No início do mês de setembro deste ano, viralizou a partir das redes sociais um vídeo de um jovem negro amarrado, amordaçado com fita isolante, sendo chicoteado numa brutal sessão de tortura por seguranças de um Supermercado Ricoy, a pretexto da tentativa de furto de um chocolate. A cena, que lembrou a todos os piores momentos da escravidão, teve uma grande repercussão midiática (algum exemplos: aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui) reverberando em uma onda de indignação nas redes sociais que resultou na rápida convocação de um ato pela Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio para o sábado do dia 07/09/2019.
Dias depois da repercussão do vídeo, se descobriu que o jovem torturado é um garoto de 17 anos, que a tortura ocorreu no Supermarco Ricoy da Vila Joaniza, que o pai do garoto morreu num incêndio na favela em que morava, que ele possui 7 irmãos e que sua mãe esta desempregada, que neste contexto ele se tornou um morador de rua. O caso também possibilitou a divulgação da prática antiga de tortura de jovens negros nos comércios de São Paulo. Além de virem à tona outras denúncias de tortura física e psicológica nas dependências dos Supermercados Ricoy, o buraco de podridão aberto trouxe visibilidade a uma prática de violência repressiva que já vem de décadas e já é tradicional (algumas matérias mais amplas dessas práticas: aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui). Também trouxe divulgação ao fato de a empresa terceirizada que faz a segurança dos mercado Ricoy pertencer a antigos Policiais Militares. Assim, ficou visível que tais práticas de tortura tem relação direta com o aparato repressor da ditadura empresarial-militar brasileira, aparato genocida que, é sabido, nunca foi desmontado no chamado período de redemocratização, apenas teve seu público alvo restringido às regiões periféricas, e às populações negras e depauperadas.
Logo após a convocação do ato, a Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio publicizou uma nota com 160 assinaturas repudiando a permanência da prática de tortura e da discriminação racial. O ato foi precedido por uma ampla reunião articulada pela mesma, que contou com a presença de dezenas de coletivos, unindo as variadas frações do chamado movimento negro, representantes dos partidos ditos progressistas, profissionais da assistência social que são ativistas, entre outros. Essa reunião resultou numa nota com reivindicações publicada pela Rede, denunciando que a tortura nos Supermercados Ricoy não se tratava de um caso isolado e exigindo políticas de reparação para o jovem torturado no vídeo e para as comunidades exploradas pelo Ricoy.
O andamento do Ato e seus dilemas:
O ato foi razoavelmente grande, contando com algumas centenas de pessoas, com militantes de algumas dezenas de organizações. Moradores da região afirmaram que foi o maior protesto que já viram por ali. O ato contou com uma grande aprovação dos moradores do bairro, mostrando que a pauta era entendida como justa pela maioria, ainda assim a maior parte dos manifestantes vinham de longe sendo que muitos sequer conheciam o bairro da Vila Joaniza, na periferia da zona sul de São Paulo, onde ocorreu o ato. O ato foi atravessado por fortes dilemas que devem ser tema de reflexão para aqueles interessados no avanço da luta, esses dilemas podem ser resumidos nos seguintes temas: o medo da repressão, o oportunismo político, a fraqueza de objetivo ou de perspectiva de avanço da luta, a pouca quantidade de organizações de luta que façam trabalho cotidiano na periferia e a ausência de formulação das organizações da esquerda sobre as lutas raciais.
Havia um grande medo por uma parte das pessoas de que o ato sofresse algum tipo de repressão, medo que se materializou na tentativa (que não foi bem sucedida) de conter o ato no travamento de apenas uma via da avenida, assim como de não ocupar o mercado como parte dos manifestantes reivindicavam. Mas o ato estava grande e contava com uma imensa força política, com a presença de dezenas de organizações, mais de um mandato parlamentar, toda uma comitiva da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo, assim como diversos outros advogados de variadas organizações, uma quantidade significativa de jornalistas tanto da grande mídia corporativa quanto de mídias independentes (exemplos da repercussão do ato: aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui), inclusive internacionais, etc. Por outro lado, o aparato policial presente também não se posicionou de forma intimidadora, as três viaturas presentes além de não fazerem ameaças ao ato, não dispunham de contingente para a repressão do ato, seria necessária a convocação da tropa de choque para tanto.
