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24 set 2025

Das independências Às Liberdades: Luta de Classes hoje em Angola, Moçambique e Quênia.

Observação: Este artigo foi originalmente escrito para o jornal des Estudantes do DCE da UNICAMP, tendo sigo censurado pela atual gestão do DCE. O Núcleo de Conscincencia Negra (NCN) da UNICAMP realizou uma mobilização denunciando a censura e publicou uma nota sobre o assunto. Publicamos esse artigo em solidariedade as lutas atuais na África e ao Katró.

Cinco décadas após as independências africanas, uma nova onda de levantes populares atravessa o continente, demonstrando que a luta de classes nunca deixou de ser uma realidade concreta. Em 2025, dois países africanos, Angola e Quênia vivem um ciclo intenso de revoltas populares, greves e manifestações massivas contra os regimes que, paradoxalmente, nasceram da luta de libertação nacional. 

Foto de protesto em Angola em 2025 reinvindica justiça para pessoas assassinadas pelo governo do MPLA durante a revolta.

Já em Moçambique, as mobilizações começaram em 23 de outubro do ano passado e se estenderam até o final de dezembro.  Dados parciais mostram onze desaparecidos; 586 baleados; 4.201 detenções e 278 mortos, na luta contra os cinquenta anos de dominação imposta pelo FRELIMO.

Angola, Moçambique e o Quênia, países que conheceram processos revolucionários e se apresentaram como modelos de libertação nacional, hoje se encontram mergulhados em contradições profundas; entre conservar os vestígios dos processos revolucionários “Socialistas” ou sucumbir ao neoliberalismo com a crise do capitalismo internacional. 

Os antigos movimentos de libertação, outrora defensores da justiça social e do “socialismo” Democratico, converteram-se em regimes autoritários, tornaram-se elites internas,aliados ao capital internacional, transformando-se em opressores da própria classe trabalhadora que lhes deu sustentação histórica.

O rapper moçambicano Azagaia-”In memoria” em sua canção “Combatentes da Fortuna”, sintetiza com força poética e política essa traição histórica das lideranças que outrora prometeram “socialismo” democratico e criticam abortamento o capitalismo e o neoliberalismo no continente:

“Assassinaram desde Amílcar Cabral até Samora

 Os grandes líderes, mandaram-lhes para os manuais de história

 Prostituíram o socialismo e pariram por acidente

 Um falso capitalismo, filho bastardo do ocidente

 O ocidente pagava bem e eles foram sem camisa

 Pegaram o Vírus de Deficiência Orçamental Adquirida

 Esses revolucionários e recém-empresários

 Faliram bancos com empréstimos que nunca foram pagos.”

Protesto contra o aumento do preço dos combustíveis em julho de 2025.

Esses versos não apenas denunciam a corrupção e a falência moral das elites dirigentes, mas também expõem a dependência estrutural ao ocidente, por meio de mecanismos como o FMI e o Banco Mundial. As políticas de ajuste estrutural implementadas desde os anos 1990  até aos dias atuais– privatizações, cortes de subsídios, redução dos gastos públicos – significaram a destruição de qualquer resquício do sonho socialista.

 No Quênia, a revolta de 2023 contra a retirada do subsídio ao combustível pelo recém governo de William Ruto e a proposta de aumento de impostos foi apenas a faísca de uma indignação mais ampla e profunda contra um sistema que insiste em colocar os custos da crise capitalista mundial sobre os ombros da classe trabalhadora e da juventude,o povo queniano e a classe trabalhadora no Kennya não admitiram convocaram ondas de protestos, greves que fizeram recuar o governo de William Ruto na aplicação destas medidas, demonstrando assim que os métodos da classe trabalhadora nunca falham. 

Protesto no Quenia também em julho de 2025.

Em Moçambique, medidas semelhantes corroem o já frágil sistema de saúde e educação, enquanto em Angola a dolarização da economia e os pacotes de austeridade têm aprofundado desigualdades brutais, onde recuamos ao cenário econômico de 1980-2000 onde cada angolano vive com menos de 2 usd por dia. Mesmo diante deste cenário de extrema pobreza da classe trabalhadora angolana,  vimos em Angola, durante o governo de João Lourenço, o surgimento de três novas refinarias; Cabinda, Soyo, e Namibe com capital estrangeiro e os combustíveis passaram a ser cotados a preços internacionais.  Até julho de 2023 custavam 160 kwanzas e passaram a 300. Neste mês passou de 300 para 400 kwanzas, ou seja um aumento de 33%, mas o objetivo é chegar a 800 kwanzas e satisfazer o capital estrangeiro, e o enriquecimento da elite burguesa da ditadura angolana do MPLA. 

Essa realidade é também marcada por uma crise de legitimidade. Como afirma Mútua (2018, p. 78), 

“praticamente todos os países africanos experimentam grandes lacunas de legitimidade que o Estado de Direito não é capaz de resolver, a menos que uma transformação social profunda seja realizada”.

