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20 mar 2025

“Mato Grosso do Sul é dessa forma, Estado paralelo!”: terror latifundiário ataca retomada de Pakurity

O tekoha Pakurity, retomado em 1986 pelos Guarani Kaiowá, está situado nas cercanias da BR-463 em Dourados, Mato Grosso do Sul (MS). Desde 2007, aguardam pelo Grupo de Trabalho responsável pelo Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) que conduziria o estudo antropológico para demarcação desse território. O tekoha é parte da Terra Indígena Douradopegua, e atualmente ocupa uma ínfima porção da área total reivindicada. A pequena área foi retomada pelos indígenas em 1998. A expulsão sofrida para abertura das fazendas de gado e, atualmente, soja e milho transgênico, desterrou os Guarani Kaiowá de Pakurity e os dividiu entre perambulações regionais e confinamento na Reserva Indígena de Dourados, o que acompanha o histórico de remoção forçada dos indígenas de suas terras no MS pelas frentes de expansão agropastoris. Neste ínterim, foram décadas de permanência e circulação em Pakurity por outros meios: trabalhos temporários na fazenda; utilização do feixe de mata nas proximidades para extração de plantas, ervas e raízes medicinais, frutos, caça e pesca; circulação das parentelas na região; a memória dos mortos e antepassados.

No dia 18 de fevereiro deste ano, a retomada passou a ser alvo de novos ataques e tensionamentos com os fazendeiros por conta de uma pequena roça de milho cuidada pelos indígenas, que conduzem à intensificação das violências ruralistas no dia 22 de fevereiro. Neste último dia, fazendeiros e arrendatários iniciaram uma ofensiva contra a comunidade com tiros letais, balas de borracha e bombas. Além disso, abriram uma vala com uma máquina agrícola separando a comunidade de uma área de plantio de milho transgênico, local que se torna uma barricada da área de resistência à ofensiva ruralista. Os fazendeiros prometeram enterrar os indígenas na vala comum. A frase que inicia a matéria trata desse paralelismo, que é coordenado, entre os vínculos do Estado com os grandes fazendeiros da região, como também demonstraremos a seguir.

“Hoje nós passamos ataque terrorista!”

Ainda no dia 22, os fazendeiros iniciam a montagem de um acampamento, aos moldes do que fizeram em Douradina a partir do conjunto de retomadas que estremeceu as bases do latifúndio em julho de 2024 no MS. Na ocasião, fazendeiros, pistoleiros e seguranças privados, com o apoio de policiais militares, políticos da extrema-direita e anuência de outros órgãos públicos, montaram dois acampamentos fixos a poucos metros das novas retomadas e Douradina, onde estabeleceram uma base fortemente armada para tentar impedir a recuperação da terra indígena. Apesar da extrema violência desatada contra os Kaiowá e Guarani, que resultou em inúmeros feridos – inclusive um jovem que, até hoje, carrega uma bala na cabeça –, os fazendeiros não conseguiram deter a resistência. Criaram, no entanto, o que aparenta ser um novo modo de funcionamento do terror latifundiário, muito semelhante ao modus operandi do movimento Invasão Zero, que agora se multiplica no entorno de outras retomadas, como Pakurity.

Homem ao lado de uma rocha com montanhas ao fundo

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Guerreiro Kaiowá diante da vala e do acampamento montado por fazendeiros e pistoleiros. Arquivo pessoal.