Podemos, neste contexto, pensar que o medo da repressão provinha das ameaças de morte que o garoto e sua família haviam recebido pelas forças da repressão e pela possibilidade de futuras represálias nos manifestantes que moram na região, assim como a experiência cotidiana desses com o tratamento policial dos mais brutais. Além disso, a inexperiência política da maioria das organizações presentes que efetivamente se disponibilizaram a ter um papel organizativo no ato as fez imaginar que a qualquer momento explodiria uma repressão, como ocorre com frequência em atos centrais em São Paulo.
É importante registrar que, na mesma semana em que ocorreu o ato, um jovem negro, também acusado de furto na Vila Joaniza, foi assassinado a pauladas. O caso não teve qualquer repercussão midiática e não gerou maiores debates fora da região, sendo creditado na conta no submundo do crime no narco-Estado brasileiro. Esse fato também mostra a origem do medo em lidar com a luta racial anti-punitivista e que ainda precisamos avançar muito em termos de organização para tocar com seriedade essa luta.
Pouco depois de iniciada a concentração, o ato ganhou um formato de comício, onde houveram mais de 70 falas antes de ser deliberado que o ato iria andar até o segundo supermercado Ricoy da região. Chamou a atenção como uma maioria das falas não trazia qualquer reivindicação concreta. As reivindicações da maioria das falas não iam além de apelos abstratos de se lutar contra o racismo, se acabar com a tortura, com a direita, etc, sem trazer propostas de medidas efetivas que poderiam ser conquistadas para se avançar nesse objetivo. Era triste ver como parte das organizações ali presentes estavam muito mais interessadas em se auto promoverem do que no avanço da luta. Nesse sentido, é significativo o grande número de bandeiras partidárias em contraste com um número pequeno de faixas ou cartazes que dialogavam diretamente com a pauta do ato. Ironicamente, os portadores dos cartazes que mais dialogavam com as pautas do ato eram justamente dos ativistas que não eram membros das grandes organizações.
O oportunismo era a prática de uma parcela significativa das organizações presentes. Os parlamentares que apareceram não se propuseram a propiciar qualquer ajuda para o efetivo avanço na luta, mas apareceram lá apenas para tirar fotos, fazer vídeos, e ainda ficaram muito frustrados e irritados ao não terem direito fala no microfone. A falta de comprometimento com a pauta do ato por parte de algumas das organizações era tamanha que parte do comício foi marcado por conflitos entre as organizações presentes por falas e motivos completamentes alheios ao avanço da luta que era pauta do ato. Era evidente que boa parte das falas do comício era direcionada apenas para a própria militância organizada: nestes momentos o ato falava muito mais para si mesmo do que para as pessoas do bairro a sua volta. Mesmo outras organizações que realizaram ações para além desse ato no geral também ficaram restritas a uma ação que não objetivava nada além da disputa oportunista da visibilidade midiática em torno do caso.
Essa situação mostra a urgência de um balanço do oportunismo no movimento negro, muitos militantes e mesmo organizações inteiras que parecem viver apenas de oportunismo e da autopromoção pessoal, captando fundos, cargos e construindo suas carreiras para ascensão social individual em cima do sofrimento e miséria da população pobre e preta. Enquanto figuras assim continuarem a conseguir dirigir ou ter forte influência sobre o movimento será impossível avançar na luta contra o racismo no Brasil.
As falas no ato também demonstram a precariedade de formulação por parte da maioria das organizações de esquerda hoje e a baixa prioridade dada para se pensar a sério na questão negra e da luta contra a repressão as populações mais marginalizadas. Apesar de ser uma situação contraditória, pois a própria mobilização mostra como essas pautas, mesmo que mal tratadas, não podem ser ignoradas pelas organizações.
Também demonstra a inexperiência política de boa parte das próprias organizações que reivindicam as lutas negras em lidar com a ação política direta sem a mediação das instituições do Estado, mostra como essas organizações tem dificuldade em lidar com a ação direta, carecendo de experiência mínimas para operacionalizar adequadamente táticas úteis ao ato ou mesmo a ausência de uma perspectiva de trabalho concreto no bairro. Nas falas sempre era presente a referência a institucionalidade, a judicialização da questão, o apelo parlamentar, e pouco presente a perspectiva de organização popular real ou da luta direta.
Ações midiáticas do movimento negro e as perspectivas de avanço da luta:
Esse não é o primeiro ato puxado junto a Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio em que dilemas como os levantados aparece, podemos citar ao menos três outras situações semelhantes de atos puxados a partir da indignação midiática e que foram marcadas pela falta de foco, oportunismo e dificuldade organizativa para avançar a luta, seja trazendo avanços para a pauta ou de organização.
