O texto a seguir contém spoilers sobre os filmes citados
Três grandes produções cinematográficas de grande repercussão foram lançadas em 2019 e tem como tema central o acirramento dos conflitos sociais. São elas: Coringa, Parasita e Bacurau. A esquerda encarou com otimismo o lançamento desses filmes, elogiando as fortes críticas sociais presentes neles. Muitos os descreveram com empolgação, como se eles quisessem apontar algum rumo progressista, ou até intenções revolucionárias implícitas.
Discordamos dessas visões mais empolgadas, pois o caráter crítico desses filmes não chega a torná-los produções engajadas, que visem provocar mudanças reais. Discutiremos brevemente a forma como, nos três filmes, a possibilidade da transformação social na sociedade contemporânea é neutralizada.
A revolta dentro da ordem dos frustrados, Coringa
Dentre os três filmes analisados, pode-se dizer que Coringa é o que possui o final mais aberto para a possibilidade de um cenário revolucionário. No entanto, sendo um filme da DC que se passa no universo do Batman, o Coringa está condenado, antes mesmo de surgir, a ser o vilão e, portanto, fracassar. O filme mostra o Coringa como um trabalhador precarizado e extremamente adoecido cuja revolta é alimentada por diversas situações, tanto relacionadas à precariedade da sua vida quanto a agressões físicas e psicológicas sofridas cotidianamente.
O elemento mais progressista do filme se dá pela reivindicação por reconhecimento ao adoecimento mental que ele encampa, trazendo cenas tocantes e reflexões pertinentes, como quando diz “que o maior problema de ter uma doença mental é que as pessoas querem que você se comporte como se não tivesse”. Essa é uma reivindicação forte no mundo atual, onde o adoecimento mental é cada vez mais generalizado, se tornando uma das principais causas de sofrimento social e de incapacitação para o trabalho nas diferentes profissões.
O adoecimento mental é uma das principais consequências do trabalho precário, e uma luta central hoje é para que esse tipo de adoecimento seja reconhecido como tal. Frequentemente, ainda é tratado como “frescura” e “preguiça”, desconsiderado como mero fingimento por não ter uma determinação física explícita.
Porém, se no início do filme o adoecimento do Coringa aparece associado ao sofrimento gerado pelo trabalho e a precariedade das condições de vida – portanto dentro de uma chave de crítica social – logo o desdobrar do enredo muda esse enfoque e faz o filme defender a reacionária tese de que o adoecimento mental é fruto genético, herdado do suposto adoecimento mental de sua mãe, e que portanto não seria causado pelos males da sociedade mas seria um problema exclusivo da formação do indivíduo. Pior, ao relacionar a liberação da revolta com o surgimento da figura do Coringa, que se volta contra a sociedade no momento em que decide parar de tomar os seus remédios e deixar fluir os surtos causados pelo seu adoecimento, o filme acaba patologizando a revolta. É como se a causa da revolta fosse meramente uma questão clínica, que ocorre quando os de baixo não estão dopados o suficiente.
Apesar disso, o filme chega a tratar da contradição social, ao apontar a precariedade da vida e parte da revolta violenta contra os ricos, que se manifesta até na própria origem do conflito entre Batman e Coringa: um conflito entre capital e trabalho.
No filme, as vidas de Coringa e Batman são conectadas diretamente pela relação de trabalho entre as duas famílias: a mãe de Coringa havia trabalhado como empregada doméstica na casa da família burguesa de Batman. No decorrer do filme, se dá a entender que o Coringa seria meio irmão de Batman, fruto de uma relação entre o patrão e a empregada doméstica. Infelizmente, apesar de ser extremamente frequente e difundido abertamente o assédio sexual de empregadas domésticas pelos seus patrões, o filme cai na narrativa mais misógina possível, alegando que a mulher é louca e, portanto, tudo o que ela diz é mentira. Nesse momento, a falta de consciência de classe de Coringa o leva a cometer o erro (típico) de direcionar seu ódio pelo sistema e as classes dominantes às mulheres.
Aí se mostra a novidade da construção do vilão, destoando de versões anteriores que o apresentavam como um gangster viril e poderoso, esse novo Coringa é apresentado como uma figura frágil, reprimida, frustrada social e sexualmente. Dialogando muito com a cultura misógina e agressiva das seitas virtuais dos auto denominados celibatários involuntários (mais conhecidos como incels) que tem ganhado fama global por seu envolvimento com atentados a tiros, sobretudo em escolas. Esse novo Coringa incel, acaba sendo o líder patético e sem causa de uma revolta de pura liberação da frustração social. Para além de matar burgueses, mata as mulheres que não correspondem às suas expectativas, assim como colegas de trabalho com os quais não mantinha boas relações, o motor de sua revolta acaba sendo, assim, cego e direcionado exclusivamente pela frustração.
