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19 jun 2025

Teerã sob bombas: testemunho de uma companheira anarquista

Tradução por Quilombo Invisível1

Uma noite de fogo e confusão

Na noite de ontem, enquanto dormíamos, Israel atacou o Irã. Os bombardeios miraram Teerã, mas também outras cidades. Ouvi estrondos, vi clarões; pensei que fosse uma tempestade. Nada fazia prever uma guerra, especialmente considerando os diálogos em curso entre Irã e Estados Unidos.

Só ao amanhecer, por meio do nosso sindicato anarquista (Jebhe-ye Anâršisti, Frente Anarquista), soubemos o que realmente havia acontecido: ataques múltiplos, civis mortos. Saí às ruas para investigar. A cidade estava dividida em zonas. O exército e a polícia proibiam o acesso às áreas atingidas. Nos prédios ainda havia bombas não detonadas. No hospital, impediram minha entrada, e a polícia apagou todas as fotos que eu havia tirado no celular. Segundo um jornalista presente, ao menos sete crianças haviam sido assassinadas.

Alguns choravam. Outros, previsivelmente, celebravam a morte de figuras do regime.

Bombeiros e civis iranianos em área residencial de Teerã

O dia seguinte: o inferno sem alarme

Nas horas seguintes, vi cenas apocalípticas. O céu era rasgado por mísseis. O fogo caía sobre as estradas. As pessoas fugiam de Teerã: famílias inteiras, jovens operárias, idosos. Alguns esperavam ajuda nas calçadas. Feridos, carbonizados, dois mortos diante dos meus olhos. Não havia alarme. Não havia abrigo. Nada.

Os telões transmitiam a versão oficial: a República Islâmica atacou Tel-Aviv, Israel promete retaliação. Tenho companheiros lá. Anarquistas, pacifistas, objetores. Nós não queremos essa guerra.

Uma população lutando pela sobrevivência

O ar está contaminado: instalações nucleares foram afetadas. As pessoas fazem conservas, estocam, fogem das grandes cidades… e depois voltam, sem ter alternativas. As estradas estão congestionadas. Os meios estatais transmitem hinos e espalham mentiras. A única fonte confiável: o Telegram e canais via satélite.

As manifestações ainda são escassas. Polícia demais, medo demais. Ontem, em frente aos hospitais, as famílias buscavam seus desaparecidos. Gritavam. Choravam. Resistiam.

Pessoas tentam deixar Teerã

Sem refúgio, sem evacuação

As instituições continuam abertas, como se nada estivesse acontecendo. Não há orientações de segurança, nem sirenes, nem abrigos. Vazamentos químicos são prováveis, mas nenhum protocolo foi implementado.

Assim, as pessoas desertam por conta própria: os comércios fecham, estudantes recusam-se a fazer provas, funcionários se escondem. Apenas os serviços de emergência ainda funcionam. Às vezes tenho a sensação de ainda estar viva apenas porque Israel (ainda) não atingiu as zonas residenciais. Mas os incêndios, as chuvas de destroços, as balas perdidas matam mesmo assim.

E não há ajuda. Nada. Zero auxílio humanitário, zero organização internacional, zero medicamentos; e as sanções internacionais já matam há muitos anos.

Quatro Irãs, uma só terra sob bombas

É preciso entender que o povo iraniano está fragmentado:

  1. Uma maioria silenciosa, que odeia o regime, mas rejeita a guerra. Elas e eles sobrevivem, fogem, choram seus mortos amaldiçoando os governantes.
  2. Os islamistas, fiéis ao poder, que falam em martírio e vingança.
  3. Os monarquistas e liberais, muitas vezes pró-Israel, que aplaudem os bombardeios contra os Guardas da Revolução.
  4. As anarquistas e militantes de esquerda, como nós: contra a República Islâmica, mas também contra Israel, contra todos os Estados. Pela sobrevivência, pelo apoio mútuo, pela autonomia.

Qual o lugar dos anarquistas nesta guerra?

Não estamos armadas. Não participamos dos combates. Nossa tarefa é outra: informar, socorrer, criar laços, atrapalhar a propaganda. Ajudamos como podemos: primeiros socorros, transmissão de informações, conscientização sobre riscos químicos. Cuidamos das nossas e de quem não tem ninguém.

Rejeitamos os discursos simplistas. Nem “os israelenses devem morrer”, nem “os sionistas são nossa salvação”. Estamos entre dois fogos inimigos: de um lado o fundamentalismo religioso, de outro o militarismo sionista.

Nosso papel é fazer pontes. Ser contrabandistas de ideias. Abrir frestas no fatalismo. Permanecer firmes, mesmo sem armas, mesmo com medo.

O luto do movimento antiguerra

Preciso confessar: estou triste. Profundamente. Dez anos atrás, trocava cartas com pacifistas israelenses. Refuseniks. Curdos, árabes, armênias, anarquistas. Sonhávamos juntas com um Oriente Médio livre, sem exército, sem Estado.

