O masculinismo, entendido como práticas e doutrinas antifeministas, se fortalece no cenário político contemporâneo. Expoentes da extrema direita, como Trump e Bolsonaro, são exemplos evidentes dessa ascensão do masculinismo. Porém, muito menos debatido é o crescimento do masculinismo na esquerda. Inclusive, para além da política institucional, isso é observado nas diferentes organizações envolvidas nas lutas sociais de maneira mais ampla.
Alguns exemplos na América Latina são os casos da Bolívia e da Nicarágua. O ex-presidente boliviano Evo Morales, após recentemente escapar de processos por estupro de menores de idade, tem impulsionado uma guinada masculinista em seu partido, atualmente no governo, o MAS. A Federação de Mulheres Camponesas Bartolina Sisa, conhecida como “Bartolinas”, fundada antes do MAS há quase 40 anos, tem sofrido intervenção do partido. Por meio da CSUTCB (Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia), o partido tem combatido a existência de organizações exclusivamente femininas e imposto interventores como direção das organizações femininas. “Os Bartolinos”, como têm sido chamados, utilizam uma série de expedientes para excluir as mulheres das lideranças de suas próprias organizações, relegando-as exclusivamente às funções reprodutivas e operacionais.
O caso acima descrito parece uma atenuada repetição da história do presidente Daniel Ortega, da Nicarágua. Acusado de estuprar a própria filha adotiva, menor de idade, durante anos. Ortega conseguiu rever os processos judiciais contra si, punindo e exilando a vítima. Hoje, a Nicarágua é um regime abertamente masculinista. A repressão militarizada ao feminismo é generalizada, e militantes históricas do movimento sandinista estão exiladas. Até ONGs feministas foram proscritas do país, sob acusações semelhantes às usadas no Brasil para combater o identitarismo: o feminismo é acusado de servir aos interesses do imperialismo contra o progressismo, dividindo a classe trabalhadora para atender aos interesses da Casa Branca.
Na última década, observei guinadas masculinistas no cotidiano político de coletivos e movimentos sociais que guardam semelhanças com os exemplos acima. Vi essas situações no movimento autônomo, em movimentos de moradia, no sindicalismo, no movimento negro e, mais recentemente, no movimento estudantil. Recordo que o tema do avanço do machismo na esquerda surgiu pra mim pela primeira vez em conversas com amigos há dez anos, em um contexto em que percebíamos um significativo avanço dos movimentos minoritários e feministas, que estavam sofrendo uma forte reação masculinista. Hoje, o contexto mudou. O masculinismo não parece mais ter um caráter tão reativo, mas passa por uma guinada ofensiva, inspirada e respaldada pelo crescente poder da extrema direita, um dos pilares desse fortalecimento do masculinismo que se observa também na esquerda.
O masculinismo não diz respeito a um gênero ou sexo específico, mas a um posicionamento político que, em última instância, defende a direção masculina. Assim, mulheres e pessoas de diferentes grupos minoritários podem defender posições masculinistas. Na direita, isso é escancarado, como demonstram figuras como Michelle Bolsonaro ou influenciadoras conhecidas como tradwife (do termo traditional housewife). Abaixo, apresento uma síntese dos principais métodos utilizados contra o feminismo na esquerda hoje:
Destruir as organizações feministas
Trata-se, literalmente, de conspirar para a eliminação das organizações feministas. Muitas vezes, essas organizações são descritas como inimigas para justificar sua eliminação, são nomeadas com termos como identitárias, pós-modernas, sectárias, divisionistas, pequeno-burguesas ou burguesas. Com frequência, são acusadas de serem infiltrações da CIA, supostamente destinadas a dividir a classe trabalhadora, enfraquecer o progressismo e acabar com a esquerda na América Latina. A eliminação do feminismo é defendida como via de unificação e como caminho para alcançar as pautas centrais da emancipação de todos. Na prática, isso envolve um processo violento de ataques físicos, intelectuais, psicológicos e à reputação das organizações feministas, rompendo qualquer aliança ou solidariedade, inclusive em contextos de crise ou perseguição estatal.
