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24 jul 2023

O marxismo do Capital e o anarquismo de Estado.

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer. 

Teses sobre o conceito de história, Walter Benjamin, 1940.

A presente reflexão parte do questionamento sobre quais critérios usar para estabelecer uma política de alianças com outros grupos e indivíduos, em um contexto em que as grandes tradições atreladas ao que pode ser chamado de extrema esquerda funcionam sobretudo como instrumentos das classes dominantes. 

Assim, as duas tradições de pensamento radical mais conhecidas do nosso tempo, mesmo que fundamentais para nossa formação, se encontram em um momento histórico em que seus principais representantes estão convertidos na posição de seus antagonistas, transformadas em seu contrário. Temos assim um marxismo operacionalizado como carreira burguesa e um anarquismo com a ação voltada para o fortalecimento do Estado. Entendemos que qualquer esperança que possa ser hoje encontrada nessas tradições precisa ter como ponto de partida a percepção do perigo que esta situação coloca para as lutas dos de baixo.

O marxismo burguês

O marxismo no Brasil atual se converteu numa bem estabelecida linha de organização burguesa ou pequeno burguesa. Isto pode ser constatado tanto pelos principais quadros públicos reconhecidos como expoentes dessa tradição serem eles mesmos burgueses, ou quando de menor sucesso, burocratas. Como pela prática de governo que estes quadros realizam. Esta situação é vista nas universidades, em que a tradição marxista é bem acolhida e inserida nas principais linhas de financiamento à pesquisa, com estruturada articulação internacional e conservadora em sua relação com a luta de classes. Mas também pode ser vista nos sindicatos e movimentos sociais, na conversão de sindicalistas e militantes de movimentos sociais em gestores de fundos previdenciários, posteriormente em fundos de investimentos privados, gestores públicos de Estado, ou convertidos também em diretores de organizações não governamentais ou assumindo diretamente o papel de gestores ou proprietários de empresas privadas. Este tipo de transformismo é muito característico do período da nova república no Brasil, em que determinados setores que foram antes perseguidos pela ditadura voltam ou conseguem se tornar parte das classes dominantes e da gestão do Estado.

Exemplos concretos neste sentido podem ser facilmente identificados olhando para os principais e maiores sindicatos associados à CUT, por exemplo, os sindicatos dos metalúrgicos do ABC, Sindicato dos bancários de São Paulo, os Sindicatos dos Petroleiros, entre outros. Situação que também pode ser observada nos grandes movimentos sociais que são hoje eleitoralmente atrelados ao PT, como o Movimento Sem Terra e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. Aqui não faço nenhuma defesa de outras correntes sindicais não cutistas, pois estas em sua maioria seguem o modelo da CUT, com exceção das que estão à sua direita sendo estas patronais de outras maneiras.

Para sair da abstração e dar alguns nomes representantes do que chamo de marxismo do Capital, podemos citar o do ex-sindicalista bancário Sérgio Rosa, foi gestor da Previ,  fundo de previdência dos funcionários do Banco do Brasil, entre  2003 e 2010. Sua gestão é aclamada pela burguesia pelo feito de ter praticamente quadruplicado os ativos do fundo, que saltaram de R$ 43 bilhões para R$ 153 bilhões durante sua gestão, indo posteriormente trabalhar em negócios próprios. A prática de Rosa faz escola no sindicalismo brasileiro, em grande medida hoje transformado em co-gestores ou pretendentes a gestores do capital. 

Podemos citar o atual deputado federal Guilherme Boulos, aclamado como grande renovação da liderança de esquerda por boa parte da esquerda marxista, o líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto é conhecido por fazer cosplay de pobre ao exibir no horário eleitoral o seu celtinha, mesmo tendo sido criado em um apartamento de cobertura em Perdizes, bairro nobre da capital paulista, sendo filho de um famoso médico e empresário, se tornou a liderança personalista do autodenominado maior movimento urbano por moradia brasileiro, gerindo de forma centralizada o movimento como se fosse uma disruptiva empresa privada de sua propriedade.

Outro caso é do professor de filosofia da USP, Vladimir Safatle, nome que também disputa o papel de renovação da liderança da esquerda, tem o mérito de auto ironizar sua condição em seu filme #eagoraoque (2020) como intelectual burguês, deslocado da classe pela qual supostamente luta, no filme Safatle é constantemente servido por funcionários e empregadas enquanto se questiona sobre como intervir na realidade política nacional ou se queixa com amigos burgueses. A sua caricatura parece paradigmática do que haveria de mais radical no marxismo acadêmico.