Sabemos que a frustração, assim como a misoginia, são sentimentos basilares para manutenção da ordem. A revolta dos frustrados que aparece em Coringa, apesar de se desdobrar numa grande revolta popular, se pretende despolitizada e não aponta para qualquer perspectiva de superação da sociedade atual. Nesse sentido, ela é apenas uma revolta dentro da ordem, impulsionada por sujeitos que se vêem como doentes e bandidos extravasando seus ressentimentos sociais. O campo desse tipo de revolta cega na realidade concreta é onde se constrói a extrema-direita, sendo assim, a visão de mudança social que aparece em Coringa é apenas superficial, pessimista e da eterna repetição de ilusões fascistas.
O Parasita, a toupeira da história presa num bunker
O Parasita, dentre os três, é o filme que retrata de forma mais realista e coerente as contradições sociais nas grandes cidades hoje. Ao mesmo tempo ele é o que retrata com maior pessimismo a possibilidade de superar essa sociedade. Os imensos abismos sociais presentes no filme trazem, inclusive, uma identificação bem brasileira, onde os personagens principais são os Kim, que vivem uma vida de instabilidade, sem a garantia do pão de cada dia, morando numa habitação insalubre num porão e passando por diversos empregos precários.
Nesse cenário, Ki-taek, o filho, tem a oportunidade de estabelecer uma relação de amizade com um jovem rico que lhe consegue um emprego de professor particular de inglês na casa da família Park. Essa família burguesa vive numa mansão projetada por um famoso arquiteto, num cotidiano de abundância e luxo ostensivo. Esse emprego então é aproveitado como única oportunidade para a melhoria das condições de vida de toda família Kim.
Se desenrolam então as cenas em que a família Kim conspira e se organiza para conseguir se apossar dos diferentes empregos domésticos na casa dos Park. Com engenhosas tramoias, manipulações e impressionante união para ação conjunta os Kim conseguem demitir todos os demais funcionários fazendo com que os quatro membros da família ocupem diversos empregos na casa. Ocorre que, após demitir a antiga governanta, eles descobrem que ela mantinha o marido morando num bunker secreto que existe no subsolo da mansão.
A reviravolta da cena em que se descobre o bunker coloca talvez o principal dilema social das lutas hoje, que é a questão da própria união dos de baixo. Em quase todo o filme a hostilidade e o conflito direto se estabelece entre os trabalhadores. Imersos numa intensa competitividade pelo pão de cada dia, eles se jogam inteiramente num conflito mortal, sem cogitar uma possibilidade de união que permitiria que todos vivessem bem.
Um aspecto fundamental é a profunda dominação ideológica que os personagens sofrem. Frequentemente, estão sonhando com a possibilidade de ascensão social, em diversos momentos expressando uma intensa admiração pelo mundo dos burgueses, chegando a ponto dessa admiração marcar um grave adoecimento mental do marido da governanta que vive no bunker realizando cotidianamente rituais de reverência a família burguesa e, em especial, ao seu patriarca, o sr. Park.
O filme segue uma trajetória vertiginosa de reviravoltas, que resulta no assassinato da filha da família Kim, da antiga governanta e de seu marido, seguidos do assassinato do Sr Park pelo pai da família Kim. Esse é o único momento do filme em que se expressa a revolta contra o abismo social tão barbaramente apresentado. O patriarca Kim então se esconde no bunker da mansão para evitar ser capturado pela polícia. Do porão ele consegue transmitir uma carta em código morse para o seu filho fora da casa. O filme se encerra então com o filho sonhando com o dia que irá conseguir superar sua condição de trabalhador, enriquecer, virando um burguês que pode comprar a mansão para libertar seu pai.
Parasita é um filme que mostra a imensa engenhosidade e força que os trabalhadores precisam ter para sobreviver ao dia-a-dia de competição entre si nas condições de extrema desigualdade do mundo capitalista. A barreira colocada no fim é justamente essa competição, que impede que eles sequer vislumbrem a possibilidade de construir outra forma de vida. O fato do trabalhador que ousou se revoltar ficar preso num bunker não deixa de ser uma mensagem extremamente clara sobre qual seria a situação dos que se revoltam hoje. Confinados em seu isolamento e sem capacidade sequer de vislumbrar uma saída para sua situação.
