Artur Mattar e Silvia Adoue
7 de maio de 2025
Eu tô aqui
Eu não tô só
Eu tô de frente
pro açude Cocorobó
Eita, cidade submersa!
Tem muita reza,
estratégia, tem guerra e festa.
Estrela violeira
a noite inteira
cantou repente
Mergulhar em Canudos
é mergulho fundo
dentro da gente1

Entre 1893 e 1897 floresceu no sertão da Bahia uma forma de organização social que parecia intempestiva aos olhos da civilização importada da Europa para este continente. Quando a república brasileira estava em seu cerne e vinha substituir a monarquia, qualquer rejeição do novo regime era qualificada como monarquista. As referências dos sertanejos ao Rei Sebastião reforçavam tal mal-entendido. Não encontravam palavras novas para nomear o que tinham criado. O “Reino de Deus”, tal como era profetizado pelos anabaptistas da “Nova Jerusalém”2, ou o “Império do Divino Espírito Santo”, como apregoava Joaquim de Fiore3, eram referências de movimentos milenaristas que prosperaram na longa luta dos camponeses da Europa para dar uma saída à longa crise do feudalismo4, que indiretamente chegaram ao cristianismo camponês do Pe. Ibiapina, que formou não poucos beatos e conselheiros do nordeste brasileiro.
No atual momento histórico, em que as formas republicanas se derretem, vale a pena voltar ao olhar daqueles que as recusaram precocemente, no momento em que a jornada desenvolvimentista ainda era uma promessa. Quase cinquenta anos antes de Walter Benjamin alertar sobre a necessidade de puxar o freio de emergência do trem desgovernado do progresso5, os sertanejos de Canudos pisaram no freio da locomotiva. Voltar ao olhar dos canudenses, talvez, inspire a superar a neurose de apego a um regime que produziu sofrimento ao povo, ao longo dos últimos 136 anos, um regime que foi naturalizado, entendido como inevitável, tomado como melhor do que o que existia antes, como se as duas únicas formas possíveis de organização social fossem a monarquia e a república capitalista moderna. A rejeição à república era resistência às novas formas de espoliação, no chão cultural marcado pelo direito consuetudinário dos povos da terra e não pela defesa do Império brasileiro.
Nomear Canudos como um bando de fanáticos religiosos, monarquistas e conservadores é próprio de quem assume a herança iluminista do liberalismo europeu, oposta à herança do cristianismo popular dos camponeses de Europa que combateram o feudalismo e, ao mesmo tempo, a instalação do capitalismo. Porém, não é a única herança que os sertanejos de Canudos abraçaram. Além dos brancos pobres, a população de Belo Monte era composta por indígenas de variadíssimas formas de ver o mundo, expropriados de suas terras, e negros pós abolição, jogados à própria sorte. Gente vinda de muitos cantos, com modos de vida com suas especificidades, um conglomerado diverso que vagava pelo vale das sombras que era o final do século XIX.
No correr de quatro anos (1893-1897), o pequeno arraial se tornou a segunda maior cidade da Bahia, ao que parece chegou a vinte cinco mil habitantes e não acabou por uma implosão ocasionada pelo atrito entre os diferentes povos que lá confluíram, mas sim pelo terrorismo de Estado que edificou e mantém as repúblicas liberais latino-americanas. Eis a originalidade dessa sociedade que foi adquirindo forma junto às margens do rio Vaza Barris. Quando pensamos nos tempos atuais, nas lutas indígenas, quilombolas, caiçaras, camponesas, Canudos nos fala não necessariamente de unidade de todas as tradições, mas da possibilidade de uma aliança de todas essas gentes para uma sociabilidade outra, que não a fracassada da Velha ou Nova República.
A harmonia entre os povos que ali viviam chega a ser esquisita em um horizonte contemporâneo, onde os debates entre a fragmentação e a universalização de pautas dos oprimidos estão à ordem do dia e, muitas vezes, parecem um impasse para o futuro das lutas anticapitalistas. No entanto, se o passado pode ser um rastilho de pólvora para acender as centelhas de um outro presente6, cabe garimpar entre hipóteses sobre o que permitiu que grupos sociais com tantas particularidades construíssem uma comunidade.
A primeira hipótese, e mais óbvia e remanjada, talvez seja a liderança de Antônio Conselheiro. Ao que se sabe, o beato formou o arraial depois de pregar contra os impostos da república recém-instalada, o que provocou um levante popular que iria inaugurar uma empreitada rumo à terra prometida, onde ele se tornaria figura central na tomada de decisões. É bom, porém, não nos apressarmos a projetar vícios personalistas na abordagem dos acontecimentos históricos. Esse olhar esquece de apontar que o povo que habitava o nordeste brasileiro do fim do século XIX também formou o homem, e isso ocorreu tanto nas suas peregrinações pelo sertão, que antecederam 1893, quanto nos quatro anos de vida comunitária no arraial de Belo Monte. Uma via de mão dupla que costuma ocorrer quando vem à tona um verdadeiro líder popular.
