Esteban del Cerro1

“Quando a pessoa coloca o yyvra’i, é um limite e um sinal. Ali o ñanderu [rezador] e o nosso teko jara vem pra abençoar as pessoas. Por isso que tem yvyra’i. […] É um objeto muito sagrado e precisa ser respeitado. Ele pode te proteger mas também pode amaldiçoar. O teko jara está lá, invisível, mas está para proteger quem está atrás dele. […] Pra alguns, parece uma madeira qualquer. Mas eles não sabem o que o yvyra’i pode fazer contra eles. Podem até tirar, jogar, queimar… mas o guardião daquele yvyra’i é coisa acima da humanidade e do dinheiro. O yvyra’i também é uma forma de transmitir pro seu inimigo que alguém está lá. Alguém está sendo protegido. […] Ele diz: ali está o verdadeiro dono do tekoha.” – Kunha Jeguaka Poty
“O Yvyra’i tem um guardião, são protetores. Se quebrar, se alguém destruir, algo acontece de ruim pras pessoas, são castigadas. Ao colocar ele no tekoha, é preciso fazer uma reza pra ele. E dele já começam a se aproximar os seres que a gente não vê. […] Guardiões das pedras, do mato… e o seu dono principal. A gente não tem arma de fogo, mas a gente tem nossos protetores. É ele que faz acontecer. Se yvyra’i decidir, o guardião vai nos proteger. A principal coisa que a gente tem é a reza. Nossa arma são os protetores, os seres que a gente não vê.” – Kunha Jegua’i
Assentar o yvyra’i na terra é fincar raízes. Os teko jara, espíritos-guardiões dos Kaiowa e Guarani e seus modos de ser já povoam as terras ancestrais retomadas pelos indígenas desde o dia 13 de julho de 2024, em diferentes regiões do Mato Grosso do Sul: no município de Douradina, três retomadas que compõem a Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica; em Caarapó, nas proximidades da retomada Kunumi Poty Verá – onde ocorreu o Massacre de Caarapó em 2016, quando foi assassinado o agente de saúde Guarani Kaiowa Clodiodi de Souza –, também houve avanço, assim como na região de Takuara, onde foi assassinado Marcos Veron em 2003.
Este cenário desvela um novo tempo de retomadas que faz estremecer o latifúndio corporativo2 em diferentes regiões do Brasil: No oeste do Paraná, através dos Ava Guarani (Tekoha Tata Rendy); no Rio Grande do Sul, o povo Kaingang (retomada Fág Nor); no Ceará, os Anacé (retomada Parnamirim); e, finalmente, no Mato Grosso do Sul. Para os propósitos desta matéria, iremos analisar o caso das retomadas recentes dos tekoha – como os Kaiowa e Guarani se referem aos seus territórios ancestrais – da Terra Indígena (TI) Panambi-Lagoa Rica.
A TI. Panambi-Lagoa Rica, onde ocorre o conflito em questão, no município de Douradina (MS), aguarda pelo andamento do processo demarcatório iniciado pela FUNAI em 2005 e publicado em 2011. Atualmente, a TI consta como delimitada numa extensão de 12.196 hectares e a demarcação está paralisada desde então com processo judicial no Tribunal Regional Federal-3 (TRF3) que questiona sua validade3. Ainda, em outubro de 2016, o juiz federal Moisés Anderson Costa Rodrigues da Silva, da 1ª Vara Federal de Dourados (MS), anulou o processo de demarcação sob a tese do Marco Temporal, a qual afirma que os indígenas deveriam estar ocupando suas terras tradicionais no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal (CF), para então terem suas terras demarcadas segundo o artigo 231 da CF.


Os Guarani e Kaiowa enfrentaram um longo processo de desapropriação de seus territórios ancestrais principalmente a partir do final do século XIX, intensificada com a criação das Reservas Indígenas pelo extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e, particularmente nessa região – conhecida como ka’aguyrusu, “mata grande/densa” – a partir da década de 1940, quando foi criada a Colônia Agrícola Nacional de Dourados. Foi neste período em que se intensificou o esparramo das famílias Kaiowa e Guarani – a dispersão causada pela ocupação das frentes coloniais de expansão agrícola -, resultando em uma escalada de violência e escravização de indígenas, conforme demonstra o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação de Terra indígena da TI. Algumas fazendas sobrepostas à Terra Indígena remontam este histórico de colonização: são os herdeiros da violência colonial que atualmente ocupam a área e produzem feridas no território através da monocultura de soja e milho.
