Por Agnes de Oliveira
No dia 17 de Outubro, ocorreu na Universidade Federal do Maranhão (UFMA) o seminário “Dissidências de gênero e sexualidades”, organizado pelo Grupo de Pesquisa Epistemologia da Antropologia, Etnologia e Política (Gaep). Como palestrante, houve a participação de Tertuliana Lustona, historiadora da arte pela UERJ, mestranda pela UFBA, autora do Manifesto Traveco-Terrorista, além de cantora na banda A Travestis.
A apresentação de Tertuliana passou a circular amplamente nas redes sociais e outros meios de comunicação. E, na última semana, Tertuliana, juntamente com Andreone Medrado, que também estava presente no seminário, passou a ser alvo de ataques tanto à esquerda quanto à direita, que perpassam desde a deslegitimação da sua apresentação a partir de um enquadramento “do que” e “como” deve se dar a produção de saberes no espaço da Universidade Pública, até a desqualificação, pura e simples, da sua produção intelectual.
Aqui estou entendo por enquadramento, em consonância com a definição que Judith Butler fornece em Quadros de Guerra, como um processo social que estabelece molduras pelas quais são estabelecidas as condições de reconhecimento ou apreensão da vida dos outros, abarcando não só a vida num nível físico, mas também simbólico, demarcando quais vidas são passíveis ou não de proteção e prosperidade, e quais, ao contrário, se tornam passíveis de violação.
Como ficou explícito pelas manifestações nas redes sociais, tais processos de enquadramento, à esquerda e à direita, partilham uma matriz moral comum: a responsabilização, a priori, da Tertuliana pelos efeitos da violência da qual ela passaria a ser alvo, resolvendo a violência num problema de intencionalidade e decisão por parte do sujeito. Trata-se de uma lógica circular de legitimação e autorização da violência, na qual a vítima se torna responsável pela própria violência que sofre.
Posto isso, gostaria de fazer uma breve descrição da apresentação da Tertuliana. Como Raíssa Cabral, uma das presentes no seminário, bem relatou se tratou de uma fala sobre a articulação do trabalho artístico da Tertuliana com sua pesquisa acadêmica, como pode ser vista na relação entre sua música “Educando com o cu” e seu artigo homônimo. Os 30 segundos de vídeo, que passou a circular nas redes sociais e nos portais de notícias, se trata de uma palinha que Tertuliana deu cantando sua música “Educando com o Cu”, durante a qual Tertuliana se levanta, dá uma rebolada e seu vestido sobe, mas sem que tenha havido nudez, como passou a ser sugerido nas notícias e redes sociais.
Diante disso, tanto a esquerda progressista quanto a direita passaram a condenar a ação da Tertuliana. Saindo na frente, o campo progressista utilizou como principal argumento a maneira como, supostamente, a ação da Tertuliana fortaleceria a direita e o ataque à Universidade Pública. Esse argumento possuí diversas versões: algumas partem de um moralismo mais explícito; outras, contudo, se apresentam como um cálculo de conjuntura e um “diagnóstico de época” sobre as táticas da esquerda na “pós-modernidade”. Assim, começou a ser realizado, em retrospectiva e de modo imediatista, uma vinculação direta da apresentação da Tertuliana na UFMA com as ações diretas no contexto de Junho de 2013 realizadas por pessoas desobedientes da cis-norma: como a ação do coletivo Coiote durante a terceira edição da Marcha das Vadias no Rio de Janeiro, que coincidiu com a Jornada Mundial da Juventude (católica) e a visita do Papa Francisco; ou como a ação Xereka Satânic. Com esse “realismo político”, diante da apresentação da Tertuliana, o que se aponta é para o expurgo de toda ação direta coletiva que envolva a desobediência com o regime corporal cis-heterossexual e produza uma redistribuição da violência.
Em termos práticos, tais argumentos convergem, de uma maneira ou de outra, para adoção dos próprios valores e critérios da direita no interior de um “realismo político” que colabora com o próprio estado de violẽncia e seu exercício. Só seriam válidas ações – individuais ou coletivas, acadêmicas ou não – bem comportadas segundo o que a cis-heterossexualidade determina, inclusive no nível dos regimes corporais e de visibilidade.
Embora a esquerda atribuísse à Tertuliana a causa de uma ameaça à Universidade Pública, no fim foi a própria Universidade Federal do Maranhão que instaurou uma sindicância, autorizada em nome da autopreservação da sua “integridade”, para punir a Tertuliana e demais pessoas envolvidas. Como efeito, houve um processo de judicialização que recaiu também sobre o Grupo de Pesquisa Epistemologia da Antropologia, Etnologia e Política (Gaep) e o Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, que tiveram suas atividades suspensas.