Bacurau, o genocídio como esporte nas colônias e a auto organização isolada
Bacurau destoa dos outros dois filmes por narrar um ambiente de uma cidade pequena, isolada, não metropolitano, que apesar do suposto futurismo do filme e do contato com produtos modernos (como aparelhos celulares e drones), vive em um ambiente de precariedade.
O povo da pequena cidade de Pernambuco vive imerso em um mundo distópico no qual a violência existe como entretenimento, onde execuções em estádios aparecem exibidas na tv em rede nacional e vídeos de YouTube de “melhores assassinatos” são populares. O próprio tema central do filme é um novo desdobramento do turismo predatório: o “turismo genocida”. Essa modalidade de “entretenimento” misturaria duas realidades muito comuns não apenas no Brasil, mas em muitos países colonizados: o turismo sexual e o genocídio de populações pobres e racializadas. No filme, a trama se desdobra a partir de um grupo de excursão de gringos que pretendem matar por diversão os moradores de Bacurau.
O processo de racialização e desumanização é exposto de forma brilhante no diálogo que precede o assassinato de “João” e “Maria”, dois brasileiros do sul do país que trabalham para os “turistas” gringos. Nele, eles descobrem que, ao contrário do que imaginavam, são tão racializados quanto o povo de Bacurau. Essa cena mostra uma grande diferença na ideologia da supremacia racial no Brasil, que é baseada fundamentalmente na miscigenação e na cor da pele, enquanto na Europa e EUA, há também um forte componente de xenofobia (tratamos desse tema tambem aqui ).
Outro momento marcante do processo de desumanização é o diálogo após um dos turistas matar uma criança, no qual ele se justifica dizendo que o menino parecia armado (com uma lanterna), devia ter uns 18 anos de idade e era um criminoso – o argumento padrão dos policiais quando matam crianças nas favelas e periferias. Nessa cena também é revelado que os dois gringos envolvidos são trabalhadores: RH de um supermercado e agente penitenciário. Isso adiciona mais uma camada para o debate, a questão da participação ativa de trabalhadores dos países centrais na exploração dos periféricos.
É importante lembrar que o Brasil, antes de ser uma “nação independente”, era uma colônia onde, pela descrição dos historiadores, qualquer europeu, mesmo de origem modesta ou degradado, era considerado um “homem gentil” e podia se dar ares de fidalguia. O assassinato e escravização de negros e nativos indígenas era uma prática comum, de forma tal que situações como as descritas no filme, de extermínio recreativo de uma cidade de nativos por Europeus, aparecem em relatos nos últimos séculos.
O dramático é que o filme chega a ser verossímil, pois não só uma excursão desse tipo de turismo é imaginável hoje, como é de fato algo perfeitamente possível de ser feito a um custo não tão elevado para os padrões de gastos dos trabalhadores melhor remunerados de países como os EUA e a Alemanha, que são as origens dos gringos do filme. Qualquer um que conheça as estatísticas de morte violenta e desaparecimentos no Brasil sabe que a vida por aqui ainda vale muito pouco, menos ainda nas áreas isoladas do país.
A reviravolta do filme se dá pela impressionante resistência dos moradores que conseguem impedir o ataque da excursão de gringos. Nada é contado sobre a formação da auto organização da pequena cidade, só é possível imaginar pelos vestígios de lutas passadas, como os carros de polícia abandonados, as histórias da luta pela água ou o referido museu da cidade. O filme deixa claro que, para sobreviver a esse meio, Bacurau se tornou uma cidade extremamente organizada, com vigias, esconderijos secretos, atiradores e um povo extremamente resiliente que consegue superar suas divisões internas e manter a sanidade.
A alta coesão da cidade parece associada com uma desconfiança aos elementos externos, como o prefeito da região que é rejeitado, apesar da dependendência dos mantimentos trazidos por ele. O tema da saúde mental também aparece nesse filme, tanto na referência a um remédio psiquiátrico viciante que causaria degradação a quem o utilizasse, quanto no uso constante de um poderosa droga psicodélica, que parece ser no filme a explicação para os moradores manterem a sanidade enfrentando forte tensão.