O início das retomadas: Yvy Ajhere, Pikyxi’yn e Kurupay’ty
Retornemos ao dia 13 de julho. A primeira retomada é batizada de Yvy Ajhere, que significa “terra redonda”. O termo faz referência, de acordo com a memória de rezadoras, rezadores e antigos moradores da região, aos morros de terra feitos pelo minhocuçu (Rhinodrilus alatus uma espécie de minhoca gigante que produz húmus, ameaçada de extinção), por onde os indígenas caminhavam em período de alagamento. O território possui pequenas faixas de mata, referenciadas como antigos locais de caça e circulação de ampla biodiversidade, coleta de medicamentos tradicionais e incidência de muitas árvores nativas, inclusive a árvore destinada para a extração da resina do tembetá, utilizada no ritual do kunumi pepy, quando ocorre a perfuração labial dos meninos para transição de fases da vida. Anciãs que participam da retomada, entre elas, uma senhora de 92 anos, compartilham a vida cerimonial pulsante e as formas antigas de habitação do local, inclusive a presença de casas de reza (ongusu) que serviam como espaço de residência. Nas proximidades de Yvy Ajhere, também foram retomados os tekoha de Pikyxi’yn e Kurupay’ty.
O avanço das retomadas é reprimido com ofensivas dos latifundiários através de dezenas de caminhonetes, fogos de artifício, sobrevoos de drones e tiros de arma letal, fato que se repete nas demais áreas recuperadas nos municípios de Caarapó e Juti, e seguem o padrão de violência desatado nos demais estados onde os indígenas se mobilizaram.
No dia 14, um indígena foi ferido na perna com bala letal, em Guyra Kambi’y, outro território recuperado desde 2011 em região a alguns quilômetros da Yvy Ajhere4. Na noite do dia 22 de julho, após audiência com o Ministério Público Federal, dezenas de caminhonetes enfileiradas acenderam os faróis ameaçando um ataque. Em vídeo divulgado nas redes sociais, um fazendeiro filmou a ação e afirmou que estariam prontos para o “grande confronto”5. Ocorre que, em resposta à recuperação das terras ancestrais, os ruralistas montaram uma estrutura em frente à retomada Yvy Ajhere, onde permanecem desde o dia 13 de julho. Ali, podem ser avistadas duas tendas com estrutura metálica, além de gerador de energia e forte iluminação voltada à retomada. As cenas são de terror permanente. Até a publicação deste artigo, Yvy Ajhere segue ocupada pelo acampamento de fazendeiros e pistoleiros, com amplo apoio político de deputados federais e pré-candidatos bolsonaristas, organicamente vinculados ao latifúndio. O acampamento está a 50 metros das primeiras casas da retomada.

Na terça-feira, 23, os ataques seguiram. Por volta 21h15, uma caminhonete Fiat Touro passou a barreira interposta pelas viaturas da Força Nacional (FN) e se deteve de forma ameaçadora frente à retomada. Após o ocorrido, o fazendeiro conversou por alguns minutos com agentes da FN. Pouco tempo depois, às 22h05, houve uma nova incursão pelo lado oposto, quando a caminhonete ameaçou passar por cima do yyvra’i e das casas de lona da retomada. A comunidade impediu o avanço, resguardando as anciãs que se feriram ao saírem de suas casas pela ameaça de ataque.
Nas demais retomadas da região – Pikyxi’yn e Kurupay’ty– pistoleiros posicionam caminhonetes e motos em suas proximidades com vigilância 24h. Nas três áreas, drones são utilizados para monitorar os indígenas, sobrevoando as casas de lona e as pessoas reunidas em diversas horas do dia. A despeito da presença da Força Nacional, caminhonetes adentram a retomada durante a noite, intimidando e descumprindo o acordo de não ultrapassarem a área delimitada para segurança das e dos Guarani e Kaiowa que ali resistem.