Trata-se, portanto, de uma curiosa equação em que a ação “ameaçadora” da Tertuliana se converte numa violência contra si própria, enquanto as demais pessoas que a condenam e a própria Universidade seguirão ilesos. Onde a conta chega? E o que significa a (auto)preservação da “integridade da universidade” cujo seu efeito é obliterar que pessoas trans-travestis que ingressam nessas instituições possam realizar suas pesquisas e propor outros modos de produzir saber para além da régua moral cis-heterossexual? E como essa ação de penalização se relaciona com o fato da Tertuliana ser não só uma travesti, mas também uma trabalhadora sexual?
Travestifobia e Trabalho sexual
Em seu livro Testo Junkie, Paul Preciado observou como o trabalho sexual e as somatopolíticas sexuais – ou seja, política sexuais que se exercem no corpo – se fazem ausentes no interior das críticas sociais e filosóficas a respeito do capitalismo e do seu funcionamento.
No presente contexto, aquilo que Preciado disse à respeito dos teóricos do Império Antonio Negri e Michael Hardt se aplica facilmente a um espectro muito amplo de posições e críticas sociais: do marxismo tradicional ao perspectivismo. Todas elas convergem para uma mesma esconjuração: todas elas param da cintura pra baixo. E, com isso, algo fundamental da vida social contemporânea se perde.
Em especial a condição farmacoponográfica do capitalismo contemporâneo: a maneira como o pornografia, a partir das tecnologias de comunicação, e a indústria farmacêutica, a partir das biotecnológicas, condicionam a vida social no presente global. E a Universidade não está fora disso. Aqui deixarei de lado a parte fármaco, que já é mais evidente e tematiza quanto a sua presença e, inclusive, funcionalidade, no interior da produção e funcionamento das Universidades e os regimes de subjetivação que ali são (re)instanciados.
Gostaria de me atentar para como a pornografia se constituiu enquanto paradigma da indústria cultural e do trabalho imaterial. Adorno e Horkheimer, embora não desenvolvessem como o fará Paul Preciado, haviam se atentado para a dimensão pornográfica da indústria cultural ao dizer que “a indústria cultural é pornográfica e puritana”. Ora, isso vale também para o trabalho intelectual (um tipo de trabalho imaterial). E a reivindicação de integridade e decoro, bem como, em nome de um “realismo político” e de um “cálculo racional” de conjuntura, do expurgo de ações que não se dão conforme dos regimes morais ascéticos, que pressupõe um regime de corpos, são reivindicações que ocluem essa dependência entre o ascetismo do Sujeito esclarecido e sua face pornográfica.
De certo modo, a maneira como a apresentação da Tertuliana afetou e foi percebida pela academia e o campo progressista intelectual diz algo sobre isso. No seguinte sentido: ela expõe algo que parece vim de fora, mas que é constitutivo do próprio trabalho intelectual sob diversos aspectos, mas que é ao mesmo tempo articulado e negado.
Embora haja a dimensão travestifóbica de desqualificação do trabalho acadêmico da Tertuliana (a figura da travesti ameaçadora, promíscua, enganadora e não apta para o trabalho intelectual), há também, e embora as duas coisas estejam intimamente interligadas, algo que diz respeito à maneira como sua apresentação evoca o trabalho sexual em sua relação com o trabalho intelectual. O que ocorre na medida em o trabalho intelectual pressupõe uma espécie de “cooperação masturbatória”, ou uma “economia libidinal” para usar um termo mais eufemista, constitutiva da economia política do trabalho acadêmico.
Como nos lembra Preciado, muitos desses intelectuais “sérios” e “rigorosos” dependem dos trabalhos sexuais (remunerados ou não) e de fluxos de ejaculação, que se transformam em quantidades abstratas na forma monetária. Os que condenam são os mesmos que eventualmente e com certa regularidade consomem os “objetos” que aparecem e cuja fala, entretanto, não encontra lugar no seu regime de significação e de representação, pois exigiria pensar outra-mente. Pode um cu falar? Pode um cu educar? São questões que Tertuliana coloca em seu artigo “Educando com o cu”, mas que já foi colocada por outras travestis, como Jota Mombaça em “Pode um cu mestiço falar?”. Por sua vez, Preciado, que não deixou de pensar a possibilidade da filosofia como “modo superior de dar o cu”, se referindo à Hocquenghem e sua produção, disse algo semelhante: “o ânus homossexual fala e produz pela primeira vez um saber sobre si mesmo”
Posto isso, o que se opera nas reações violentas à apresentação da Tertuliana é uma forma de denegação dessa dependência: uma separabilidade entre trabalho intelectual e trabalho sexual, que a Tertuliana pertuba pelo fato dessa separabilidade se tornar impossível: é o cu da travesti e da trabalhadora sexual falando na universidade sem condescendência com regime corporal e moral cis-heterossexual.