Uma das mulheres da retomada, entrevistada para essa matéria, afirma que “eles atiram toda noite, embriagados, vem perto da vala”. Os relatos das famílias de Pakurity reforçam a ideia de terror latifundiário: “hoje nós passamos ataque terrorista! Me expulsaram no momento da minha reza. Como os ruralistas botam capanga ali pra eliminar criança? Aqui tem muita criança e já tão acostumado a ouvir tiro de revólver, ver capanga de facão”. São relatados adoecimentos de crianças, inclusive asmáticas, por conta dos ataques com bombas de gás. Ainda, por conta das bombas, uma mulher grávida teve de sair às pressas da retomada pois entrou em trabalho de parto prematuramente. No total, foram contabilizados mais sete feridos: uma senhora de 44 anos, que levou um tiro na coxa; uma mulher de 20 anos, alvejada no joelho enquanto rezava; uma jovem de 18 anos que teve o ombro queimado por uma bomba; uma criança de 12 anos que teve sua mão quebrada ao cair na fuga dos ataques e não recebeu atendimento médico; uma criança de 9 anos com crise asmática, que não consegue acesso à bombinha via SESAI. Sobre esta última criança, A.F.M, sua mãe conta que iniciou as crises asmáticas durante a repressão à retomada de Yvu Verá, também em Dourados, em 2023. A comunidade de Pakurity relata também a participação de policiais militares no ataque do dia 22.

Uma imagem contendo pessoa, ao ar livre, comida, homem

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Pessoa sentada no chão

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Menino sentado no chão

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Uma imagem contendo pessoa, homem, mulher, em pé

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Ainda, os indígenas relatam que perderam cobertas, alimentos, panelas e roupas com o ataque, além de plantações que haviam produzido para alimentação da comunidade. O acontecimento reativa antigos traumas, e se multiplicam inúmeros relatos de mortes e assassinatos causados pelo histórico do desterro. Por fim, os Guarani e Kaiowá que habitam Pakurity partilham uma ameaça específica dos autores da ofensiva latifundiária: “se vocês não saírem, vou trazer o caveirão!”. A frase nos leva a entender mais a fundo as redes que vinculam agronegócio, Estado e milícias agrárias em operação no MS. Quem são os donos da terra sobreposta a Pakurity e quem são os arrendatários? Como se vinculam a outros episódios de violência contra os Guarani e Kaiowá?

Desmembrar as redes do terror agrário

O “caveirão” é uma máquina agrícola modificada, com placas blindadas e buracos para inserir canos de armas, amplamente utilizada para ataques contra retomadas Guarani e Kaiowá na região de Dourados. Uma das retomadas atacadas pelo caveirão é Ava’ete, nas margens da Reserva Indígena de Dourados, que também tem sido alvo sistemático de ataques químicos por estes fazendeiros, que lançam agrotóxicos nas roças e nas pessoas que lá residem. Entre os acusados, estão Allan Kruger e Giovanni Jolando Marques, seu pistoleiro, que atuam em conjunto com a empresa de segurança privada Miragem. A fazenda de Allan Kruger, “Santa Hilda”, é sobreposta a área de Ava’ete e se expande em arrendamentos na região, alguns onde se situam seus capangas. Em matéria publicada no Quilombo Invisível, as redes vinculadas a estes fazendeiros – que hoje também atacam Pakurity – são evidenciadas: advogados do mesmo escritório de advocacia¹, inclusive antigos presidentes da OAB como Felipe Cazuo Azuma e Ewerton Araújo de Brito, fizeram a defesa de Allan e Giovanni, assim como 3 dos 5 acusados pelo Massacre de Caarapó em 2016. Um dos sócios de Allan Kruger é citado na matéria:

“No mesmo escritório de advocacia também atua Alberi Rafael Dehn Ramos que, junto com Felipe Azuma e Ewerton de Brito, defenderam o fazendeiro Laertes Alberto Dierings, que se tornou réu em 2021 por violação de sepultura e ocultamento de cadáveres de cemitério indígena Guarani e Kaiowá na retomada Pakurity: 80 corpos foram desaparecidos em 2013[9]. Laertes Dierings é sócio de Allan Kruger (diretor) na Coopasol – Cooperativa Agropecuaria Sulmatogrossense, que possui capital social total de 3 milhões de reais. Seu irmão, Cesar Roberto Dierings, já foi vice-presidente do Sindicato Rural de Dourados.”.

Grupo de pessoas sentadas no sofá

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Membros do escritório de advocacia. Foto retirada do site do escritório.