Vale lembrar que resumir uma experiência coletiva ao contorno de sua liderança, além de empobrecer a visão geral da coisa, fazendo com que se fale pouco de pessoas que desempenharam diferentes tarefas fundamentais, tanto na vanguarda, quanto na retaguarda da luta, também bloqueia a inspiração de uma perspectiva mais horizontal. A esquerda latino-americana sabe, ou deveria saber, o quanto o personalismo não é atalho para qualquer projeto emancipatório.
Outra resposta possível é a revolta contra as imposições percebidas como abusivas do novo padrão de dominação que se constituiu ao longo do séc. XIX com a formação do Estado brasileiro. Com certeza, a base material comum é um fator que justifica essa unidade, uma base não só, mas também resultante da lei de terras, da formação de uma mão de obra “livre” assalariada, do golpe que proclamou a república e da constituição copiada do modelo estadunidense. Em outras palavras, a identidade dos grupos sociais que habitaram Belo Monte sintetiza as opressões históricas que edificaram o Estado (diz que) nacional. No entanto, as opressões vividas não podem ser consideradas os únicos motivos a provocar uma revolta, muito menos a formação de uma comunidade. Basta constatar que, se a relação entre opressão e revolta fosse tão causal e determinada, com o nível de precariedade dos dias atuais, a contemporaneidade estaria repleta de levantes populares. E, se a revolta está hoje latente, em caso de estourar, ela não geraria, por si mesma, uma sociabilidade comunal, como a que floresceu em Canudos.
Uma terceira e última hipótese, seria a construção de um modo de vida baseado nas práticas do comum e no bom senso coletivo. Isso foi muito bem retratado no depoimento do sobrevivente Honório Vila Nova, que dizia que quem tinha roça, tratava de roça, quem era de rezar, rezava, quem tinha gado, cuidava do gado, etc. Tudo era de todos e nada era de ninguém, e por isso todo mundo cuidava de tudo7. É possível identificar o resumo de uma experiência de organização da energia vital orientada por uma espécie de bom senso8, que até remonta à clássica frase em que Marx afirma que, em uma sociedade comunista, seria possível caçar pela manhã, pescar de tarde, pastorear mais de noite e fazer críticas depois da janta 9. Se é verdade a afirmação de Vila Nova, a harmonia entre os grupos sociais de Belo Monte pode ter a ver com a reprodução da vida em abundância. Porém, talvez, isso também não seja o suficiente. Não é possível esquecer da conexão dada pela mística, pela fé em Deus, como parte do cimento que estrutura o vínculo para que esse agrupamento resistisse às agruras que vivia, o que de certo modo instiga a uma analogia possível com os primeiros cristãos e a parusia10.
Sendo assim, a forma de produção, a base material e histórica e a fé, como um fator orientador de uma ética, podem juntas ajudar a responder o que permitiu que esses grupos vivessem harmoniosamente. Essa inquietação remonta à crônica de Machado de Assis, onde o autor se pergunta sobre o vínculo moral que existe entre o Conselheiro e sua gente. Na mesma carta, Machado também advoga em defesa de Belo Monte, iniciando a crônica com a frase: “Os direitos da imaginação e da poesia hão de sempre achar inimiga uma sociedade industrial e burguesa.” 11. Essa frase, de certo modo, já é suficiente para compreendermos que, por meio das referências que tinham em mãos, o povo de Belo Monte resistiu à inserção do novo padrão de dominação que se instalava no Brasil naquele momento.
A defesa de Machado de Assis ajuda a flagrar que o argumento utilizado por uma esquerda moldada por um racionalismo intransigente, que subestima a organização do povo de Canudos alegando fanatismo religioso, traz à tona o dirigismo e o alheamento sistêmico que parte da militância e acadêmicos brasileiros mantém em relação à base e a sua covardia em encarar as contradições presentes na classe trabalhadora. O povo pobre tem agência sobre a própria história, sente na pele as correntes que o prende, e encontra maneiras de reagir conforme ao que conhece, ao que tem acesso, a partir de quem verdadeiramente está perto, escutando, participando do cotidiano e estabelecendo vínculos de confiança. A maneira de resistir ao que sentem de opressão não vai seguir as cartilhas pré-determinadas, mesmo que, muitas vezes, realizam o que está escrito nas cartilhas. O povo de Canudos, por exemplo, realizou uma comuna sem nunca ter lido a Crítica ao programa de Gotha12.
Talvez, Belo Monte tenha sido um jeito que as gentes do Nordeste encontraram para resistirem ao que parecia ser (ou era) o fim de um mundo. Talvez, seja a maneira que encontraram de esperar a volta do cordeiro ensaiando formas de viver dignas do que imaginavam ser o paraíso ou, talvez, existisse o desejo de que a práxis se multiplicasse em outros braços, formando outras Belo Monte. Não se sabe ao certo, mas o que se sabe é que essa comunidade resistiu aos “quatro fogos”, às quatro expedições do exército brasileiro, e que antes e durante esses ataques construíram um modo de vida alternativo à religião do progresso e, consequentemente, à forma mercadoria.