Diante disso, à esquerda e à direita, é evocada a figura da Travesti que está sempre querendo dar um “golpe” e “enganar” as pessoas: na verdade, supostamente, seu trabalho intelectual é uma fachada para ela se autopromover e ganhar dinheiro por cima, em especial de maneira sexual por meio do privacy, ou ainda pela venda de livros. Como se tal interesse econômico, basicamente, não ocorresse e orientasse a academia, em que cada conferência e congresso é uma oportunidade para venda do trabalho imaterial dos mesmos sujeitos de sempre, para construir suas carreiras e vender seus livros.
A questão é que: mesmo o trabalho intelectual aparentemente dessexualizado é sexualizado – de maneira cisgênera e heterossexual. E toda polêmica em torno do cu explicita justamente o ponto fundante: a privatização e dessexualização do cu como constituinte da desvinculação do espaço público como espaço da transparência, racional e cis-masculino. Abro um parêntese: transparência me refiro aqui à acepção da Denise Ferreira da Silva a respeito da presunção ontoepistemológica privilegiada da modernidade: a da existência de um Sujeito capaz de, por sua pura mente, acessar e conhecer com certeza o mundo e se autodeterminar como sujeito livre. Transparência se refere, então: 1) à pura mente como essência ou propriedade exclusiva da coisa racional (o Sujeito/ Humano), que é formalmente universal, descorporificada e não afetada pela exterioridade figurada pelo corpo e pelo mundo; 2) à capacidade dessa mente de acessar e determinar completamente o mundo, ou seja, de conhecê com certeza em sua universalidade e necessidade. Assim, ao me referir ao espaço público como espaço da transparência, na qual a Universidade como instituição produtora de conhecimento se inscreve, me refiro a esse espaço como espaço própria da coisa racional e da sua autopreservação e autodeterminação. Enquanto, por exemplo, o espaço privado é referido como o espaço próprio da afetabilidade, das emoções, do corpo, da sexualidade, do amor, do cuidado, do erótico etc.
A reação, nesse sentido, não é meramente uma reação à mera “transgressão de valores morais”, mas é um recurso, inclusive jurídico-político e econômico, de autopreservação do espaço público como espaço fundamentalmente cis-heterossexual. É uma reação contra a emergência do cu como perspectiva que diz respeito a algo de fundamental de nossa vida coletiva, da maneira como pensamos, sentimentos, percebemos, aprendemos, mas também do funcionamento de nossas instituições e da nossa reprodução social heterossexual em crise. A resposta da UFMA pelo recurso ao sistema penal, justificada como “autopreservação da integridade”, só mostra como a violência anti-sodomita originária se mantém no núcleo da divisão entre espaço público e privado.
Diante dessa situação, porque a esquerda progressista – que há poucos anos atrás estava clamando como palavra de ordem contra o fascismo “ninguém solta a mão de ninguém” – , mas também setores da esquerda radical, não saiu sem solidariedade à Tertuliana, mas ao contrário? Porque, nessa situação, a punição da Tertuliana e a suspensão de um programa e um grupo de pesquisa sobre gênero e sexualidade se tornou uma medida não só aceitável, mas que aparece até como “necessária” para conter o avanço da extrema-direita e garantir a “integridade” das Universidades com suas pesquisas “sérias” e socialmente validadas?
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Confesso que as reflexões que você traz, Agnes, são novas para mim e certamente para a maioria das pessoas. Com base na sua argumentação, estou de acordo com o fato de que Tertuliana, bem como os membros do grupo de pesquisa que a convidaram, são vítimas, não agressores. Também começo a entrever a crítica epistemológica por trás desse título chocante “educando com o cú”. A crítica é válida. Vejo que vem sendo elaborada coletivamente já há alguns anos. Ainda assim, e apesar da circulação superficial do ocorrido para torná-lo indefensável segundo os critérios morais e científicos, parece que a forma de apresentação escolhida nesse caso é positivada e não critica a si mesma. Quero dizer, “rebolar” em um debate acadêmico é também uma linguagem que mimetiza a superficialidade geral e não se poderia talvez esperar que fosse recebido de outra maneira por um interlocutor externo e alheio ao debate. Me parece que a crítica epistemológica e até mesmo ontológica é já radical em si mesma, e, ao contrário do que se poderia imaginar, a performance não a torna ainda mais radical senão mais manca, como se a teoria precisasse de uma muleta para se firmar. Espero que minha reflexão não soe como ataque, e sim como interlocução de alguém ainda pouco familiarizado com a bagagem crítica que sua discussão traz. Agradeço pelo seu texto, pois foi o único dos que li que corajosamente defendeu Tertuliana e o grupo de pesquisa, ressaltando suas implicações judiciais, e que buscou explicar alguns dos pressupostos que fundamentam esta crítica à normatividade moral e epistemológica da sociedade e da academia.