Em Bacurau, as barreiras para união dos de baixo parecem localmente superadas em algum momento anterior e o que se coloca é que, mesmo que a classe oprimida consiga se organizar e se unir localmente, ela está imersa em um mundo tão brutal, sem nenhuma correlação de forças e tão isolada que seu futuro inevitável é o fim. A catarse da derrota dos opressores em Bacurau é uma catarse temporária, sem nenhum otimismo, incapaz de mudar o destino dado desde o começo do filme. Os moradores da cidade podem conseguir reagir rapidamente à ameaças externas, mas a cada ataque sofrido, a sua população diminui consideravelmente, seu acesso a água é limitado e controlado e eles dependem de doações de remédios e alimentos para sobreviver. Bacurau é uma cidade condenada que, ao fim do filme, volta a seu ponto original, só que dessa vez, com 16 caixões ao invés de um.
O filme acaba com uma vitória com gosto de derrota futura, no inevitável novo ataque que virá de represália pela resistência dos moradores de Bacurau. Nisso, o filme embarca no mesmo pessimismo, de que as periferias do sistema estariam presas em repetições eternas de seu destino colonial, com sua exploração violenta, e suas formas de resistência, como os quilombos, auto organizados e capazes de alguma resistência armada, mas sem conseguir fazer frente à totalidade do sistema de que fogem.

Conclusão: Os limites do cinema burguês
Os três filmes mostram alguns dos dilemas em que a classe trabalhadora se encontra presa, repetidamente sendo pega nas mesmas ciladas e arapucas. Eles transparecem a poderosa barreira ideológica que não nos permite sequer pensar em outro modo de viver a vida, se tornando a expressão de uma revolta sem futuro possível.
Os três filmes envolveram, no seu processo de fabricação, a exploração do trabalho de milhões de pessoas, feitos para gerar lucros privados para alguns poucos capitalistas, e nisso todos os três tiveram imenso sucesso. Com bilheterias de US$ 3,3 milhões para Bacurau, US$ 167 milhões (e Oscar de melhor filme) para Parasita e US$ 1,072 bilhão para Coringa, fica evidente que esses filmes alcançaram muito mais mercados do que o do nicho “militantes de esquerda” que os adotou com tanta alegria.
Eles chamam atenção por conseguir capitalizar lucros bilionários com o atual sentimento de revolta, o que revela bastante sobre a potência e alcance desse sentimento, mas também sobre como é possível tocá-lo ainda mantendo-o dentro dos estreitos limites da ordem.
Ao mesmo tempo em que esses três filmes tratam do momento da passagem da passividade dos explorados para a perda do medo de se revoltar e do assassinato violento de membros da elite dominante, analisamos eles como visões burguesas fetichizadas da luta de classes. Entendemos que eles não se propõem revolucionários, pelo contrário, partem do pressuposto de que, apesar de toda a nossa revolta, estamos presos em repetições eternas que, por diferentes razões, nunca levam a superação do sistema capitalista. Realizar essa análise levando em conta o contexto em torno da produção nos ajuda a entender que, apesar de serem filmes que representam a realidade das classes oprimidas especialmente bem, eles são ficções construídas a partir do olhar da classe dominante e, portanto, com limites políticos e estéticos muito estreitos.
O debate público que esses filmes geraram foi muito importante. A arte e a elaboração criativa são ferramentas potentes para imaginar a sociedade em que queremos viver, por isso é fundamental que os debaixo consigam criar formas de expressão que nos permita pensar para além dos limites estreitos apresentados pelo entretenimento burguês.
Por Gabriel Silva e Heloisa Yoshioka, artistas independentes em busca de uma arte não burguesa e militantes do Quilombo Invisível.
2 Comentários
CENA DE “OS SONHADORES” (BERTOLUCCI)
*Não encontrei o roteiro, então escrevo de memória a essência do diálogo entre o americano e o francês
– A Revolução está sendo feita por Mao com livros. Homens com livros nas mãos, não armas.
– Sim… o problema é que só é UM LIVRO. Isso é o que me assusta!
Muito boa a análise. Todos os três filmes me deixaram com aquela sensação de que eu estava deixando passar algo. Alguma coisa ali que não se encaixava na crítica altamente positiva que foi tão difundida entre as pessoas de esquerda. Quando as conversas começavam eu ficava com aquela vontade de discordar do que tava sendo falado, mas me calava sem saber dar voz exatamente ao que eu estava sentindo. Esse texto foi um alento. Acho que agora consigo refletir um pouco melhor e, quem sabe, numa próxima oportunidade colocar essas questões nas rodas de conversa.
Eu gostaria de ler ainda um pouco mais sobre o fato de Parasita ter sido vencedor do Oscar num momento onde a “Academia” busca reparar sua auto imagem depois das situações polêmicas dos anos anteriores.
Obrigado pelo conteúdo! Arrasaram!