No dia 17 de julho, foi aberta uma ordem de despejo contra a retomada, movida por Lana Ferreira Lins Lima e Laisa Ferreira Lins Lima. O advogado, Wellington Morais Salazar, perpetrou Mandado de Segurança para Rogério Alvares Camacho, que possui propriedade rural sobreposta à Terra Indígena Dourados Amambaipegua I e possível parentesco com Jesus Camacho, um dos acusados de cometer o Massacre de Caarapó. O mesmo advogado fez a defesa de Pio Queiroz Silva, Dacio Queiroz (vice-presidente Acrissul), RoselI e Luana Ruiz quando da retomada de Nhanderu Marangatu.
No dia 26 de julho, começam a ocorrer sobrevoos de helicóptero, possivelmente realizando um mapeamento da retomada para efetivar a reintegração de posse, marcada para ocorrer em até 5 dias após sua publicação. Os Guarani e Kaiowa, a despeito do cerco da síntese macabra estatal-empresarial e latifundiária, não irão recuar tampouco negociar o direito à terra ancestral. É no coração da dignidade dos povos indígenas que o Estado se cala.
O Estado Latifundiário
A tímida atuação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) escancara o uso da questão indígena pelo Governo Federal como moeda de troca com o latifúndio. Na prática, a inoperância do MPI e a ineficácia das ações demonstram seu uso contra-insurgente e conciliador pelo Estado, logo percebido pelos povos indígenas – não é mais possível esperar pela efetivação de direitos que se arrastam por décadas. A ação do MPI repete o roteiro de militarização do território: a Força Nacional é acionada por 90 dias, monta-se a estrutura de um estado de exceção – que é, na verdade, permanente no Mato Grosso do Sul – tal qual em 2015 após o assassinato de Simião Vilhalva, em 2016 após o Massacre de Caarapó e nos anos subsequentes em Dourados, com a onda de retomadas no entorno da Reserva Indígena, até 2022 com o Massacre de Guapo’y, no municipio de Amambai.
Diante da iminência de um novo massacre – que é também a erupção de renovadas resistências indígenas contracoloniais6 –, o Ministério Público Federal (MPF) busca o mesmo caminho da conciliação que caracteriza as negociatas do Estado latifundiário, propondo em acordo com os fazendeiros a concessão de 150 hectares supostamente cedidos por uma das proprietárias rurais cuja fazenda é sobreposta a Terra Indígena. Para isso, os indígenas haveriam de recuar das terras retomadas e aguardar por anos obscuros de encaminhamentos burocráticos. A proposição do MPF ainda é condicionada a mobilização de recursos federais para pagamento pela cessão das terras – o que pode tardar anos, sendo uma solução que nega os direitos dos povos ao seu território originário, traz um aparente apaziguamento das reivindicações dos indígenas e que não tem garantia de acontecer, pois o processo poderia demorar anos até se efetivar.
A resposta das rezadoras é contundente: “não iremos negociar”. Apontam em uníssono a longa espera de mais de 20 anos pela demarcação, a morte de parentes que nunca viram a terra recuperada e o histórico de violência ao que se veem submetidas. Para que(m) serve o discurso de pacificação?
Algo que une as perspectivas conciliadoras – Governo Federal, MPF e ruralistas – é precisamente o discurso da “paz”. Não por um acaso, no dia 22 de julho ocorreu uma audiência no MPF concomitante a manifestação mobilizada por latifundiários e políticos com o mote “paz no campo”. Os demandantes da paz se destacam como membros da bancada da bala: Deputado Federal Marcos Pollon (PL) – coordenador do movimento pró-armas e membro da Frente Parlamentar Invasão Zero –, Deputado Federal Rodolfo Nogueira (PL) e pré-candidato a vereador Sargento Prates (PL) – investigado pelo MPF pelas manifestações/acampamento em frente ao quartel de Dourados em 2022 –, que tem atuado ativamente no acampamento que vem ameaçando assassinar aos indígenas e de onde foi articulado o ataque com arma de fogo que deixou um indígena Guarani Kaiowa ferido na perna, quase atingindo a artéria femoral.