De fato, os regimes que nasceram da luta anticolonial já não podem se sustentar no mito da libertação, nem do regresso das guerras frias, pois a juventude e a classe trabalhadora enxergam nesses governos os principais responsáveis pela precarização de suas vidas, e também fica evidente que essas movimentações não devem buscar transformações superficiais destas sociedades, ou não devem se contentar com as  conquista dos direitos democratico, porque tal como Mútua afirmou é preciso uma “transformação social e radical e profunda seja realizada”. A repressão sistemática a manifestações, prisões políticas, julgamentos sumários, prisões arbitrárias, a censura à liberdade de expressão apenas confirmam esse divórcio entre governantes e governados e reforça a necessidade desta transformação radical e profunda das sociedades africanas sem conciliação de classes nacional e internacional.

O angolano José Gomes Hata, líder revolucionário e fundador do Movimento Terceira Divisão-Angola, reforça esse diagnóstico ao analisar o legado autoritário do MPLA. Em seu artigo “Stalinismo em Angola: O Massacre do 27 de Maio de 1977 – Parte I” (2024), Hata afirma:

“Um país que se transformou em uma ditadura usando inicialmente símbolos tão caros ao movimento marxista, e hoje sem pudores, mantém diversos presos políticos, exilados ou simplesmente silenciados em seus mais elementares direitos.”

Essa crítica remete a um ponto essencial: o stalinismo, ao impor um modelo burocrático e militarizado do Estado, acabou por sufocar a criatividade e a auto-organização dos povos e da classe trabalhadora. Ao invés de consolidar a ditadura do proletariado contra a burguesia, como defendido no marxismo revolucionário, consolidou-se uma ditadura de partido sobre as massas, criando regimes que hoje se perpetuam como oligarquias autoritárias, no caso de Angola e Moçambique desde 1975 no poder.

À luz da teoria da revolução permanente de Leon Trotsky, essa realidade pode ser interpretada como a falência da estratégia de alianças com setores da burguesia nacional e Internacional. Trotsky defendia que nos países coloniais e semicoloniais como é o caso concreto destes países; Angola, Moçambique e Kennya, apenas a aliança orgânica entre operários e camponeses poderia levar a cabo uma verdadeira transformação socialista, capaz de realizar as tarefas da independência nacional e da justiça social. A experiência histórica de Angola, Moçambique e Quênia demonstra justamente o contrário: quando os partidos libertadores se afastaram das massas, adotaram o modelo burguês do Estalinismo,  e do Estado e se submeteram ao imperialismo financeiro, abriram o caminho para a restauração capitalista no caso de angola um processo que começou em 1977 e culminou em 1991 com José Eduardo dos Santos na sua aliança com os EUA.

Hoje, ao completar meio século de independência, Angola e Moçambique, junto ao Quênia, nos revelam que a luta não terminou em 1975 ou 1963, mas continua aberta. Os novos levantes populares expressam uma tradição viva de resistência e demonstram que a classe trabalhadora africana, explorada e traída, é também a portadora das alternativas do futuro. O povo Moçambicano, Queniano, e Angola certamente hoje após suas independências,  eles lutam por sua liberdade, tal como mostrou o professor Severino Ngoenha.

Em meio a essa análise, não podemos perder de vista a dimensão histórica da responsabilidade coletiva. O filósofo moçambicano Severino Ngoenha lembra que:

“Nós somos parcialmente responsáveis em relação ao passado, entretanto só agora começamos a compreender os seus significados complexos. Mas somos ainda mais responsáveis em relação ao futuro.” (Ngoenha,1993).

Essa reflexão abre espaço para compreendermos que, se as gerações anteriores lutaram contra o colonialismo e depositaram sua esperança no socialismo, cabe hoje às novas gerações não apenas denunciar a transformação desses regimes em ditaduras autoritárias e corruptos, mas também reconstruir os caminhos de uma verdadeira emancipação, que una novamente operários, camponeses e juventude contra o capitalismo e seus representantes internos em África.

O desafio que se coloca é resgatar a tradição revolucionária com independência de classe, unindo operários e camponeses numa perspectiva internacionalista, retomando o horizonte socialista traído pelas direções que se converteram em opressoras. Por isso a necessidade dos atos como no dia 18 de Agosto de 2025, na UNICAMP, onde as correntes que compõem o movimento estudantil revolucionário deram uma lição importante,  de uma luta internacionalista de solidariedade.

“Toda revolução parece impossível até que ela se torne inevitável”- Leon Trotsky

Por Katró Ungila, do Movimento Hip Hop Terceira Divisão-Angola e NCN-Unicamp.

Referências:

AZAGAIA. Combatentes da Fortuna. Maputo: Independente, 2007. Disponível em: https://youtu.be/oFSvU-l60XM?si=0Sn7bslN2PMxVUHH

HATA, José Gomes. Stalinismo em Angola: O Massacre do 27 de Maio de 1977 – Parte I. 2024.

MÚTUA, Makau. Human Rights Standards: Hegemony, Law, and Politics. Albany: State University of New York Press, 2018.

NGOENHA, Severino. Das independências às liberdades. Maputo: Imprensa Universitária, 1993.

TROTSKY, Leon. A Revolução Permanente. São Paulo: Sundermann, 2010.

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