Outro nome, talvez o mais característico, é o do atual ministro da fazenda Fernando Haddad, doutor em filosofia pela USP com uma tese sobre Marx orientada por Paulo Arantes. Haddad segue se auto definindo como socialista, sua gestão ministerial tem sido generalizadamente aprovada pela burguesia nacional, todos os expoentes da burguesia passaram as últimas semanas elogiando a aprovação da reforma tributária atribuída à  boa articulação política de Haddad com as lideranças de extrema direita, como o governador de São Paulo, Tarcisio Freitas. Obviamente muitos marxistas criticam o atual ministro da economia marxista como sendo apenas mais um liberal que nada teria em comum hoje com a tradição marxista, um equívoco semelhante daqueles que insistem em querer desvincular as práticas das grandes igrejas cristãs do que seria um verdadeiro cristiniasmo perfeito.

Outro setor do marxismo que chama atenção por suas posições alinhadas à extrema direita é o PCO, partido trotskista liderado por Rui Costa Pimenta, que ataca os movimentos feministas e negros como grandes inimigos da esquerda e defende Lula como a única esperança. Outro a adotar postura semelhante é o João Bernardo, que como o PCO adota uma atitude negacionista climática e teve um papel reacionário em relação à pandemia, se diferenciou do PCO por não ser diretamente negacionista  no caso da vacina, mas se assemelhou à direita ao defender um combate à pandemia estritamente individualista, pregando a “autodisciplina”. João Bernardo é o expoente mais conhecido do site passa palavra, que acolhe certo campo de militantes marxistas que flertam com ideias libertárias e conselhistas. Após 2015 este campo tem uma virada conservadora, iniciam uma cruzada anti-identitária contra os setores mais combativos do movimento negro e feminista, ressentidos com a reação feminista a casos de violência de gênero e estrupros, o medo ao escracho passa a ser o sentimento central a guiar decisões deste campo. A consequência prática disso foi a priorização de lutas corporativas e de alianças com grupos que adotam formas organizativas mais verticais. No passa palavra é possível encontrar a defesa paranoica de que o avanço dos tais “movimentos identitários” (nunca nomeados por eles) nos nossos tempos é financiada pela CIA para destruir a esquerda classista global. Também pode-se ler reclamações meritocráticas sobre como as cotas raciais ou indígenas estariam criando uma elite identitária ao destruir as oportunidades para os intelectuais supostamente mais competentes. É risível que neste mesmo passa palavra é possível encontrar assinando artigos, não de forma aleatória, mas entre os mais notáveis militantes deste campo, mais de meia dúzia de nomes de herdeiros de conhecidas famílias burguesas que sustentam seus meninos radicais com os frutos da exploração capitalista do trabalho.

Este atual estado de coisas descrito acima faz do campo marxista um terreno minado e especialmente perigoso para aqueles de baixo interessados em fazer a revolução ou em qualquer transformação social efetiva. O marxismo em suas principais e mais expressivas matizes se encontra identificado, quando não diretamente dirigido, pelas classes dominantes, desta forma, é hoje corretamente visto como uma força política e ideológica conservadora, defensora das instituições, zelosa pela manutenção das relações de exploração do trabalho e opressão de setores dominados, pois a exploração e dominação beneficia seus líderes, que adotam invariavelmente posições reacionárias nos momentos decisivos da luta de classes, como comprovado em todos os principais momentos de ascenso de lutas nas últimas décadas. Sendo hoje sobretudo uma força repressora das lutas, uma força que busca cooptar e controlar as lutas para usa-las como moeda de troca na obtenção de benefícios em barganhas internas às classes dominantes.

Mas e entre os anarquistas o que encontramos hoje? 

O anarquismo de Estado.

O campo ideológico anarquista hoje parece ter alguns inegáveis méritos em relação ao marxismo, não encontramos facilmente um número notável de auto declarados anarquistas em altos cargos da burocracia de Estado ou entre proprietários capitalistas como vemos entre os marxistas. O anarquismo também conta com pouco espaço entre a burocracia universitária, não possuindo tantas trilhas carreiristas bem consolidadas como o marxismo. Estas impressões fizeram com que ao progressivamente nos afastarmos de alianças com grupos autodenominados marxistas, tenhamos se aproximado cada vez mais de grupos ditos anarquistas.