Cabe ressaltar que a mesma área de 150 hectares que o MPF ofereceu como forma de negociação é a área sobre a qual o juiz Rubens Petrucci Júnior decidiu por reintegração de posse a favor das proprietárias do Sítio José Dias Lima, com prazo de desocupação na próxima terça-feira 30 de julho, instando ao governo do estado do Mato Grosso do Sul e sua Polícia Militar e à Polícia Federal para executar a ordem de despejo contra as comunidades indígenas.
Ainda sobre esta decisão, salta à vista o silenciamento das questões indígenas e a busca por reafirmar seus direitos ancestrais à terra. O Juiz Petrucci Júnior afasta a necessidade de audiência com a União e a FUNAI, desconsiderando a ação como reivindicação indígena e a trata apenas como uma questão fundiária, sobre a posse dessa área, arguindo que os indígenas estariam ‘invadindo’ a propriedade, reafirmando também a tese do Marco Temporal, ignorando o processo de expulsão e desterritorialização que sofreram as comunidades Guarani e Kaiowa. Cabe recordar que Petrucci Júnior foi o responsável por decretar a prisão dos 9 indígenas criminalizados pela retomada de Yvu Verá em 20237.
Além dessa proposta de acordo para evitar o despejo e reintegração de posse por parte do MPF, os fazendeiros teriam criado um fato ao averiguar por um “acordo para a colheita do milho” por intermediação dos policiais da Força Nacional. Na manhã do dia 24, uma caminhonete se aproximou das viaturas da FN. Em seguida, dois policiais da guarda procuraram as lideranças da retomada comunicando a mensagem dos fazendeiros: “o senhor Cleto [Spessato] queria perguntar se se mantém o acordo para a colheita do milho” e, de maneira irregular, gravaram a averiguação no celular de um dos policiais. Os indígenas manifestaram surpresa pois não estavam informados de nenhum acordo nesse sentido. Quando se fez presente em território, o MPF também expressou desconhecimento.
Para os indígenas trata-se de uma ação intimidatória, pois não seria necessário passar pela área retomada para acessar ao lote com o milho a recolher. O receio seria de que essa colheita fosse usada como justificativa para passar com os tratores por cima da retomada, destruindo as casas de lona e yvyra’i ali postos, além da vigilância das pessoas que estariam na retomada. Além disso, o acontecimento destaca os possíveis vínculos entre a Força Nacional e os fazendeiros locais.
Em nota publicada no dia 26 de julho, a FUNAI afirma que segue “atuando no monitoramento e mediação dos conflitos em áreas tradicionalmente ocupadas por povos indígenas nos estados do Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Sul e Ceará”, e que vem dialogando com as comunidades em parceria com outros órgãos públicos para “diminuir as tensões e colocar um fim aos conflitos, que ameaçam a vida dos indígenas”. No caso do conflito em Douradina, teria feito presença através de um representante da Procuradoria Federal Especializada junto à FUNAI e estaria atuando na defesa judicial da comunidade.
Até a apuração desta reportagem, a Procuradora não se deslocou até o local do conflito pois estava estudando o caso, e convidou oito representantes da comunidade ao seu escritório na Coordenadoria Regional de Dourados para discutir alternativas de solução ao conflito.

Em se falando do Marco Temporal, cabe ressaltar que essa tese jurídica, proposta pelo ex-ministro Ayres Britto, foi rejeitada pelo Supremo Tribunal Federal em decisão colegiada de repercussão geral em setembro de 2023. No entanto, rapidamente a bancada ruralista no Congresso Nacional propôs e conseguiu a aprovação da Lei 14.701/2023 estabelecendo a inviabilização de processos de demarcação de terras para aqueles que não ocupavam seus territórios tradicionais na referida data da promulgação constitucional. A Lei teve trechos vetados pela presidência, mas o próprio Congresso derrubou os vetos. Os vetos, ainda assim, mantinham elementos voltados à pilhagem dos territórios indígenas, como a permissão de arrendamentos, mineração e outras formas de extrativismo em Terras Indígenas.