Mas perdemos. Não fomos fortes o bastante para impedir a guerra. Não fomos suficientemente apoiadas. Hoje, as pessoas têm medo de falar em paz. Acham que seria traição. Exigir o fim dos bombardeios seria se render ao inimigo.

E, no entanto, todo mundo quer a paz. Mas ninguém ousa exigi-la.

Teerã após bombardeio de Israel

Uma voz no tumulto

Não sei por quanto tempo aguentaremos. Ontem à noite, os aviões rugiam de novo, como uma rodovia no céu. Mas sei uma coisa: enquanto houver gente para cuidar, resistir, se organizar sem esperar pelo Estado, enquanto isso existir, haverá sementes de anarquia, mesmo nos escombros.

Conclusão: não normalizemos o insuportável

Agradeço, antes de tudo, a todes es companheires que tiraram tempo para nos escutar. Num mundo em que somos constantemente esmagadas pelas forças políticas, econômicas e policiais, um espaço para falar é algo raro. Mesmo sem bombas, a violência nos cerca; assume a forma de aluguéis impagáveis, documentos inacessíveis, discriminações, exaustão, isolamento. Uma violência muda, apresentada como “normal” e à qual não deveríamos nos acostumar.

Mas quando a guerra estoura, essa violência se rasga à luz do dia. O que era tolerado torna-se insuportável. E então, paradoxalmente, podemos falar. Pude escrever para vocês porque tudo ruiu. Porque, no caos, as verdades mais simples voltam a ser audíveis.

O que quero dizer é isso: não deixem que estas palavras voltem ao silêncio. Não deixem que nossa dor — aqui no Irã, como em outros lugares — fique confinada às margens, como se fosse apenas “local”, “específica”, “cultural” ou “excepcional”.

Porque compartilhamos a mesma guerra: a que os Estados travam contra nossas vidas. Por isso, companheires, lhes imploro: não aceitem a violência do cotidiano como algo natural. Rejeitem a ideia de esperar os mísseis para reagir. Não esperem que nosso sofrimento vire espetáculo para merecer sua atenção.

Falemos desde já. Organizemo-nos. Criemos espaços reais de ação e apoio mútuo. Para que a guerra aqui não vire ruído de fundo. Para que vocês não sejam reduzidas a meras “salvadoras” do nosso sofrimento, mas cúmplices na luta.

Chamado à solidariedade internacional

A situação hoje é instável, crítica — talvez o prenúncio de um desastre humanitário. Se o Irã for isolado do mundo — pelas bombas ou pela censura da República Islâmica — façam circular nossas palavras. Contem o que está acontecendo. Deem voz a quem foi privado de toda voz.

Não contamos com nenhuma proteção internacional. As ONGs estão quase ausentes. As sanções internacionais agravam ainda mais nosso sofrimento.

Se tiverem contatos, recursos, redes com coletivos, sindicatos, agrupações ou redes de cuidado: mobilizem-nos. Façam um chamado por ajuda médica urgente, por vigilância reforçada às violações, por uma mediação internacional que fuja das lógicas estatais.

Mas, sobretudo, rejeitem os relatos simplistas. Não somos peões de Israel, nem do regime islâmico. Não acreditamos em bombas “libertadoras” nem nos mulás da “resistência”.

Estamos entre duas máquinas de morte; e tentamos, uma e outra vez, construir algo diferente.

Ainda não há um êxodo massivo. Mas, se a guerra se prolongar, as consequências serão terríveis.

Então, companheiras, levantemo-nos juntas. Não para apoiar um lado contra o outro, mas para fazer ecoar uma outra voz: a da vida, da liberdade, da solidariedade — contra todos os Estados, todas as fronteiras, todas as guerras.

  1. Tradução do francês e do espanhol: 1) https://www.leperepeinard.com/articles/teheran-sous-les-bombes-temoignage-dune-camarade-anarchiste/ ; 2) https://drive.google.com/file/d/1_MtR7CRaAqWcKt52cjm31317u5dXkBuO/view ↩︎

5 Comentários

  • Adriano Gomes disse:

    Nem governos nem patrões, queremos um mundo livre e diversos, sem explicação contra as pessoas e tb contra a natureza
    Sou anarquista e estou a disposição pra construir uma força aqui no local onde moro contra as maldades do capitalismo, sobretudo, na figura dos EUA e Israel
    Força aos povos irmãos do oriente médio

  • Erika Marcela Sánchez Zaza disse:

    Moro no Brasil e estou acompanhando todas as notícias na real sinto muita impotencia pela situação que vivem os povos

  • VANIA DE AZEVEDO LAGE disse:

    Força! Coragem! Aqui do Brasil em São Paulo, muitos estão com vcs! ✊️❤️

  • Atila Sarue disse:

    Morte ao imperialismo …

  • Daniel Lucavis disse:

    Especialmente o Estado armado é violentador, nesse sentido o diálogo deve ser o meio que une e não a guerra, seja por meio de armas ou do custo de vida. Um relato poderoso.

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