Isolar as organizações feministas
Consiste em não apoiar, não se envolver, não ler, não participar de eventos, protestos, de frentes de lutas ou de boicotar ativamente de diferentes formas que sejam eventualmente possíveis as organizações feministas. Neste sentido, é comum que artigos ou livros inteiros críticos ao identitarismo e ao feminismo ignorem os nomes das principais organizações ou a autoria das ideias criticadas. Esse isolamento foi evidente, por exemplo, durante a pandemia, quando movimentos liderados em maioria por mulheres e feministas, como os de combate à carestia, de auto-organização por alimentação, movimentos contra a violência policial e movimento de familiares de presos, foram ignorados pelas principais organizações de esquerda com quadros dirigentes masculinistas, mesmo em contexto de ascensão e urgência dessas lutas.
Tentar dirigir as organizações feministas
Esse método é frequentemente empregado por dirigentes masculinistas de grandes organizações de esquerda, que procuram conciliar o fortalecimento do feminismo com seus próprios interesses pessoais. Organizações feministas subordinadas a esses partidos políticos acumulam um histórico de rachas relacionados a dirigentes homens, com ideias e posicionamentos machistas, que formal ou informalmente dirigem a organização.
De todo modo, esse procedimento é bastante comum em diversos casos. Os críticos mais ferrenhos do feminismo costumam apresentar sugestões sobre como o movimento deveria agir para conseguir avanços reais e efetivamente unificar as lutas, conforme suas próprias ideias. Na impossibilidade imediata de destruí-las, esses esforços visam moldá-las e domesticá-las.
Considerações finais
Enfrentar o masculinismo é também enfrentar um elemento do núcleo dos poderes hegemônicos. Ele se baseia na vontade de dominar, na vontade de tornar-se rico e na necessidade de subjugar mesmo aqueles com quem se cultiva afeto. A ideologia masculinista serve como pólo de aliança policlassista e como ferramenta de cooptação do Estado. Não à toa, está no centro das reações fascistas e militaristas de modo geral. Quando movimentos minoritários são acusados de dividir a esquerda, na realidade, a divisão é causada pelos setores majoritários, que correspondem em identidade à classe dominante: homens, brancos, proprietários, com ensino superior e cisheteronormativos. Estas não são as características predominantes da classe trabalhadora, que é fragmentada em incontáveis diferenciações minoritárias, mas sim a caracterização majoritária da classe dominante burguesa, a qual possui um perfil muito específico. Nesse sentido, é importante notar que quase tudo que foi dito neste artigo sobre o feminismo poderia ser aplicado a outros movimentos minoritários, sendo que o masculinismo é historicamente eixo central de variadas formas de exploração e opressão.
Assim, o que aponta o fortalecimento do masculinismo na esquerda é o aprofundamento da aliança entre setores da direção dos movimentos das classes dominadas e as direções das classes dominantes e, obviamente, em proveito próprio. Pretendo voltar a este tema em textos futuros, pois é importante destacar que o cenário brasileiro — com a derrota da esquerda nas eleições municipais, a vitória de Trump nos EUA e o provável retorno da extrema direita ao governo federal nas próximas eleições — faz com que a guinada da esquerda para o masculinismo, no mesmo nível do que ocorre na Bolívia ou na Nicarágua, esteja cada vez mais próximo de se generalizar também aqui.
Atualmente, já existem pessoas que defendem abertamente ideias masculinistas dentro das principais organizações da esquerda, embora ainda não possuam poder suficiente para impor suas vontades de forma mais abrangente. Nesse contexto, acredito que uma das prioridades centrais das lutas atuais é enfrentar o problema do masculinismo, como condição central da nossa sobrevivência no médio prazo.
Por Gabriel Silva
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