Em fevereiro desse ano, aconteceu um ato contra o racismo no Shopping Higienópolis, onde que a gestão estava mandando a Polícia Militar prender jovens negros, moradores de rua da região. O ato incluiu uma ocupação do shopping e teve como resultado um recuo da gestão em sua política repressiva e a abertura de mesa de negociação sobre práticas de reparação que não tiveram maiores repercussões dado a desmobilização e desorganização.
Em maio, aconteceu um ato em repúdio ao caso de Evaldo Rosa, um homem negro morto com 80 tiros no Rio de Janeiro. O ato foi convocado em poucos dias, aconteceu na avenida Paulista e acabou sendo um comício contra o racismo e o genocídio sem maior proposição política ou organizativa, se resumindo a uma ação de repúdio ao ocorrido.
Posteriormente, aconteceu um ato de repúdio ao racismo na estação de metrô Tucuruvi, após seguranças do metrô agredirem e roubarem o celular de um jovem negro na referida estação. Um vídeo sobre o caso viralizou nas redes sociais, foi convocado um ato de repúdio junto a família, o caso também não teve prosseguimento dado a desmobilização dos envolvidos e do recuo da própria família do jovem.
Durante o período em que escrevia esse texto, ocorreu uma mobilização nacional, com atos nas diversas capitais do país, por conta do assassinato com um tiro na cabeça da menina Agatha, de 8 anos, pela Polícia Militar no Rio de Janeiro. Essa mobilização não teve em sua organização a participação da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, mas seguiu um padrão de indignação popular a partir de um fato midiático de forma semelhante aos casos citados anteriormente, porém com uma força um pouco maior, chegando a constranger o governo federal e ajudando a enfraquecer a possibilidade de aprovação do “excludente de ilicitude” – instrumento jurídico que o atual governo tem procurado aprovar para legalizar oficialmente o extermínio sistemático de pessoas pela polícia militar.
Ações de indignação midiática como essas tendem a se repetir periodicamente, dado ao racismo estrutural que é instituidor da sociedade brasileira. Na atual conjuntura de avanço de mobilizações, é importante avançarmos a nossa organização e capacidade propositiva para que esses momentos possam ser associados a trabalhos cotidianos nos bairros e nas organizações, de forma a canalizar desses processos algum saldo organizativo e algum avanço concreto para as pautas em jogo.
O caso do jovem torturado no Ricoy teve uma maior qualidade do parte dos casos anteriormente citados, por gerar um processo de mais folêgo e conseguir, em alguma medida, se organizar com ativistas enraizados na região em que ocorreu o ato. O núcleo da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio da Cidade Ademar (que tem realizado um curso em parceria com a Defensoria Pública para ampliar o debate da luta contra o racismo e o genocídio na região), conseguiu fazer uma articulação entre organizações que foi mais qualitativa do que meramente a presença no ato. Dessa forma, foi possível formular uma pauta de reivindicações e, principalmente, trazer à tona todo um processo mais amplo de violência e tortura a que as populações periféricas são submetidas nos supermercados varejistas que exploram essas comunidades, trazendo um avanço na luta política e de consciência.
Após esse ato, a luta contra a tortura e o racismo nos supermercados Ricoy terá uma continuidade na forma dos processos judiciais já abertos e na pressão por negociação do movimento com o Ricoy. A mobilização fortaleceu os casos judiciais já em andamento contra a tortura em comércios, gerando alguma articulação entre os casos. No entanto, a maioria das organizações que se mobilizaram nesse primeiro processo midiático não continuaram na mobilização.
Esse texto visa ajudar a fomentar o debate, para que o avanço na organização e luta contra o genocídio, a tortura e a discriminação, que diariamente atinge os jovens, os negros, os encarcerados e os moradores de rua, não se restrinja apenas nas indignações pontuais que viralizaram midiaticamente. Para que essas lutas possam ter um avanço real, em termos organizativos, programáticos e políticos, e conseguir conquistas reais pra além de serem apenas atos para satisfazerem a boa consciência da própria militância ou fortalecer oportunistas que fazem carreira em cima do nosso sofrimento.
Fotos: Todas as fotos foram tirados no ato unificado do movimento negro em frente ao Ricoy da Vila Joaniza no dia 07/09/2019.
Por Gabriel Silva – Bancário e militante do Quilombo Invisível.
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