Logo nos deparamos com dilemas semelhantes, como a liderança personalista de uma série de grupos em patriarcas brancos oriundos da pequena burguesia. Algumas organizações anarquistas parecem exatamente idênticas a mini partidos marxistas-leninistas, apenas mudando o panteão, substituindo o culto à figura de Lenin por Bakunin, com menos louvor a revolução russa e mais a revolução espanhola.

Ainda assim, a denominação anarquista ao repelir do nosso entorno a militância da esquerda tradicional focada nas instituições, traz um frescor reconfortante. Porém, a falta de consistência de boa parte dos grupos que se mantiveram ativos ou se geraram nesse campo ideológico nos últimos anos tem feito com que a via anarquista frequentemente tenha resultado apenas em uma subordinação indireta às mesmas grandes organizações marxistas de que procuramos nos afastar. Assim, assistimos nos últimos anos a uma miríade de pequenos coletivos anarquistas que acabaram se dissolvendo dentro das grandes organizações marxistas ou despendendo o principal de sua energia na atuação e “disputa” dentro dessas organizações. 

Mesmo algumas importantes iniciativas de construções coletivas com mais autonomia, que nós nos envolvemos nos últimos anos, caíram nessa mesma situação hoje, sendo o período das eleições e a posterior distribuição de cargos a quadros com relação com estes movimentos sociais marca de um divisor de águas, que gerou grande reconfiguração de forças dentro de vários coletivos, frentes, redes ou teias que contam com expressiva quantidade de militantes auto denominados anarquistas entre os seus quadros. Esta situação fez com que tenhamos decidido nos afastar de muitos desses espaços e de seus quadros anarquistas, que corroboram uma situação de ausência de capacidade de autonomia de ação política em relação ao governo, que dirige na prática sua militância.

Desde a pandemia, a bandeira antifacista foi levantada frequentemente por auto denominados anarquistas que formaram grupos que se envolveram em expressivas mobilizações de juventude, com uma presença nas mobilizações contra a violência policial racista. Estes grupos foram rapidamente sugados pela lógica da disputa institucional e da agenda eleitoral, tendo a maioria destes grupos já se dissolvido ou se integrado.

As mobilizações em torno à violência policial e do cárcere tiveram um expressivo ascenso durante a pandemia. Organizações anarquistas que poderiam ser chamadas de mais tradicionais, ou que possuem existência um pouco mais longas, também aumentaram sua participação nessas lutas com contradições em suas relações com coletivos anti racistas nas mobilizações deste período. Mas este setor tem se mostrado na atual conjuntura facilmente domesticado pelo ecossistema de ONGs de direitos humanos e do movimento negro, de financiamento privado, por vezes intimamente articuladas com o poder judiciário e as forças policiais como no caso da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, organização que surgiu em 2017 como uma frente com significativo número de coletivos auto denominados anarquistas, mas que os poucos que ficaram depois de sucessivos rachas, são empregados em editais em uma forma organizativa já estritamente empresarial, corroborando com as mais sofisticadas formas de gestão policial da miséria, dirigidos por uma professora universitária branca marxista, mais uma herdeira de origem burguesa, especializada em lucrar com o racismo e a violência policial.

Assim, o anarquismo parece ter dificuldade em dar seus próprios passos e fomentar suas próprias organizações com independência, se mostrando hoje muito suscetível a formas indiretas de cooptação ou neutralização pelo Estado.

Autonomia e confiança nos de baixo

A intenção deste texto não é a de criticar as organizações marxistas e defender uma retomada de uma verdadeira perspectiva anarquista. A realidade é que tanto o marxismo quanto o anarquismo, enquanto ismos teóricos, são facilmente suscetíveis a serem usados por políticas de poder pessoal por membros das classes dominantes, estes buscam liderar politicamente grupos explorados e oprimidos para atingirem seus próprios interesses, a direção estatal e burguesa da própria contestação social é uma via tradicional de manutenção da ordem. É importante estudar estas tradições contestatórias buscando sempre se afastar do que nelas as impele ao conformismo e a sua transformação em instrumentos que reforçam as próprias formas de dominação e opressão que constituem a nossa realidade cindida. Neste sentido, a autonomia em relação às classes dominantes, com a construção de laços de confiança sólidos entre grupos explorados e oprimidos, é um caminho que proporciona uma lanterna, um caminho de pesquisa muito mais adequado, do que qualquer carreira intelectual em tradição teórica radical ou que alianças com membros das classes dominantes poderiam proporcionar para aqueles que desejam uma revolução. 

Por Bulva Espontânea e Tiê Sangue. 

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