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15 dez 2022

Gentrificação urbana e violência institucional: Trabalhadores negros em São Paulo na primeira República

Neste pequeno artigo iremos abordar um tema fundamental para compreensão de como se estruturou o racismo posterior a abolição da escravatura, e para isso iremos tomar como objeto de estudo a população negra em São Paulo, sobrevivendo em meio a um projeto higienista e fundado sobre a teoria hegemônica do racismo científico, a qual afirmava que a tendência da população negra era o desaparecimento gradual. Esse desaparecimento seria fruto de um longo processo de 100 anos que traria ao Brasil uma homogeneização em torno da raça branca, que de acordo com Sílvio Romero e os seguidores do racismo científico, seria a raça superior entre os indígenas e negros.

O racismo científico não influenciou apenas a intelectualidade brasileira, mas se tornou também política institucional praticada pelo parlamento paulista, enquanto no nordeste os negros liberto passaram a integrar uma grande massa de trabalhadores reserva, sendo utilizados nas empreitadas das colheitas no campo. Em São Paulo, o parlamento construiu uma política de imigração para atrair força de trabalho estrangeira e assim substituir o trabalhor nacional negro.  

“Alli são principalmente italianos e tylolezes os immigrantes, mas têm provado de modo a honrarem a Europa e os paizes civilisados. Só a cidade de S. paulo conta nada menos de 18.000 filhos da Italia, que se preparam para ser excellentes cidadãos brazileiros. Os seus habitos de trabalho e procedimento são dignos do maior louvor.”

O trecho acima foi retirado do órgão oficial de imigração do Rio de Janeiro, apesar de não se tratar de um periódico paulista, podemos observar como a política de imigração europeia no sudeste foi fundada sob o racismo, pois seria como menciona o periódico, o europeu uma raça civilizada. Se destacam os italianos que entraram em maioria em São Paulo, isso porque se queria formar uma cidadania brasileira forjada sob o branco europeu. Esse anseio por construir uma classe trabalhadora branca e “civilizada”, reflete como os parlamentares também integravam o debate do racismo científico no final do século XIX e início do século XX. Eles viabilizaram a institucionalização de um projeto de transição de força de trabalho, em que brancos europeus deveriam substituir os negros não civilizados. 

A historiadora Célia Marinho Marinho, estudou o negro no pensamento das elites no século XIX, e a mesma investigou o debate dos parlamentares de São Paulo sobre a imigração, em que os mesmos deixam claro sua perspectiva de substituição do trabalhador nacional negro e livre pela força de trabalho branca, pois seriam o ideal de civilização para a construção da nação. Todas aquelas raças que não fossem brancas não seriam bem vindas para trabalhar no Brasil, pois somente os europeus brancos eram favoráveis à construção de uma cultura civilizada, e em teoria possuíam maior disposição para o trabalho. No intenso debate racista sobre o imigrantismo, os deputados chegam a pensar nos chineses como força de trabalho transitória, considerando que não era de sua índole a miscigenação, e estariam aptos a trabalhar por baixa remuneração. A opção pela imigração chinesa não se tornou efetiva, mas revela como não se tratava apenas de substituir o trabalhador negro, mas de construir uma classe trabalhadora branca e dentro dos padrões da civilização europeia. 

Agora podemos nos perguntar o que necessariamente este projeto de substituição de força de trabalho tem a ver com a gentrificação urbana. O que ocorre, é um projeto racista em sua totalidade, no qual isolar os negros dos setores mais dinâmicos de trabalho nas cidades, e trazer colonos brancos para o campo e a cidade, era a tentativa de concretizar o projeto de desaparecimento gradual do negro. Em meio a moradias precárias, poucas oportunidades de trabalho, e em meio a criminalidade, a tendência natural de desaparecimento do negro profetizada por Silvio Romero deveria se concretizar em pouco tempo. A tentativa de expulsar os negros das cidades e manter-los no campo servindo seus antigos senhores, chegou a ser debatida pelos deputados, que defenderam a cobrança de um imposto para os negros que habitassem as cidades, assim forçariam os mesmos a migrarem de volta ao campo.

“Era preciso, sobretudo, garantií a vinda de imigrantes, para somente mais tarde chegar à emancipação, quando os negros já estivessem convenientemente internados no campo, isto é, sob o controle dos grandes proprietários e sem possibilidades de subsistência autônoma nas áreas urbanas. As terras por sua vez já estariam sendo distribuídas aos imigrantes europeus interessados em tomar-se pequenos proprietários e com isso os ex-escravos e seus descendentes  teriam vedados praticamente todos os acessos a uma vida autônoma tanto em termos urbanos como rurais.”

O trecho deixa bem claro como o debate construído entre deputados e fazendeiros caminhava no sentido de tirar dos negros a autonomia e a liberdade, e assim, os impedindo de chegar às cidades e acessar o direito a propriedade e o trabalho assalariado urbano. Esse plano não ocorreu necessariamente como pensado pelos deputados, pois foi implantado para que de maneira espontânea os negros acabassem voltando para o campo, tendo em vista que o trabalho urbano reservava poucos lugares para eles. 

Essa conjuntura levou os negros como saída da má inserção no mercado de trabalho, a buscar suas cidades de origem em outros estados ou no interior de São Paulo; a reintegração a produção rural submetidos aos seus antigos senhores; a venda de sua força de trabalho em cidades menores como artesãos; e a busca pelos centros urbanos como São paulo e Rio de Janeiro, nos quais viviam em condições de miséria e degradação nos cortiços e favelas em formação. Todas as alternativas os levaram a condições precárias de sobrevivência, que mal ultrapassavam suas necessidades de subsistência. Os negros nos centros urbanos como São Paulo em escala muito reduzida ocuparam cargos públicos. Na indústria ou empregos mais estáveis, os níveis de desemprego e trabalhos temporários eram altos, muitos homens por exemplo viviam do sustento do trabalho doméstico feminino, que em certa medida estava mais assegurado.