O caso dos 80 corpos violados em Pakurity por Dierings se tornou um processo atualmente em curso no TRF-3. No ataque do dia 22 de fevereiro, foram violados também objetos sagrados Guarani Kaiowá, como um yvyra’i – feito de estacas de madeiras presas ao solo, que assentam espíritos guardiões – e um mimby – instrumento de sopro usado para se comunicar com as divindades – que foram destruído pelos fazendeiros. O mesmo ocorreu durante as retomadas em Douradina. 

No caso da Fazenda São José, sobreposta à área reivindicada por Pakurity, é uma fazenda originalmente vinculada a Atílio Torraca e herdada por seus filhos. Atílio, que morreu em 2012, é referenciado como “pioneiro” de Dourados. Seu filho Jorge Hamilton Torraca, Engenheiro Civil, já foi denunciado por corrupção em 2010, por haver participado em fraudes em licitações na prefeitura causando um rombo de 35 milhões nos cofres públicos. Atílio Torraca e a esposa, Madalena Torraca, também foram defendidos pelo Sindicato Rural de Dourados à época em que o Quilombo Dezidério Felipe de Oliveira, conhecido como “Picadinha”, iniciou seu processo de reivindicação da terra quilombola, conforme divulgado em 2009. O Sindicato afirmava que o quilombo, atualmente em processo de titulação, era uma “fraude”.

Consideraçòes finais

Enquanto finalizamos esta matéria, no dia 11 de março, uma guerreira de Pakurity envia um áudio afirmando que os “ataques continuam: hoje a noite passou camionete aqui cheia de pistoleiro e atirou na direção do acampamento lá da estrada. Só estamos esperando o momento da nossa morte”. Concomitantemente, a sequência da ilegítima “comissão de conciliação” sobre o Marco Temporal² – atualmente em vigor –, criada por Gilmar Mendes e que, na prática, favorece a participação de ruralistas e exclui povos indígenas dos processos de decisão, agora busca substituir o Marco Temporal por meio de uma minuta que legaliza mineração em Terras Indígenas, indenização de terra nua à fazendeiros, compra de terras para realocação de comunidades e utilização da Polícia Militar para despejar retomadas. Os povos indígenas, através da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), se retiraram da mesa de conciliação já em agosto de 2024, com uma resposta clara que também ecoa nas retomadas: não há como conciliar o inconciliável. 

O caso de Pakurity e das retomadas no Mato Grosso do Sul é exemplar neste sentido. Seu Bonifácio, uma das lideranças de Pakurity, chegou a ser preso no Reformatório Krenak durante a ditadura, por se recusar a sair de seu tekoha. A insistência em permanecer e resistir na terra persiste. Os efeitos do Marco Temporal e dos acordos feitos por cima, no entanto, podem ser sentidos na base por meio da atuação miliciana dos fazendeiros que, encorajados pela flexibilização das leis, se armam e criam estruturas de repressão alinhadas às forças de segurança pública para impor terror aos Guarani e Kaiowá. Suas redes com o Estado e operadores do direito comprova, ainda, que para além de reivindicações institucionais, com a ilusão do poder público como mediador, é preciso encarar os fatos: sem autodemarcação não há solução. De norte a sul do continente os indígenas fazem ecoar o grito zapatista da defesa do comum e não-propriedade³, e as retomadas seguem explicitando que o caminho insurgente é a senda da vitória. Ao sair da retomada, quando fomos produzir essa matéria, de repente as crianças voltam sorrindo por terem conseguido acessar o rio e pescar em abundância. A insurgência também mostra que a recuperação da terra nos faz esperançar, ainda que em meio as trincheiras, um novo modo de se relacionar com as coisas vivas.

Pessoas andando na terra

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Notas:

¹ Ver: http://abdadvocacia.com.br/
² Tese jurídico-política ruralista que define que os povos indígenas só teriam direito a terra se comprovassem ocupar ou disputar a terra na ocasião da promulgação da Constituição de 1988.
³ Ver: https://enlacezapatista.ezln.org.mx/2024/01/05/vigesima-e-ultima-parte-o-comum-e-a-nao-propriedade/

Yvyra’i

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