PT EN

15 jun 2023

10 anos de Junho de 2013 e as desobediências ingovernáveis de gênero

Este ano completa 10 anos de Junho de 2013, um dos acontecimentos políticos mais importantes e marcantes de nossa história recente, que ainda insiste e pulsa no presente.

Junho marca, sem dúvidas, uma ruptura em nossas subjetividades políticas. É muito comum ouvirmos que depois de junho as pessoas passaram a se interessar mais por “política” e que suas visões da sociedade mudaram. As pessoas não saíram as mesmas depois de Junho. A sociedade também não, dado que esse acontecimento, bem como sua repressão, produziu inúmeros efeitos. A repressão de Junho fez com que ele se prolongasse como um problema social e objetivo não resolvido, produzindo novas formas de lutas políticas, bem como reações e repressões.

Muita coisa já foi dita e é dita sobre junho. Desde a ladainha da esquerda institucional, segundo a qual Junho produziu o fascismo e ascensão da extrema-direita, até inúmeros debates sobre a importância da pauta do transporte; da brecha aberta para uma ruptura; o papel da violência policial na explosão das ações de rua; o aprimoramento das técnicas de repressão e dispositivos de exceção pelo Estado, como a Operação de Garantia da Lei e da Ordem;1 a luta contra as chacinas no Rio e a campanha “Onde está o Amarildo?” e “Liberdade para Rafael Braga”; o “Não vai ter copa”; e até sobre as Ocupações Secundaristas como um prolongamento dessa ruptura política que caracteriza Junho.

Muita coisa também já foi dita sobre a dimensão libertária de Junho de 2013, marcada por experiências de “anti-política”, se opondo a política no sentido estatal e como esfera de poder separada, pelo questionamento das tradicionais formas de organizações e práticas políticas (como os partidos e sindicatos), pelo uso crescente de ações diretas, como as ocupações, barricadas, quebras de bancos, concessionárias etc., além das táticas de autodefesas como a Black Bloc. A ruptura da subjetividade política produzida por Junho é bem concreta, e se expressou num questionamento profundo das formas de lutas e da maneira como se faz política.

Mas uma questão ainda persiste: onde estavam as pessoas dissidentes de gênero em junho de 2013? Esta questão é fundamental para pensarmos a dimensão dissidente de gênero dessa ruptura. Os 10 anos de Junho de 2013 acontece no mesmo mês do “orgulho” LGBT e da marcha trans. Contudo, os dois eventos não parecem conversar. Isso, de um lado, mostra como a esquerda radical é ainda perpassada pela cisgeneridade e por uma concepção higiênica das ações políticas, que apaga não só a presença de pessoas dissidentes nas ações diretas que marcaram Junho, mas a contribuição delas, a partir de ações diretas pornoterroristas, para colocar explicitamente o problema da violência sexual e gênero, que coloniza territórios, corpos e órgãos. Para parte da esquerda, inclusive a radical ainda marcada pela branquitude e cisgeneridade,  tais ações aparecem como agressivas ou sujas demais. Por outro lado, mostra como o movimento LGBT hegemônico e assimilacionista, que busca integração no Estado, apaga de sua memória as ações mais radicalizadas, realizadas por pessoas trans-travestis e racializadas, da história recente contra violências anti-trans/kuir. 

Em 2013, durante a terceira edição Marcha das Vadias no Rio de Janeiro, que coincidiu com a Jornada Mundial da Juventude (católica) e a visita do Papa Francisco, duas pessoas do coletivo Coiote, apenas com tapa-sexos, destruíram imagens e objetos sacros, e enfiaram no cu restos de crucifixo quebrado. Tudo isso diante da Força Nacional e da Polícia Militar.2 A performance pornoterrorista  foi também uma resposta às violências contra a Aldeia Maracanã e aos terreiros, legitimadas pela Igreja e pautando a dimensão colonial e racista da normatividade de gênero. Comenta Raissa Vitral:

“A performance em si durou muito pouco tempo. A gente estava na Aldeia Maracanã, vivendo o desalojo e pensando muito nessa igreja que roubou tudo, violentou e tentou apagar nossa cultura originária. Também pensávamos na matança, no genocídio da população indígena. Da mesma maneira, queríamos denunciar a violência contra os terreiros. Para mim, essa sacralização da mãe, como uma mulher pura, é uma coisa ruim. Para nós essas estátuas eram a representação dessas opressões. Como performance, se durou três minutos foi muito. Mas a repercussão foi grande.”3

Outra ação foi a Xereca Satânik em 2014, na UFF. Todas essas ações diretas imprimem também uma  dimensão estética na política libertária e dissidente de Junho de 2013.  Outro exemplo, nesse sentido, são as produções do grupo Anarko Funk, cujas músicas e atuações foram muito presentes em Junho, realizando diversas ações em conjunto com o coletivo Coiote.

Junho de 2013, assim, expressou também uma radicalização das ações de pessoas dissidentes contra a normatividade de gênero e sua violência, a partir de ações diretas ingovernáveis. Tais práticas contribuíram para a produção de uma ruptura da subjetividade política que é, simultaneamente, uma ruptura também com a cisgeneridade constituinte dos regimes de governabilidade social.

[1] Sobre as Operações de Garantia da Lei e da Ordem dentro das tecnologias de repressão anti-junho, ver https://vimeo.com/226910664

[2] O coletivo Coiote foi criado por Raíssa Viral e Bruna Kury, no Rio de Janeiro, em 2011. Em uma entrevista para a revista seLecT, o coletivo se caracteriza assim:”Gênero, sexualidade, DSTs, maternagem, transgeneridades, negritude, indigenismo, substâncias psicoativas, direito à cidade, à moradia, à alimentação e agroecologia foram postos no caldeirão que mantém o Coiote fervendo e coloca o corpo como ferramenta de tensão e questionamento ao senso comum e às normas vigentes”. In:https://select.art.br/teatro-da-crueldade/

[3] Entrevista com Raíssa Viral: https://tribunademinas.com.br/acervo/outras-ideias/18-08-2019/o-som-e-a-furia-da-performer-raissa-vitral-do-coletivo-coiote.html

Por Agnes de Oliveira Costa

0 Comentários

Deixe o seu comentário!

Seu e-mail não será divulgado

keyboard_arrow_up