Atualmente a Lei do Marco Temporal e todos os processos judiciários que tem essa lei como base encontram-se suspensos por decisão do STF, após partidos políticos e organizações de indígenas e de apoiadores acionarem o Supremo por meio das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) 7582, 7583 e 7586 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 86 alegando que dispositivos dessa Lei seriam contrários ao já decidido pela corte.
Não obstante, paralelo à tramitação da Lei 14.701/2023, no Senado tramita a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 48 de 2023, de iniciativa do senador Dr. Hiran (PP-RR), que visa a alteração do artigo 231 da CF para estabelecer um marco temporal definitivo de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas.
Entende-se que um dos factores que acirram este conflito é a estratégia de gerar insegurança jurídica pela proposição de dispositivos legais que contradizem a decisão já tomada pelas cortes constitucionais brasileiras, que no processo de tramitação e conciliação entre os poderes do Estado atravancam e paralisam as demarcações e homologação das terras indígenas no país; ao passo que articulam-se em Frentes Parlamentares, milícias e outros poderes paralelos para atacar com violência às populações que buscam a efetivação e garantia dos seus direitos fundamentais, como é o caso do Invasão Zero.
80 anos de violências, 20 anos de promessas incumpridas
A zona de conflito teria sido outorgada pela ditadura de Getúlio Vargas aos fazendeiros na década de 1940 e, portanto, concedido a propriedade durante o processo de expulsão dos indígenas, declaração de terras nuas e reservamento das populações em Dourados, sendo deslocados a 50 km das suas terras originárias, mas em nenhum momento estes povos deixaram de resistir.
Atualmente, além das reservas, os indígenas em Lagoa Rica estão confinados em uma área de apenas 300 hectares, onde moram mais de 1000 pessoas. Uma das motivações das retomadas é justamente a falta de terra: “os jovens estão formando suas famílias e não têm onde morar, não temos terra para plantar”. As retomadas são, sobretudo, formas de defender e retomar também os modos de vida conectados à ancestralidade.
Esta não é a primeira vez que ocorrem agressões às áreas de retomada da região. Em 2005 houve uma primeira ocupação dessas terras ocasionada também pela falta de terra. Na ocasião, os fazendeiros teriam contratado seguranças privados para retirarem as pessoas à força da retomada. Em 2015, a mando do latifundiário Cleto Spessato, ocorreu no dia 6 de janeiro um ataque químico com a aspersão aérea proposital de agrotóxicos sobre o Tekoha Guyra Kambi’y. Em setembro do mesmo ano, fazendeiros e seus pistoleiros avançaram violentamente contra o mesmo tekoha. Nesse momento, o então ministro da justiça José Eduardo Cardozo encontrou com ruralistas e políticos do Estado para buscar um Acordo de Paz e soluções aos conflitos fundiários da região. Dois dias depois do encontro com o ministro o acordo foi descumprido, agredindo novamente à comunidade indígena. Trata-se assim de um contexto de constante terror, extermínio e pilhagem contra os povos indígenas e suas terras, haja ou não retomadas. Ainda, é constante o descumprimento de acordos e de promessas por parte do Estado brasileiro, de seus representantes e dos ruralistas.
Parte das estratégias de assédio é a chamada a buscar acordos sobre o irreconciliável. Em 2023, de forma intimidatória para as comunidades indígenas, Spessato teria convocado a uma reunião de negociação de acordo prévio a um possível pedido de reintegração de posse com o Tekoha Guyra Kambi’y.
Conforme relatam os indígenas na retomada, na sua maioria mulheres e jovens, não confiam nas propostas de acordo que têm sido apresentadas e reivindicam a outorga total da terra já delimitada (12.196 hectares) e nem acreditam na boa fé das instituições e dos fazendeiros, que continuam com as ameaças de avançar por cima das casas de lona, das pessoas ali presentes e dos elementos da cosmologia guarani e kaiowa que usam como proteção.
No conflito ocorrido em 2005, durante a primeira tentativa de retomada houve a promessa de entregar casas de alvenaria, infraestrutura básica de água, acesso à rede de energia elétrica e escola. Nenhuma delas foi cumprida até hoje sob escusa de não ser uma área homologada. Também foi prometida a devolução das ferramentas de trabalho roubadas pelos ruralistas e seus seguranças durante as incursões e tentativas de despejo ilegais, que não foram reparadas nesses quase 20 anos.