Este cenário não impediu os negros de seguirem vivendo em São Paulo e ocupando as ruas centrais da cidade, mesmo que em trabalhos mais precários como vendedores, quitandeiras, lavadeiras, domésticas, carregadores e lixeiros. O trabalho do historiador  José Ferreira dos Santos nos apresenta uma cidade em que nem tudo e todos eram europeus, mas em que muitos negros seguiam circulando pelas ruas e subsistindo como podiam. Inclusive em sua pesquisa, José Ferreira recorreu às fotografias do processo de reestruturação urbana da cidade, somente assim pode lidar com a lacuna e negligência de dados do período.

Agora vamos a uma questão importante para dar desenvolvimento ao texto: como tudo o que foi trazido até aqui se relaciona com a gentrificação urbana?  Todas as políticas de prevenção de acesso do negro ao mundo do trabalho urbano, os obstáculos impostos para se acessar a terra, e as políticas de repressão ao trabalho ambulante praticado por negros e aos seus espaços de associação, são os maiores exemplos dessa política de gentrificação. O caso por exemplo da gradual expulsão das quituteiras das regiões centrais durante o final do século XIX, que resultou na lei de 1913 proibindo o comércio de doces, frutas e outros artigos sem regularização, é um indício de como os setores dominantes buscavam encurralar todas as formas de sobrevivência do negro.

Outro caso dos resultados da gentrificação urbana no centro de São Paulo, foi a remoção da Igreja Rosário dos Homens Pretos, a qual foi um centro de apoio e refúgio a comunidade negra desde antes do findar da escravidão no século XIX. Tendo se mantido como um espaço de expressões culturais e populares de origem negra e também indígena. A igreja se encontrava no famoso triângulo paulista, que estava nos limites das Rua XV de Novembro, Rua São Bento e Rua Direita, por ocupar uma parte do final da primeira rua, a igreja representava uma afronta a elite paulista e seus espaços de socialização e luxo no triângulo paulista. Outro elemento a destacar é que o Largo do Rosário, onde ficava a igreja, era ponto de concentração de vendedores ambulantes. Isso fez da igreja um alvo no processo higienista de reestruturação urbana da cidade, o qual foi inspirado na arquitetura da Belle Époque europeia. 

“Não precisamos especificar aqui o feito dessa perseguição de certos extrangeiros contra o negro brasileiro, pois que elle é muito variado tanto quanto conhecido: começa em alguns barbeiros e vae até certas casas de bebidas!

Si ficarmos encastellados no silencio da cobardia, si fugirmos atemorisados deante do volume dos nossos affrotadores, a nossa sorte amanhã será a de um verdadeiro condemnado social.

Não teremos barbeiros, não teremos sapateiros, nem alfaiates, não poderemos entrar nos hoteis, nos bars, nos cinemas, nas lojas, nos theatros, enfim, seremos expulsos dos bondes e enxotados dos trens, ficando mesmo sem o direito de transitarmos pelas calçadas!

“Quem cala consente”, e por isso é que precisamos agir sem termos e com segurança de acção.

Até dentro dos proprios templos estamos sendo victimas, pois existem cidades onde a moça de cor não pode ser filha de Maria, e, nem menino preto pode sair vestido de anjo nas procissões!”

O trecho acima retirado do jornal negro “O Kosmos”, mostra como os negros do período estavam encarando a situação do racismo praticado contra eles. A violência era tão sistemática que os levou a questionar, que se não reagissem se encontrariam em uma situação ainda mais precária em pouco tempo. É interessante observar que na citação, o escritor reforça como ofícios essenciais e comuns como os barbeiros, sapateiros e alfaiates, já estavam sendo tomados por imigrantes ou brancos, e pelo tom da escrita revela que em muitos não podiam entrar ou mesmo trabalhar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O negro brasileiro foi conduzido a uma formação capitalista chamada exército de reserva, o que nada mais é do que uma massa de subempregados e desempregados. Essa dinâmica do capital, é utilizada para enfraquecer o poder de barganha da organização dos trabalhadores, e assim dividir uma mesma classe nos setores de trabalho e sobretudo racialmente. O grande objetivo paulista era criar um mercado de trabalho branco, por isso a gentrificação urbana foi uma ferramenta de limpeza étnicas e racial da cidade em nome do “desenvolvimento”. Esse cenário só sofrerá importantes mudanças a partir da década de 1930, mas a construção do exército de reserva ainda mantém algumas estruturas semelhantes até os dias atuais.

BIBLIOGRAFIA

SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza: 1890- 1915. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2017. 

FERNANDES, Florestan. O Negro no Mundo dos Brancos. São Paulo: Editora Difusão Europeia do Livro, 1972.

AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra medo branco: o negro no imaginário da elites do século XIX. São Paulo: Editora Annablume, 2004.

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil. São Paulo: Editora Autêntica, 1999.

Fontes:

A Immigração : Órgão da Sociedade Central de Imigração (RJ) – 1883 a 1884.

O Kosmos 1923 – 1924.

Por João Vitor Santos Oliveira, morador do extremo sul de São Paulo, professor de história e mestrando em história na UNIFESP.

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