As “repúblicas” da América Latina, que surgiram na segunda metade do século XIX, eram imitações precárias das europeias. Aquilo que Roberto Schwarz chamou “ideias fora de lugar”13. De fato, essas repúblicas não surgiram de um levante popular contra a monarquia, mas das elites que precisavam de uma modernização (por cima) para aproveitar as oportunidades de negócios de exportação que a segunda revolução industrial na Europa e nos Estados Unidos propiciava. Essa “modernização por cima”, segundo descrevia Florestan Fernandes14, é uma matriz que se repete em diferentes momentos da história brasileira, respondendo mais a demandas do polo externo da economia que a qualquer projeto de nação. Para atender as demandas externas, eram necessários portos, ferrovias, rios navegáveis, estradas… e, antes de mais nada, o controle do uso da terra e o disciplinamento da força de trabalho. Para essas duas últimas tarefas, a ferramenta era a formação de um exército profissional bem armado. Os “fogos” da república chegaram aos territórios ainda não integrados à produção para o mercado mundial capitalista. E continuam brilhando ao longo dos últimos 136 anos. O controle militar dos territórios e as armas voltadas para o “inimigo interno”, o próprio povo, são uma constante até hoje, quando a cenografia democrática se desmancha.
Quando a função acaba, os atores tiram a maquiagem e o figurino e vemos arder o cenário e as bambolinas da república, o fulgor pedagógico de Canudos acende nosso coração. Um fulgor pedagógico que abre espaço para um paralelo possível com as últimas palavras de E.P Thompson na introdução de Costumes em Comum, onde o autor justifica o porquê de olhar a resistência às imposições das elites sobre as comunidades inglesas do séc. XVIII:
“Como o capitalismo (ou seja, o “mercado”) recriou a natureza humana e as necessidades humanas, a economia política e seu antagonismo revolucionário passaram a supor que esse homem econômico fosse eterno. Vivemos o fim de um século em que essa ideia precisa ser posta em dúvida. Nunca retornaremos à natureza humana pré-capitalista; mas lembrar como eram seus códigos, expectativas e necessidades alternativas pode renovar nossa percepção da gama de possibilidades implícitas no ser humano. Isso não poderia nos preparar para uma época em que se dissolveram as necessidades e expectativas do capitalismo e do comunismo estatal, permitindo que a natureza humana fosse reconstruída sob uma nova forma? É possível que eu esteja querendo demais. Seria invocar a possibilidade da redescoberta, sob novas formas, de um novo tipo de “consciência costumeira”, quando mais uma vez as gerações sucessivas aprendessem umas com as outras; quando as satisfações materiais permanecessem estáveis (se distribuídas de modo mais igualitário), e só as satisfações culturais se ampliassem; quando as expectativas atingissem uma situação de equilíbrio permanente dos costumes”.15
Festejemos Canudos como essa possibilidade.

1 Canção composta por Jonathan Silva para o espetáculo Restinga de Canudos, da Cia do Tijolo (2025).
2 Nova Jerusalem: depois das guerras camponesas (1524-1525), experiência dos anabaptistas em Münster, na Vestfália (1532-1535).
3 Joaquim de Fiori (1135-1202): teólogo cistersense de Calábria, influiu franciscanos e capuchinos.
4 Ver: FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. Trad. Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2004.
5 Ver: BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. Trad. Adalberto Müller e Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Alameda, 2020.
6 Ver: BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. Trad. Adalberto Müller e Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Alameda, 2020.
7 Ver o artigo “Entre Euclidianos e Conselheiristas”, de João Batista da Silva Lima, in: BARROS, Joana, MARINHO, Caio, PIETRO, Gustavo. Sertão, Sertões. São Paulo :Elefante, 2019. p. 174
8 O depoimento de Honório Vilanova se transformou em uma canção de Jonathan Silva, para o espetáculo Restinga de Canudos, da Cia do Tijolo.
9 Ver: MARX, Karl, ENGELS, Friederich. A ideologia alemã. Trad.Rubens Enderle (Tradutor), Nélio Schneider (Tradutor), Luciano Cavini Martorano (Tradutor). São Paulo: Boitempo, 2007.
10 A parusia é a segunda volta de cristo. Os primeiros cristãos, peseguidos pelo governo em vigor, se apegavam as palavras de cristo, compreendendo que até a sua volta seria preciso o padecimento as agruras deste mundo e que este padecimento, inclusive, era sinal de que essa volta se aproximava.
11 Ver:SILVA, Ibiapina Dácia. A Guerra de Canudos nas crônicas de Machado de Assis e Olavo Bilac. p.7 http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/ca3a07aa256240e128285a0c658de7b9.PDF
12 Ver: https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/index.htm
13 Ver: SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Editora 34, 2012.
14 Ver: FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica . 4. ed. São Paulo: Globo, 2005.
15 THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. P. 23-24
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