A farsa da conciliação
Alguns eventos chamam atenção para a atuação do Governo Lula no MS: no primeiro mês de seu mandato em 2023, reuniu-se com Eduardo Riedel, atual governador do MS, para garantir que visitaria as obras da Nova Ferroeste, ferrovia que vai a leilão em 2025 e irá impactar dezenas de territórios Kaiowa e Guarani no estado de Mato Grosso do Sul (MS) e Ava Guarani no estado de Paraná (PR) e de outras comunidades tradicionais, fomentando a expansão da produção de soja e o avanço de arrendamentos em Terras Indígenas para exportação de commodities através do Porto de Paranaguá, PR. Mais recentemente, no dia 12 de abril, Lula veio novamente ao MS para o envio simbólico de um carregamento de carne bovina para a China em evento no frigorífico da JBS em Campo Grande. Na ocasião, propôs como “solução” para os conflitos entre fazendeiros e indígenas no MS a compra de terras para os Kaiowa e Guarani. Tanto a soja quanto a carne serão priorizadas na exportação para a China, direcionadas através do corredor de infraestrutura que a Nova Ferroeste pretende cobrir.
A nível estadual, o Partido dos Trabalhadores se uniu em frente única com Eduardo Riedel nas eleições de 2022. Riedel já foi presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (FAMASUL), que reúne sindicatos rurais – e foi um dos principais organizadores do Leilão da Resistência em 2013, que articulou a venda de gado para arrecadação de fundos voltados a compra de armas, contratação de seguranças privados e financiamento de estrutura para atacar as retomadas Guarani e Kaiowa. Riedel, ainda, foi escolhido pelo Fórum Nacional de Governadores para a Comissão Especial que irá tratar do Marco Temporal, determinada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
O contexto revela, por um lado, o simulacro do Estado pretensamente democrático de direitos e, por outro, seu fundamento maior: o massacre como base que permite a acumulação capitalista8. Neste sentido, há uma suspensão do Estado democrático de direito para o cumprimento das demandas da acumulação. É o que a Frente Parlamentar Invasão Zero (FPIZ) e o movimento a ela coordenado, responsável pelo assassinato da Nêga Pataxó na Bahia demonstram. É o que o contexto debatido neste texto sobre o Mato Grosso do Sul também demonstra. O discurso da busca por “segurança jurídica” no que diz respeito ao Marco Temporal, afinal, é apenas mais uma forma de defesa da propriedade privada.
Ao analisarmos os atores envolvidos nos ataques contra os Kaiowa e Guarani, salta aos olhos a rede estabelecida entre proprietários rurais e políticos locais, no entanto, mais além, com o crime organizado, o que também ilustra a cada vez mais nebulosa fronteira entre o legal e o ilegal. Cleto Spessatto, conhecido latifundiário já citado anteriormente, proprietário da Fazenda Spessatto (sobreposta a TI Panambi-Lagoa Rica), possui inúmeras empresas e sócios, com destaque para empresas de aviação agrícola, no setor imobiliário em Maracaju, empresas de abastecimento de diesel e distintos postos de gasolina, além de empresas agropastoris. Parentes-sócios, como Dori Spessatto, já foram denunciados por desvios milionários do Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (DNIT)9.
Outros sócios de Cleto Spessatto também chamam atenção: Neri Sucolotti é sócio na empresa Spessatto Agropastoril LTDA, com sede em Porto Murtinho – onde foi inaugurada a Rota Bioceânica, corredor de exportação que conecta o Brasil aos portos do norte do Chile – e voltada para criação de bovinos, cultivo de milho, soja e também setor imobiliário. Neri Sucolotti, além de um empresário da soja e do setor de transportes, provocou um rombo nos cofres públicos de 3,2 milhões de reais através do Grupo Sucolotti, com uso de laranjas para sonegação fiscal em 200310. Em 2004, o parente foragido de Neri, Fabio Marcelo Sucolotti, foi preso por realizar atentado contra o Ministério Público Estadual no Parque dos Poderes em Campo Grande, em retaliação a operação que prendeu Neri e os demais no ano anterior11.
