência. Mas esse parece um resquício racionalizado de algo de quando eu era mais jovem, a polícia já não me enquadra hoje, faz muito tempo. Uma das últimas vezes que fui enquadrado estava junto a alguns jovens na periferia, senti que a minha presença ali, que eu, ao conversar com a polícia, sendo essa pessoa mais velha, que é articulada e etcetera, tornei o enquadro mais leve do que seria caso eles tivessem sido enquadrados na mesma situação sem eu estar lá. Claro que o mero fato de ter vivido essa experiência a poucos anos atrás, com amigos jovens habituados a serem enquadrados, mostra como estou próximo disso, mesmo que eu prefira insistir em pontuar o quanto estou distante.
Vivo entre abismos, sinto isso num nível íntimo, nos meus relacionamentos parece sempre haver alguns desgastes seja por que eu sou como que privilegiado demais, mimado demais, ambicioso demais, ou o contrário, sou fudido demais, pobre demais, tenho déficits demais. Ou ressentido demais, ou conciliador demais. Como se eu sustentasse uma vida que não condiz com a sua condição real sempre.
Esse sentimento é bastante comum e multifacetado. Vou falar algumas variações dele, como exemplo, rompi com muitos amigos homens, sendo amigos antigos ou novos, isso ocorreu nos últimos anos por conta das recorrentes questões relativas a violência de gênero. Também assumi a minha sexualidade bissexual de forma mais aberta apenas há pouco tempo para minha família e fui bem aceito, mas senti que esse processo afastou de mim amigos e amigas. Me sinto como se fosse percebido como excessivamente homem para sustentar diálogos ou qualquer tipo de aproximação amiga com algumas mulheres feministas que admiro, por outro lado, me sinto como que excessivamente não homem em relação a determinadas amizades masculinas que se evadem diante dos meus posicionamentos. Mas também me senti rejeitado algumas vezes em relações com mulheres que amei por não sustentar uma posição suficientemente masculina. Em termos teóricos, é como se determinadas inscrições violentas no meu corpo marcassem uma desgenerificação, poderia enfatizar com isso a castração, mas é mais importante marcar a ambiguidade sem contradição. Talvez um homem em um mundo que ruma para a abolição do gênero, a negação e a hiper afirmação de performances e signos da generificação são duas faces simultâneas, de como meu corpo é atravessado pelas tecnologias produtoras do gênero e a disforia que lhe é inerente.
Outros reflexos disso na vida política podem ser listados nas seguintes experiências, fui um péssimo aluno que brigava com a direção, fazia professores chorarem em sala ao discutirem comigo, fui reprovado no terceiro ano do ensino médio mas fiz a escola ser forçada a me aprovar por ter sido o único aluno daquela escola periférica a passar na USP. Com todo ódio à instituição escolar, me dediquei de corpo e alma a movimentos de educação por algum tempo, como um que impediu o fechamento de escolas. Passei mais da metade da vida preso no trajeto centro periferia, odiando ônibus, militei por ônibus tanto que sinto atravessamentos muito pessoais e ambíguos com a tarifa zero no domingo em São Paulo. Ao trabalhar no banco, me dediquei ao movimento sindical, formei um coletivo de oposição sindical que viveu uma significativa expansão, com posicionamentos na oposição da oposição sindical, es espaço sofreu vários rachas, ensejando formação de novos coletivos que atuaram para além do corporativismo, quando decido a minha saída desse emprego. Ao estar com minha identidade absorvida em interesses políticos e em auto repugnância por ser um organizador de um movimento autonomista racista e aburguesado, ao romper com estes movimentos me dediquei ao aspecto do movimento negro que me parecia mais fundamental, a luta contra violência do Estado. Em uma organização deste movimento negro e anti racista entro em conflito com sua principal direção, uma branca burguesa racista. Ao romper com ela me sinto reprovado por várias das outras pessoas negras que também estavam na linha de frente desse movimento na cidade no período, o que marca o meu último ciclo de rupturas políticas com profundidade.
Sinto que esse tipo de dilemas marcados por muitas camadas de ambiguidade me atravessa, em posições raciais, de gênero, políticas, de moradia… A hibridização de ser centro e periferia, preto no mundo dos brancos, proletário que não se solidifica como trabalhador, seja com ou sem emprego, a identidade flutua sempre na corda bamba de direções entre a marginalidade, a pequena burguesia e a burocracia. O homem não conforme em relação ao gênero, mas não mulher o bastante, nem gay o bastante, nem capaz de abraçar a disforia ininterrupta e o conflito constante que sua posição de todo modo gera. O flerte com o oposto e a traição constante de si ou do que se espera de cada identidade que assumo, com o apontamento da abolição de todas essas categorias, com a confusão entre elas que marca o nascimento de novas entidades, que pode esperançar a abolição dessas figuras mas também gira em falso angustiado e rompendo, destruindo para construir, aumentando a capacidade, diminuindo os entraves, ou o resultado parece o contrário disso? O acontecimento, a experiência, o saldo organizativo se fortalecendo com o poder de recusar tudo isso. Se magoando e brigando, juntando e indo para outro lugar, quebrando e reescrevendo tudo, ora triunfalista, ora derrotista.
Lembro de algumas conversas políticas que falavam sobre como temos dificuldade de mediar conflitos. Sinto que essa fala carrega aquele tipo de ignorância presunçosa que com frequência cai na completa estupidez. Se teve uma coisa que nós fizemos bem no último período foi mediar conflitos, foi conciliar mundos e posições inconciliáveis em nome do avanço em tretas ainda maiores que essas. Somos especialistas em forjar alianças instáveis entre entidades em dissolução.
Lembro que quando iniciamos esse espaço, Quilombo Invisível, foi compartilhado entre nós um trecho que me gerou muito prazer. É curioso que lia e relia ele me identificando muito, se trata de um texto do Walter Benjamin chamado O Caráter Destrutivo. Apesar do nome e do texto trazer uma identificação inspiradora, na época, eu tinha certeza de que estava construindo algo mais interessante que todas as construções anteriores que vivi, e até o momento sinto que não estava errado. Isso pode ser lido como um apego ao sentido que ainda se afirma mais que os acontecimentos, que seguem instáveis. Sinto que o que acontece aí conosco é algo parecido com a personagem de Denise Ferreira da Silva, a corpa ferida na cena da subjugação, que com sua existência irradia luz negra revelando o que não se conseguiria de outra forma ver. Vou concluir esse texto com o trecho mencionado do Benjamin:
“O caráter destrutivo não vê nada de duradouro. Mas por isso mesmo vê caminhos por toda a parte, mesmo quando outros esbarram com muros e montanhas. Como, porém, vê por toda a parte um caminho, tem de estar sempre a remover coisas do caminho. Nem sempre com brutalidade, às vezes fá-lo com requinte. Como vê caminhos por toda a parte, está sempre na encruzilhada. Nenhum momento pode saber o que o próximo trará. Converte em ruínas tudo o que existe, não pelas ruínas, mas pelo caminho que as atravessa.”
Por Gabriel Silva – Licenciado e bacharel em filosofia, mestrando em antropologia social e militante do quilombo invisível, escrevendo aqui reflexões autobiográficos misturando vida pessoal, política e profissional como não costuma ousar fazer. Este texto foi originalmente escrito em 05/08/2025.
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