E diga ao povo que avance!12
O recuo dos movimentos sociais no país e a institucionalização das resistências não corresponde aos regimes de insurgência permanente dos povos indígenas, que desde o início da colonização não cessaram seu levante por terra, território e autonomia. As retomadas ocorridas – até o momento – em 2024, demonstram esta questão ineludível: não há caminho do meio, assim como não há negociação possível sobre a terra mãe. A luta é habitada por muitas forças, inclusive espirituais, que fincam raízes através do yvyra’i. E tais forças não se enganam sobre os algozes da vida livre. As retomadas, berços do novo mundo e escolas de luta, abrem caminho para que se desfaça mais um pouco a camada suja de agrotóxico que habita as monoculturas, pouco a pouco retiradas com as mãos dos guerreiros e guerreiras Kaiowa e Guarani, terras re-abençoadas pelas nhandesy que não arredam o pé de suas terras ancestrais.
As sórdidas e macabras redes do latifúndio corporativo, vulgo agronegócio, não enganam o povo, tampouco a política de gabinete do andar de cima, ainda que com discurso de inclusão e migalhas ministeriais. Pela porta dos fundos, a soja segue escorrendo para o mercado asiático, ainda que quem sobe a rampa tenha muitas cores no dia 1º.
A atual ameaça de despejo contra as retomadas dos tekoha na Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica pode repetir o cenário do massacre de 2022 em Guapo’y. Entretanto, o muro impassível erguido pelas rezas-cantos-dança Kaiowá e Guarani e sua obstinada batalha pelo retorno ao lugar onde se é13 constituem obstáculos intransponíveis para a sanha desenvolvimentista.
Cabe a nós repetirmos o mantra: “o risco que corre o pau corre o machado/não há o que temer/aqueles que mandam matar também/podem morrer”.

1 O autor, nascido na Argentina, foi encontrado à deriva pelos Guarani e Kaiowá.
2 Referência: https://ojoioeotrigo.com.br/2023/06/quem-levou-o-milho-pra-bolsa-de-valores/.
3 Referência: https://www.brasildefato.com.br/2024/07/15/indigenas-guarani-kaiowa-sao-baleados-em-ataques-apos-retomadas-de-terras-no-ms-estao-prometendo-um-massacre.
4 Na Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, atualmente, além das três retomadas recentes, constam Guyra Kambi’y,
5 Referência: https://midiamax.uol.com.br/cotidiano/2024/video-mais-fazendeiros-chegam-a-area-ocupada-por-indigenas-e-risco-de-confronto-aumenta-em-douradina/.
6 Utilizamos esta ideia inspirados em Nego Bispo.
7 Referência: https://www.brasildefato.com.br/2023/04/29/entre-muros-e-grades-a-criminalizacao-da-luta-guarani-kaiowa-pela-nova-retomada-de-yvu-vera.
8 ZIBECHI, Raúl. Territórios em Rebeldia. São Paulo: Editora Elefante, 2022.
9 Referência: https://correiodoestado.com.br/cidades/mpf-denuncia-br-doze-por-desvio-de-r-14-mi-no-dnit/177773/.
10 Referência: https://www.douradosnews.com.br/noticias/grupo-sucolotti-teria-sonegado-r-3-2-milhoes-ao-fisco-estadual-766a8f7/176352/.
11 Referência:https://midiamax.uol.com.br/policia/2022/flagrado-com-arma-mandante-de-atentado-contra-gaeco-em-campo-grande-fica-preso/.
12 Frase atribuída ao Cacique Chicão Xukuru
13 Tradução possível para tekoha.
3 Comentários
Prezado Esteban, que texto profundo e provocador: provoca nossa reação; nos evidencia as dores dos Guarani e Kaiowá, dores que nem de perto alcançamos, mesmo em nossa necessária solidariedade-militante!
Que Ñanderu siga fortalecendo os Guarani e Kaiowá e que seu fogo queime os fascistas agrocéfalos. Que as lutas enpurrem o governo para suas obrigações constituicionais e históricas.